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Da Caros Amigos
São Paulo: as execuções sumárias continuam
Por Angela Mendes de Almeida
O que mais se pode dizer, que ainda não tenha sido dito, sobre as execuções sumárias praticadas por policiais e agentes do Estado? Que mais se pode dizer quanto à violência policial voltada para os territórios da pobreza, moradores de favelas e periferias urbanas pobres?
Ficando apenas no Estado de São Paulo, o que mais se pode dizer depois do massacre do Carandirú, em 2 de outubro de 1992, onde morreram 111 presos, sem nenhum assassino julgado e cumprindo pena? Que dizer depois do massacre do Castelinho, em 2002, uma armação orquestrada por dois juízes-corregedores, promotores e outras altas autoridades do Estado, que retirou ilegalmente de dentro da prisão dois presos condenados para que eles “convidassem” doze pessoas para um assalto a um avião carregado de malotes de dinheiro que nunca existiu e aí fossem metralhados por policiais? O que há ainda a dizer depois do Relatório apresentado à Asma Jahangir, relatora especial da ONU para execuções sumárias, em 2003, que sumariava mais de vinte casos de assassinatos ocorridos nos três anos anteriores, sobretudo em Guarulhos e Sapopemba? E depois do escândalo que foram as 493 mortes em apenas oito dias de maio de 2006, sendo que as autoridades paulistas somente conseguiram atribuir 47 crimes ao PCC, ficando as outras 446 sem esclarecimento, processo e condenação? Para além do que apuraram as entidades de direitos humanos como execuções sumárias a serem creditadas a agentes do Estado, será que, constatado o clima de histeria sensacionalista praticado pela mídia por instigação das forças policiais, durante o qual autoridades ostentavam uma licença para matar - “vai morrer uma média de 10 a 15 bandidos por dia em São Paulo a partir de agora”, "vamos revidar, vai ser pau puro", “vamos zerar o jogo”, “vai ter troco”, “a caça continua”, - não é o caso de responsabilizar todas as autoridades governamentais do Estado de São Paulo pela impunidade dos outros 446 mortos naqueles dias sangrentos do Maio 2006?
O que leva os brasileiros a não atribuir senão uma mínima importância - quando é o caso de deplorarem – a estes crimes cometidos por agentes do Estado, agindo em nome dele e pagos com dinheiro dos impostos? Porque, para além da barbárie que constituem, ninguém repara na total ilegalidade com que agem as forças policiais? Porque a impunidade é a regra? Porque o Poder Judiciário, quase sempre, quando chega a ser acionado, usa de seus argumentos retóricos para, de forma casuística, transformar o crime em ato legal, em uma mal chamada “resistência seguida de morte”?
Mas apesar das últimas considerações grandieloquentes das autoridades e de algumas providências inócuas, as execuções sumárias não param. As estatísticas provenientes da própria Secretaria de Segurança Pública o demonstram. Estima-se em 6.054 as mortes por policiais no Estado de São Paulo entre 2000 e 2010. Entre janeiro e junho de 2011, foram mortas por policiais militares em serviço ou de folga 334 pessoas, numa média de 1,85 por dia. Dessas mortes, 241 foram apresentadas como “resistência seguida de morte”.
Como se realizam as “resistências seguidas de morte”
As execuções sumárias ou extrajudiciais, ou seja, fora da lei é preciso que se repita, acontecem tanto por parte de policiais militares no exercício de suas funções, como por parte de agentes do Estado – além de policiais militares, policiais civis, guardas-civis, agentes carcerários e outros – fora de serviço, em meio às suas atividades particulares.
Também acontecem sob a fórmula de “autoria desconhecida”, ou seja grupos de extermínio formados por policiais para executarem os “marcados para morrer”: ex-presos, viciados em droga e todos os considerados “prejudiciais à sociedade”. Em geral estes assassinatos são praticados sob a forma de chacinas, rapidamente atribuídas a traficantes para que a investigação não avance. Para um observador atento, é bem fácil distinguir a chacina que é um acerto de contas entre traficantes e as que são obras de policiais. Nestas o evento é feito é lugar público de um bairro, todos os presentes são assassinados, além dos visados, os executores retiram-se com calma e pouco depois, sem que ninguém tenha sido chamado, policiais fardados aparecem para recolher as capsulas, corpos e “desarranjar” a cena do crime. Apesar disso, a fúria criminosa é tanta que alguns grupos de extermínio formados por policiais acabam sendo descobertos como “Os matadores do 18”, grupo de cerca de vinte policiais militares do 18º Batalhão, que atuavam na zona norte da capital e foram responsabilizados pelo assassínio do Coronel José Hermínio Rodrigues, em janeiro de 2008. É também o caso do grupo de extermínio conhecido com “Highlanders”, formado por policiais militares do 37º Batalhão, que na zona sul cortava cabeças de suas vítimas, e que foi descoberto em 2009 a partir do assassinato de um rapaz com deficiência mental. E por fim, é também o caso do grupo conhecido como “Ninjas”, pela máscara que usavam, que cometeram vários assassinatos na Baixada Santista entre abril e maio de 2010.
Outra forma, derivada das perseguições desvairadas que os policiais executam para prender um pequeno ladrão de carteiras, ou um “suspeito”, pela sua aparência, de ser um deliquente, é a “bala perdida”. Para defender o patrimônio dos ricos e da classe média os agentes do Estado não hesitam em promover tiroteios, de forma absolutamente ilegal, mesmo em lugares públicos cheios de gente, assumindo o risco de provocar uma morte. Quando isso acontece argumentam que foi “uma fatalidade” que atingiu “um inocente”.
O enfrentamento, a “troca” de tiros, é a desculpa para a execução sumária. Criaram a categoria de “resistência seguida de morte” (RSM), que não existe legalmente, pois que, dada a conivência das instituições da Polícia Civil, a excecução sumária é apresentada pelos policiais autores dos tiros que mataram como uma consequência de os mortos terem, depois de incitados a se entregarem, atirado. Assim o título “resistência seguida de morte” desloca o crime para o morto que resistiu e que como está morto não pode ser processado, sendo o caso arquivado. Por isso mesmo, no ato da feitura do boletim de ocorrência na delegacia, procura-se a folha corrida do morto para provar que ele “merecia” a morte, pois já tinha passagens pelo sistema prisional ou de recolhimento de adolescentes.
Casos anônimos de execução sumária
Nos relatos jornalísticos desses casos de “resistência seguida de morte”, que nada mais são que a transcrição do boletim de ocorrência transmitida por fontes policiais, a falsificação fica clara. Embora haja casos que ficam famosos, nos quais a farsa é desvendada oficialmente, mesmo nas simples notícias cotidianas pode-se discernir a falta de lógica de histórias mal contadas com a “dinâmica da vítima que ‘reage’ e ‘constrange’ o policial a atirar”. Em todos estes casos, mesmo que a vítima assassinada não esteja armada, providencia-se uma arma para colocar em suas mãos.
Eis um exemplo recente, narrado conforme a ótica policial, sob o título “Adolescente entra em confronto com policiais e morre” (a notar que na frase a ação do adolescente é que provoca sua morte). No Bom Retiro (bairro central de São Paulo), às 22hs de uma sexta-feira, policiais militares viram “quatro rapazes pedalando bicicletas e decidiram abordá-los. (...) Nesse momento (...) o adolescente de 16 anos tentou fugir pedalando em alta velocidade, enquanto os demais rapazes continuaram a transitar no mesmo ritmo.” Por esse motivo os policiais concentraram a atenção no que fugia, “que sacou um revólver e o apontou para a viatura.” Resultado: “pedalando em alta velocidade” o adolescente teve condições de atirar duas vezes nos policiais que, em seguida o mataram. Nesta parca notícia não se diz o que é possível adivinhar, isto é, que o adolescente não estava armado. Esta explicação só vem à tona quando família e amigos do morto têm condições de protestar.
Veja-se este outro exemplo, narrado em outro texto: “policiais militares em uma viatura suspeitaram de uma dupla de homens que caminhava junto a um terreno baldio. Ao perceber a atenção dos policiais, um deles fugiu em direção à favela, enquanto o outro ... ‘O outro permaneceu sentado em uma pedra e foi abordado. Segundo a polícia, ao ser revistado, o rapaz sacou uma arma calibre 38 e atirou contra um PM, que respondeu ao fogo e acertou as costas do suspeito em fuga. Ele foi socorrido, mas não resistiu ao ferimento.’ ” Tente o leitor racional entender a atitude do executado, que esperando sentado o momento de ser revistado, e tendo o policial próximo de si, saca uma arma que suscita a "reação" dos policiais, que o atingem nas costas, estando ele sentado! Como estes boletins de ocorrência são uma farsa, a falta absoluta de lógica não perturba os jornalistas, é um emblema de que os "suspeitos" estão fadados a morrer.”
Exemplo desse procedimento é também o caso do catador de papéis, Juliano Diogo, de 26 anos, que foi executado nos fatídicos oito dias de maio de 2006, em Ribeirão Preto. Na versão policial, ao avistar um carro da Polícia Militar, Juliano teria corrido, e mesmo correndo, atirou com uma arma em cada mão. No entanto um amigo teve a coragem de declarar no Ministério Público que viu quando Juliano “for morto com um tiro na barriga”. Uma outra testemunha declarou na Ouvidoria de Polícia que, ouvindo tiros, viu que os policiais, com luvas brancas, colocaram duas armas, uma em cada mão de Juliano, que já estava baleado mas ainda não morto, e apertaram os gatilhos aproximadamente 11 vezes em direção ao carro policial. Viu ainda, depois disso, Juliano ser arrastado e ser baleado com mais cinco tiros.
Casos famosos de execução sumária
Há os casos que se tornam célebres pois fica evidente que as vítimas mortais não podem ser acusadas de delinquentes. Entre abril e maio de 2010 dois casos comoveram parte da opinião pública, dois assassinatos praticados por policiais militares em situações distintas contra dois motoboys, ambos negros. Era uma categoria profissional e uma etnia que eram atingidas ao mesmo tempo. Apesar da comoção e de declarações altissonantes das maiores autoridades do Estado de São Paulo criticando o comportamento “inaceitável” dos policiais nos dois casos, nada mudou depois. O relato desses dois casos evidencia uma série de formas comportamentais constantes das forças policiais.
Eduardo Pinheiro dos Santos foi preso com outras três pessoas que brigavam entre si por causa de uma bicicleta furtada. Ao invés de serem levados para a delegacia, como manda a lei, foram para o quartel da Polícia Militar na Casa Verde, zona norte de São Paulo, em 9 de abril de 2010. Como Eduardo estava mais exaltado – ou seja, tinha levado um soco de um policial e revidou - foi colocado em uma viatura separada dos outros. E os três rapazes viram no quartel ele ser humilhado e espancado por todos os policiais que entravam no recinto. Três horas depois seu corpo foi encontrado na rua, em bairro vizinho, sem identificação. Outros policiais, chamados, constataram traumatismo craniano e hemorragia. E como fazem sempre que encontram um corpo já morto, ao invés de requisitarem uma perícia, levaram Eduardo para o pronto-socorro, onde então foi constatada a morte. No entanto as testemunhas falaram e rapidamente ficou esclarecido quem eram os policiais militares responsáveis. Foram presos provisoriamente e posteriormente indiciados criminalmente, ou seja, até aí o processo andou. Nessa ocasião as mais altas autoridades do governo de São Paulo afirmaram que não tinham dúvidas, “foi a tortura que levou o rapaz a óbito”, que não compactuavam com “aquele tipo de procedimento, abominável”, que se tratava de “fato isolado”, não se admitindo “esse tipo de situação na nossa instituição”. Uma autoridade policial, embora criticando, alegou que “é lógico, quando uma das pessoas está alterada, o policial militar precisa usar os meios necessários para conter essas agressões." A chave da questão se encontra, como se verá pelo desenrolar do processo, nos “meios necessários”.
Um mês depois, em 8 de maio, outro crime semelhante, porém em plena rua. Alexandre Menezes dos Santos, 25 anos, motoboy, negro, foi espancado e estrangulado até à morte em frente de sua casa e de sua mãe, no bairro Cidade Ademar, zona sul de São Paulo. A história é semelhante a tantas outras. Tendo a motocicleta sem placa, ele foi perseguido e ao parar para entrar em sua casa foi abordado por quatro policiais militares. A mãe implorava para que os agentes do Estado parassem de bater mas foi ameaçada de ser presa. Foram cerca de 30 minutos de pontapés e socos no estômago, contou a mãe. “Depois vi o pescoço do meu filho mole, a baba escorrendo e a poça de sangue crescendo. (...) Eles batiam no rosto dele, tentavam reanimá-lo. Quando viram que não tinha jeito, jogaram-no dentro de um carro e foram embora.” Mais uma vez a prática de desarrumar a cena do crime evitando a perícia e levando o morto para um hospital, que constata a morte e envia para o IML.
Matar, por excesso, é tão corriqueiro que os quatro policiais militares apenas pagaram, na delegacia da Polícia Civil, uma fiança de R$ 480,00 e foram liberados. No dia seguinte, dada a repercussão do caso, foram presos pela Corregedoria da Polícia Militar. Mais uma vez as mais altas autoridades classificaram o crime de “deplorável e inaceitável”. Uma autoridade do âmbito militar esboçou uma explicação relacionando o maior número de mortes em ações policiais ao aumento de confrontos entre “bandidos mais armados” e “policiais mais preparados.” Para o advogado de defesa “foi excesso culposo (não intencional) e não homicídio doloso”
Neste caso o Tribunal de Justiça aceitou a denúncia feita pelo Ministério Público acusando os quatro policiais militares de homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, meio cruel e impossibilidade de defesa da vítima), mantendo a prisão até o julgamento. O laudo necroscópico declara que Alexandre foi morto por "asfixia mecânica por constrição cervical". Na acusação formal, os promotores argumentam que os policiais militares “assumiram o risco de matar a vítima”, descrevendo em detalhes os golpes que levaram à morte de Alexandre, culminando com a asfixia.
No entanto, enquanto o desenrolar deste caso levou ao indiciamento dos acusados, o Poder Judiciário encontrou um “jeitinho” de “declassificar” o crime dos policiais que mataram Eduardo Pinheiro dos Santos. Em dezembro de 2010 a Justiça concluiu que não se tratava de homicídio, um “crime doloso” contra a vida, e sim do crime de “tortura seguida de morte”, que prevê uma pena bem menor. Em consequência disso o crime não será mais julgado por um Tribunal do Júri, e sim por um simples juiz. Na decisão do juiz é dito que a morte de Eduardo foi apenas uma “decorrência de um castigo” que os policiais quiseram infringir a ele, sem a intenção de matar. Ou seja, tortura pode.
A “mãozinha” dada pelo Poder Judiciário para “declassificar” este crime está totalmente entrelaçada com a banalização da tortura no Brasil, expressa, entre outros fatores, pelo fato de que a Lei contra a Tortura brasileira (Lei 9.455, de 1997) é contraditória com a legislação internacional sobre os crimes de lesa-humanidade. Ela não especifica, como é o caso da jurisprudência vigente a partir do Tribunal de Nurenberg (1946), que a tortura é o crime cometido pelos agentes do Estado, em nome deles e sob sua guarda. Em decorrência disso, as penas são relativamente pequenas, praticamente não há notícia de agentes do Estado condenados, e ela serve para criminalizar babás, cuidadores de idosos e sequestradores civis.
Mas o que são esses confrontos entre “bandidos mais armados” e “policiais mais preparados” de que não se tem senão uma notícia resumida nas páginas dos jornais ou nos programas televisivos policialescos? É bastante raro assistir ao vivo um chamado “confronto” classificado como “resistência seguida de morte” e ter a coragem de testemunhar. Pois isso aconteceu em março de 2011, porém só foi noticiado em abril. E o testemunho não pôde ser apagado ou ignorado porque estava gravado no COPOM (Centro de Operações da Polícia Militar). Através do número 190, uma mulher destemida e naturalmente defensora dos direitos humanos denunciou ao vivo um desses supostos confrontos, ou seja uma execução sumária realizada no cemitério de Ferraz de Vasconcelos, Grande São Paulo. Por entre os túmulos ela viu entrar uma viatura da Polícia Militar, um homem ser retirado da caçamba e levar um tiro. A vítima, Dileone Lacerda, de 27 anos, já tinha sido processado por roubo e formação de quadrilha, tinha saído da prisão recentemente e tinha roubado, com outros rapazes, uma van na zona leste de São Paulo. Era um desses “bandidos mais armados”? Morreu com um tiro na perna, levado durante a perseguição, e outro no peito disparado no cemitério. Mais tarde soube-se por testemunhas que ele havia sido preso em um condomínio onde, desarmado, teria apanhado dos policiais que já chegaram atirando. Sem saber que a testemunha tinha chamado o COPOM para narrar a execução sumária os dois policiais militares registraram corriqueiramente um boletim de ocorrência de “resistência seguida de morte” no qual a Polícia Civil não “vislumbrou indícios de qualquer irregularidade”, sendo o caso apresentado como legítima defesa. Os dois policiais já tinham um histórico de “resistências seguidas de morte”, três num caso e uma em outro. A Justiça de Ferraz de Vasconcelos acatou a denúncia do Ministério Público de homicídio duplamente qualificado para os dois policiais. Também desta vez, depois que o caso veio a público, o governador Alkmin cumprimentou a corajosa testemunha, qualificando-a de exemplo, e anunciou a diretriz de enviar todos os casos de RSM para investigação pelo DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa). Mas as execuções sumárias continuaram.
Depois disso ainda tivermos, em agosto de 2011, o espetáculo de mais um “enfrentamento” entre policiais militares e “bandidos”, diante dos caixas de um supermercado, em Parada de Taipas, zona norte de São Paulo. Milagrosamente ninguém ficou ferido, a não ser os seis que tentavam roubar caixas eletrônicas. Ah, o milagre se deu, veio a público em seguida, porque antes de executá-los, conforme informações da Polícia Civil, os PMs viraram uma das câmeras de segurança para a parede.
E ainda, no mesmo mês, ficamos sabendo que o espetacular “assalto” ao quartel da ROTA, em agosto de 2010, em plena efervescência da campanha eleitoral, pretenso recomeço de ataques do PCC, afinal talvez nem tenha existido, conforme relatório confidencial da inteligência da Polícia Civil destinado à cúpula do governo. Mas será que era muito difícil em 2010 perceber que havia algo de muito estranho no ato de um homem que, sozinho, atira contra os altos muros do quartel? E que se tratava de uma misteriosa execução sumária cuja finalidade ainda não veio à tona? Agora ficamos sabendo também, por declarações da família, que o ousado atacante era uma pessoa viciada em drogas, que morria de medo da polícia e que jamais teria a coragem de um ato dessa natureza. Tamanho quadro de ilegalidades e falsidades ainda não foi objeto de inquérito e processo judicial.
Quando os policiais explicam as “resistências seguidas de morte”
Nas forças de Segurança Pública, é óbvio, nem todos matam. Porém o corporativismo é um poderoso fermento que une os agentes do Estado na defesa daquele que cometeu o crime ou na sua relativização. Há, no entanto, policiais matadores falam, às vezes para se vangloriar, às vezes para deplorar “os excessos”. Essas falas são recebidas pelas autoridades e pela opinião pública, inclusive a progressista, como folclore, algo indigno de ser levado a sério. Ao contrário do que deveria acontecer, nunca dão lugar a inquéritos e processos por apologia ao crime.
Em 20 de abril de 2003, em pleno Jornal Nacional da Globo, o jornalista Valmir Salaro entrevistou um policial matador de Guarulhos que afirmou ter matado “mais ou menos 115”. E explicou bem o modus operandi das execuções sumárias. “Noventa por cento dos tiroteios de que participei foram forjados, 10% só que são verdadeiros (...) Um tiroteio forjado é aquele em que só o policial atira. O bandido vai atirar só depois de morto, só. Aí você pega a mão dele, dá uns três tiros para o alto ou numa viatura. (...) Você vai vendo se o marginal está morto dentro da viatura. Se ele não estiver, você tem que dar um jeito dele chegar morto no pronto-socorro, senão ele vai falar o que aconteceu. Normalmente você dá um ou dois tiros para conferir dentro da viatura, ou para no meio de um matagal e ‘confere’ ele com um tiro ou dois na cabeça ou no peito, para dizer que ele chega morto no hospital. (...) Muitas vezes você sente remorso, porque você pode mesmo ter matado um pai de família, um trabalhador, mas quando você sabe que foi um vagabundo mesmo que morreu, um bandido, aí você não tem muito remorso, não. (...) Eu não aguento mais a pressão dentro de mim. Ou eu me matava ou eu desabafava”,
Os crimes das polícias executados no maio sangrento de 2006 também deram ensejo a que um policial militar se desafogasse com jornalistas. Em setembro de 2007 o jornal O Estado de São Paulo, depois de quatro longas entrevistas ao longo de um ano e checagem por parte dos repórteres de dados paralelos, publicou em quatro singelas matérias as declarações de um soldado da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, tropa de choque da Polícia Militar), identificando-o apenas como P. Aparentemente revoltado com o "exagero" dos atos policiais, ele descreveu casos concretos de como se dão as "derrubadas". Em relação ao maio de 2006, relatou como, com a tropa formada, o oficial pediu a seus homens uma "resposta" (aos ataques do PCC). Dia 13 de maio, sábado, foram 9 mortos. Em seguida o oficial parabenizou pelo trabalho feito e pediu continuidade. No dia seguinte, 16 mortos. Depois disso o oficial pediu para "maneirar" um pouco e no dia seguinte foram só 8 mortos: "Deu, tá bom!". Em relação ao modus operandi o soldado P. também deu detalhes (citando casos concretos conferidos): os alvos são pessoas com passagem pela polícia ou que cumpram pena em regime semiaberto, "escolhidos" aleatoriamente em favelas ou periferias pobres, por sua "atitude suspeita". São presos e mortos imediatamente ou "guardados" no porta-malas da viatura para serem mortos na ocasião da encenação. Depois os policiais forjam um tiroteio em cima de um carro roubado, ou de algum comerciante que se presta a emprestar o carro para a encenação, dando queixa de roubo na polícia, ou de um carro que os próprios policiais roubam, depois de tirar a farda.
E mais recentemente o jornalista Renato Santana, no marco de uma série de reportagens sobre execuções sumárias na Baixada Santista em abril de 2010, conseguiu entrevistar dois ex-policiais que lhe revelaram as entranhas das supostas “resistências seguidas de morte”. “O Lenda” explica como se montam ocorrências “redondas”. Aposentado, “virou professor para os policiais mais novos e o salvador dos descuidados”. Dá uma aula ao repórter sobre como descaracterizar a arma de um crime pedida pela perícia: “Na alma do cano (parte interna do cano) se você pegar uma bala, passar graxa, ou qualquer material adesivo, areia, e der um tiro, no exame técnico vai ser constatada outra arma. Vai mudar a sua característica interior. Vai criar ranhuras que anteriormente a arma não tinha. Um projétil coletado antes vai ter características diferentes desse coletado depois, para confronto, ou seja, balística.” Naturalmente defende as execuções generalizadas: “O suposto inocente, ou citado como inocente pela mídia, que está às duas horas, três horas da madrugada num boteco que fica numa biqueira (ponto de tráfico) da periferia não é inocente. (...) O inocente não existe.”
O outro ex-policial entrevistado, “Juca”, explica como constituir um grupo de extermínio, com três ou quatro falando “nossa linguagem, com pouco mais de apetite (...) É um grupo fechado que atua descaracterizado, com a chamada touca.” Quanto à morte de “inocentes” nessas matanças o policial é singelo: “Às vezes, acontece de errar. Olhar e achar que o cara é bandido e não é, pelo modo de o cara se vestir e de agir. Você faz aquela análise rápida e vê. Se achar que o cara é bandido também, vai junto. (...) Foi pego na rua de madrugada: tem passagem? Tem! Não era nem levado para a delegacia. Era executado e jogado na primeira viela que encontrasse pela frente.” E mais precisamente explica sobre as execuções sumárias: “90% das ocorrências de resistência seguida de morte são montadas. A polícia pega o bandido, vamos supor, dentro de sua casa. Só está o policial e o bandido, que não vai encarar 20 policiais. (...) A gente já andava com o chamado kit. Era uma mochila contendo várias armas frias. Porque se o alvo não tivesse armado, mas tivesse uma situação que a gente podia matar, a gente matava e colocava uma arma fria na mão dele. Aí o policial faz a montagem do local da ocorrência. Se matou o cara, o policial não vai dizer o número de tiros. Dá dois ou três tiros em locais fatais e sabe que o cara vai morrer. Mas como vai saber se o cara é destro ou canhoto? A gente ‘faz a mão’ do indivíduo. Coloca a arma fria na mão esquerda e efetua o disparo. Na mão direita, outro disparo. Pode fazer o residuográfico que consta pólvora nas duas mãos.Tudo para deixar a ocorrência mais redonda com a simulação de troca de tiros.” Na sua aula magna o ex-policial dá a receita certa para não deixar provas para a perícia (recolha de capsulas e de corpos), levar sempre o morto ou ferido para um hospital para não ser acusado de omissão de socorro e matar “o indivíduo” no percurso da viatura, caso ele ainda esteja vivo, não descartando longas voltas para retardar o atendimento.
Essas revelações de crueldade e apreço para com as execuções sumárias foram mais uma vez ilustradas recentemente com a repercussão de um vídeo de um minuto e meio, gravado por um policial militar durante um assassinato, e que circulou pacificamente na internet durante três anos, para regozijo dos que acham que “bandido bom é bandido morto”. O autor dos tiros que vitimou mortalmente um rapaz, ferindo o outro, um adolescente, com seis tiros, por causa de um reles roubo de talões de cheques, celulares e pouco mais de R$ 500,00, foi um guarda-civil municipal. Mas policiais militares de quatro viaturas vieram para apreciar e gozar da agonia dos dois rapazes durante 40 minutos. O caso aconteceu em maio de 2008, na zona leste de São Paulo. O vídeo mostra os dois deitados, um deles espumando pela boca, com os olhos paralisados, em choque mortal, e o adolescente chorando, ensanguentado. Ouvem-se frases como “Estrebucha, filho da puta”, “Não morreu ainda?”, “Tomara que morra no caminho (para o hospital)”. O policial militar que grava as cenas do adolescente, identificado por suas botas e pelo cinturão do uniforme lhe diz: “Está vendo o inferno? Esse não morreu ainda? Deu sorte, hein, meu!".
Assim é toda uma visão de mundo, recuperada pelos programas policialescos de televisão, que está introjetada nos modos de comportamento, mesmo os burocráticos, das forças de segurança. Não estranha, pois, que um promotor do Tribunal do Júri tenha pedido o arquivamento de um caso de execução sumária com a seguinte frase: “Bandido que dá tiro para matar tem que tomar tiro para morrer. Lamento, todavia, que tenha sido apenas um dos rapinantes enviado para o inferno.” E aconselha ao réu: “Melhore sua mira..." E não estranha ainda que tal frase, escrita em documento oficial, não tenha tido nenhuma consequência judicial.
Como se vê, as execuções sumárias e extrajudiciais são um cancro incentivado por um sistema de conivências que vai desde o assassino até as mais altas autoridades do país, passando pela apologia do “assassinato de bandidos”, e que conta com a tolerância da opinião pública progressista, inclusive da esquerda, apática para denunciar estas violações aberrantes da lei do Estado democrático de Direito, colaborando para a impunidade.
Angela Mendes de Almeida é coordenadora do Observatório das Violências Policiais-PUC/SP.
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