DEBATE ABERTO
Tomando emprestado um conceito soviético dos anos 1950, uma reportagem da revista The Economist mostra o que o liberalismo pensa e quer de países como o Brasil. Nada como uma crise para espalhar uma grande confusão, como é o caso do conceito de "capitalismo de Estado".
Antonio Lassance
Tomando emprestado um conceito soviético dos anos 1950, uma reportagem da revista The Economist mostra o que o liberalismo pensa e quer de países como o Brasil. Nada como uma crise para espalhar uma grande confusão, como é o caso do conceito de "capitalismo de Estado".
O título e subtítulo são autoexplicativos e vaticinadores:
"A ascensão do capitalismo de Estado: a proliferação de um novo tipo de economia no mundo emergente causará problemas crescentes". (Economist, "The rise of state-capitalism: The spread of a new sort of business in the emerging world will cause increasing problems", Jan 21st 2012.).
The Economist fala sobre economias orientadas pelo Estado ("State-directed capitalism") e diz o seguinte:
Não é a primeira vez que esta revista usa o termo "capitalismo de Estado".
Em março de 2010, o periódico liberal já utilizara a expressão para se referir ao Brasil. Segundo The Economist, Lula teria sido o grande responsável por tornar popular a ideia de que uma intervenção maior do Estado na economia seria boa para o Brasil. Mas o novo alvo era a então candidata à Presidência, Dilma Rousseff. O Brasil estaria apaixonado pelo Estado ("Brazil's presidential campaign: Falling in love again with the state", Economist, March 2010).
Mais recentemente, tratou a China nos mesmos termos, na reportagem "Capitalismo de Estado na China: de imperadores e reis, empresas de propriedade do Estado estão a caminho" (State capitalism in China Of emperors and kings: China’s state-owned enterprises are on the march. Nov 12th 2011).
A insistência demonstra a intenção da revista de transformar a expressão em um bordão, quem sabe, vencendo pela insistência.
Seu cerne é caracterizar um suposto "modelo" de capitalismo conduzido pelo Estado, embora mantendo algumas práticas liberais. Os BRICs seriam, todos eles, capitalismo de Estado, embora cada qual à sua maneira. O Brasil é supercitado. The Economist, como boa inglesa, está interessada em entender o Brasil e dele se reaproximar. Lembrou, em edições passadas, o quanto o Reino Unido já foi importante para o País... no século XIX.
Ao invés da mão invisível de Adam Smith, tais economias seriam adeptas da mão visível.
Quem exumar o conceito de "capitalismo de Estado" verá que sua formulação original é soviética, do início da década de 1950, tendo tido adeptos importantes também na Alemanha Oriental. Mas o nome e sobrenome certos eram "capitalismo monopolista de Estado". Estranho ela ter sumido com o "monopolista"? Não para uma revista que professa declaradamente sua fé nessa construção mítica chamada livre mercado.
Quando os soviéticos dos anos 1950 falavam em capitalismo monopolista de Estado, se referiam ao fato de que, em determinadas economias, o Estado assumido o papel não só de alavanca, mas propriamente de agente empresarial capaz de organizar e financiar interesses privados e prover capital em maior escala do que os próprios empresários, fortalecendo monopólios privados. Seria não só maquinista, mas a própria locomotiva. Segundo os soviétivos, o capitalismo monopolista de Estado era um remédio à decadência do sistema.
Essa história e suas várias tendências de análise, que se proliferaram para além da URSS, está contada por Bob Jessop ("The capitalist state", 1982). O conceito fez algum sucesso até que sofreu "fogo amigo" em duas frentes de ataque.
Dois grandes economistas marxistas, Paul Baran e Paul Sweezy ("Monopoly capitalism", 1966) criticaram a inconsistência do conceito. Baran e Sweezy lembravam que o capitalismo sempre precisou do Estado, e muito, e que o Estado cumpriu tarefas econômicas fundamentais desde sempre. Não haveria capitalismo sem ação empreendedora do Estado, cuja atuação variava conforme diferentes contextos históricos.
O conceito foi atingido por um outro lado, que igualmente invocava o marxismo, quando Charles Bettelheim falou em capitalismo de Estado para explicar a própria União Soviética ("A luta de classes na URSS", escrito entre 1974 e 1982, em quatro volumes). Para ele, a URSS era um país capitalista, com luta de classes, um capitalismo de partido, e a burocracia exercendo dominação e apropriando-se da riqueza dos trabalhadores soviéticos, com base em sua posição no aparelho de Estado.
A miscelânea feita pela revista diz que capitalismo de Estado existe desde a Companhia das Índias Orientais. Se assim é, por que usá-lo distintamente para os BRICs?
Em plena crise global do sistema, a utilização do termo capitalismo de Estado denota uma grande confusão, em termos teóricos. Atropelado pelos acontecimentos, o liberalismo se esforça para anotar a placa das transformações que tornam o capital cada vez mais volátil e o futuro das velhas economias incerto.
Por outro lado, miopia não significa ingenuidade. Em termos práticos, alguns países capitalistas tremem ante a ameaça de se tornarem, como já está acontecendo, menos centrais do que eram. Pior, temem tornarem-se países pouco importantes.
É o caso do Reino Unido. The Economist, à guisa de fazer jornalismo, quer passar um recado aos agentes econômicos para que sustentem sua aposta no velho mundo do "livre mercado". Tentando compreender melhor seus oponentes concorrenciais, quer deixar a mensagem de que eles não são tão confiáveis assim.
A imagem de Lênin vem a calhar. Ele é um ícone da esquerda, do estatismo, da luta entre dois blocos, de quando a distinção entre amigos e inimigos era clara e cristalina. Esse mundo desapareceu. The Economist tenta ressuscitá-lo pela ideologia.
Se o esforço não funcionar, como é mais provável, pelo menos temos pistas de quais podem ser as apostas do velho mundo. A matéria identifica um alvo claro a ser atacado. A força dos BRICs, ao mesmo tempo seu calcanhar de Aquiles, são seus Estados.
Preparemo-nos, no médio prazo, para uma guerra contra os BRICs pelo protagonismo de sua intervenção do Estado no domínio econômico. A escaramuça prenuncia possíveis ataques, no futuro, em torno de supostas burlas desses Estados às regras do jogo da "livre concorrência". Isso já ocorre, mas pode ganhar intensidade.
Os Estados europeus precisam ganhar fôlego de qualquer maneira. Estão comprometidos em cobrir os rombos gigantescos gerados por suas políticas de desregulamentação e comem poeira na nova dinâmica do crescimento mundial, puxada principalmente pela China.
Ao mesmo tempo, a matéria deixa clara sua confiança de que o gigantismo estatal tem pés de barro e não resistirá a apelos sedutores dos que podem simplesmente capturá-lo. Na estratégia do "se não pode vencê-los, junte-se a eles", a saída pode ser uma associação de interesses de firmas dos países capitalistas centrais com as corporações dos BRICs.
No campo conceitual, a mudança mais significativa promovida pelo novo bordão é o abandono do conceito de globalização, que está com as barbas de molho. Ao falar em capitalismo de Estado, no fundo, The Economist confessa a incapacidade do referencial da globalização para explicar os dias atuais. Os liberais estavam errados ao olhar o mundo esquecendo-se dos Estados, do que eles significam e das profundas diferenças que marcam as estratégias dos países, além, claro, de suas diferenças de tamanho. É algo que está nas entrelinhas da matéria.
Por isso The Economist precisava tanto do charuto de Lênin: pura cortina de fumaça.
O título e subtítulo são autoexplicativos e vaticinadores:
"A ascensão do capitalismo de Estado: a proliferação de um novo tipo de economia no mundo emergente causará problemas crescentes". (Economist, "The rise of state-capitalism: The spread of a new sort of business in the emerging world will cause increasing problems", Jan 21st 2012.).
The Economist fala sobre economias orientadas pelo Estado ("State-directed capitalism") e diz o seguinte:
Não é a primeira vez que esta revista usa o termo "capitalismo de Estado".
Em março de 2010, o periódico liberal já utilizara a expressão para se referir ao Brasil. Segundo The Economist, Lula teria sido o grande responsável por tornar popular a ideia de que uma intervenção maior do Estado na economia seria boa para o Brasil. Mas o novo alvo era a então candidata à Presidência, Dilma Rousseff. O Brasil estaria apaixonado pelo Estado ("Brazil's presidential campaign: Falling in love again with the state", Economist, March 2010).
Mais recentemente, tratou a China nos mesmos termos, na reportagem "Capitalismo de Estado na China: de imperadores e reis, empresas de propriedade do Estado estão a caminho" (State capitalism in China Of emperors and kings: China’s state-owned enterprises are on the march. Nov 12th 2011).
A insistência demonstra a intenção da revista de transformar a expressão em um bordão, quem sabe, vencendo pela insistência.
Seu cerne é caracterizar um suposto "modelo" de capitalismo conduzido pelo Estado, embora mantendo algumas práticas liberais. Os BRICs seriam, todos eles, capitalismo de Estado, embora cada qual à sua maneira. O Brasil é supercitado. The Economist, como boa inglesa, está interessada em entender o Brasil e dele se reaproximar. Lembrou, em edições passadas, o quanto o Reino Unido já foi importante para o País... no século XIX.
Ao invés da mão invisível de Adam Smith, tais economias seriam adeptas da mão visível.
Quem exumar o conceito de "capitalismo de Estado" verá que sua formulação original é soviética, do início da década de 1950, tendo tido adeptos importantes também na Alemanha Oriental. Mas o nome e sobrenome certos eram "capitalismo monopolista de Estado". Estranho ela ter sumido com o "monopolista"? Não para uma revista que professa declaradamente sua fé nessa construção mítica chamada livre mercado.
Quando os soviéticos dos anos 1950 falavam em capitalismo monopolista de Estado, se referiam ao fato de que, em determinadas economias, o Estado assumido o papel não só de alavanca, mas propriamente de agente empresarial capaz de organizar e financiar interesses privados e prover capital em maior escala do que os próprios empresários, fortalecendo monopólios privados. Seria não só maquinista, mas a própria locomotiva. Segundo os soviétivos, o capitalismo monopolista de Estado era um remédio à decadência do sistema.
Essa história e suas várias tendências de análise, que se proliferaram para além da URSS, está contada por Bob Jessop ("The capitalist state", 1982). O conceito fez algum sucesso até que sofreu "fogo amigo" em duas frentes de ataque.
Dois grandes economistas marxistas, Paul Baran e Paul Sweezy ("Monopoly capitalism", 1966) criticaram a inconsistência do conceito. Baran e Sweezy lembravam que o capitalismo sempre precisou do Estado, e muito, e que o Estado cumpriu tarefas econômicas fundamentais desde sempre. Não haveria capitalismo sem ação empreendedora do Estado, cuja atuação variava conforme diferentes contextos históricos.
O conceito foi atingido por um outro lado, que igualmente invocava o marxismo, quando Charles Bettelheim falou em capitalismo de Estado para explicar a própria União Soviética ("A luta de classes na URSS", escrito entre 1974 e 1982, em quatro volumes). Para ele, a URSS era um país capitalista, com luta de classes, um capitalismo de partido, e a burocracia exercendo dominação e apropriando-se da riqueza dos trabalhadores soviéticos, com base em sua posição no aparelho de Estado.
A miscelânea feita pela revista diz que capitalismo de Estado existe desde a Companhia das Índias Orientais. Se assim é, por que usá-lo distintamente para os BRICs?
Em plena crise global do sistema, a utilização do termo capitalismo de Estado denota uma grande confusão, em termos teóricos. Atropelado pelos acontecimentos, o liberalismo se esforça para anotar a placa das transformações que tornam o capital cada vez mais volátil e o futuro das velhas economias incerto.
Por outro lado, miopia não significa ingenuidade. Em termos práticos, alguns países capitalistas tremem ante a ameaça de se tornarem, como já está acontecendo, menos centrais do que eram. Pior, temem tornarem-se países pouco importantes.
É o caso do Reino Unido. The Economist, à guisa de fazer jornalismo, quer passar um recado aos agentes econômicos para que sustentem sua aposta no velho mundo do "livre mercado". Tentando compreender melhor seus oponentes concorrenciais, quer deixar a mensagem de que eles não são tão confiáveis assim.
A imagem de Lênin vem a calhar. Ele é um ícone da esquerda, do estatismo, da luta entre dois blocos, de quando a distinção entre amigos e inimigos era clara e cristalina. Esse mundo desapareceu. The Economist tenta ressuscitá-lo pela ideologia.
Se o esforço não funcionar, como é mais provável, pelo menos temos pistas de quais podem ser as apostas do velho mundo. A matéria identifica um alvo claro a ser atacado. A força dos BRICs, ao mesmo tempo seu calcanhar de Aquiles, são seus Estados.
Preparemo-nos, no médio prazo, para uma guerra contra os BRICs pelo protagonismo de sua intervenção do Estado no domínio econômico. A escaramuça prenuncia possíveis ataques, no futuro, em torno de supostas burlas desses Estados às regras do jogo da "livre concorrência". Isso já ocorre, mas pode ganhar intensidade.
Os Estados europeus precisam ganhar fôlego de qualquer maneira. Estão comprometidos em cobrir os rombos gigantescos gerados por suas políticas de desregulamentação e comem poeira na nova dinâmica do crescimento mundial, puxada principalmente pela China.
Ao mesmo tempo, a matéria deixa clara sua confiança de que o gigantismo estatal tem pés de barro e não resistirá a apelos sedutores dos que podem simplesmente capturá-lo. Na estratégia do "se não pode vencê-los, junte-se a eles", a saída pode ser uma associação de interesses de firmas dos países capitalistas centrais com as corporações dos BRICs.
No campo conceitual, a mudança mais significativa promovida pelo novo bordão é o abandono do conceito de globalização, que está com as barbas de molho. Ao falar em capitalismo de Estado, no fundo, The Economist confessa a incapacidade do referencial da globalização para explicar os dias atuais. Os liberais estavam errados ao olhar o mundo esquecendo-se dos Estados, do que eles significam e das profundas diferenças que marcam as estratégias dos países, além, claro, de suas diferenças de tamanho. É algo que está nas entrelinhas da matéria.
Por isso The Economist precisava tanto do charuto de Lênin: pura cortina de fumaça.
Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política. As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário