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A dívida tem uma moral própria, diferente e complementar à do trabalho. A dupla esforço-recompensa da ideologia do trabalho se vê passada para trás pela moral da promessa (honre sua dívida) e da culpa (de tê-la contraído). A campanha contra os gregos dá testemunho da violência da lógica que permeia a economia da dívida.
Por Maurizio Lazzarato*
A sucessão de crises financeiras levou ao aparecimento de uma figura subjetiva, que agora ocupa todo o espaço público: a do homem endividado. Pois o fenômeno da dívida não se reduz às suas manifestações econômicas. Ele constitui a pedra angular das relações sociais em regime neoliberal, operando uma tripla desapropriação: a desapropriação de um poder político já fraco, concedido pela democracia representativa; a desapropriação de uma parte cada vez maior da riqueza que as lutas passadas tinham arrancado da acumulação capitalista; e a desapropriação, principalmente, do futuro, quer dizer, da visão do tempo que permite escolhas, possibilidades. A relação credor-devedor intensifica de maneira transversal os mecanismos de exploração e dominação próprios do capitalismo. Pois a dívida não faz nenhuma distinção entre os trabalhadores e os desempregados, os consumidores e os produtores, os ativos e os inativos. Ela impõe uma mesma relação de poder a todos: até as pessoas mais desprovidas de acesso ao crédito particular participam do pagamento dos juros ligados à dívida pública. A sociedade inteira está endividada, o que não impede, mas exacerba, as desigualdades – que já é tempo de começar a qualificar como “diferenças de classe”.
Como revela sem ambiguidade a crise atual, uma das maiores questões políticas do neoliberalismo é a da propriedade: a relação credor-devedor exprime uma relação de força entre os proprietários e os não proprietários dos títulos do capital. Somas enormes são transferidas dos devedores (a maioria da população) para os credores (bancos, fundos de pensão, empresas, famílias mais ricas).
A dívida, inclusive, tem uma moral própria, ao mesmo tempo diferente e complementar à do trabalho. A dupla esforço-recompensa da ideologia do trabalho se vê passada para trás pela moral da promessa (a de honrar sua dívida) e da culpa (de tê-la contraído). A campanha da imprensa alemã contra os “parasitas gregos” dá testemunho da violência da lógica que permeia a economia da dívida. As mídias, os políticos e os economistas parecem só ter uma mensagem a transmitir para Atenas: “A culpa é sua”. Em suma, os gregos ficaram ao sol, enquanto os protestantes alemães são os burros de carga pelo bem da Europa. Essa apresentação da realidade não diverge da que transforma os desempregados em assistidos ou o Estado-Providência em uma “mamma estatal”.
O poder da dívida se apresenta como se não fosse exercido nem pela repressão nem pela ideologia. “Livre”, o devedor não tem, no entanto, outra escolha a não ser inscrever suas ações, suas escolhas no caminho definido pelo reembolso da dívida que contraiu. Você só é livre na medida em que seu modo de vida permite que você esteja “em dia com seus compromissos”. Nos Estados Unidos, por exemplo, 80% dos estudantes que terminam um mestrado em direito acumulam uma dívida média de US$ 77 mil se frequentaram uma escola particular ou de US$ 50 mil se estiveram numa universidade pública. Um estudante testemunhava recentemente no site do movimento Ocupar Wall Street, nos Estados Unidos: “Meu empréstimo é de cerca de US$ 75 mil. Logo não poderei mais pagá-lo. Meu pai, que tinha aceitado ser fiador, vai ser obrigado a pagar minha dívida. Logo mais será ele que não poderá mais pagá-la. Arruinei minha família ao tentar subir de classe”.1
O mecanismo também vale para as populações. Algumas semanas antes de seu falecimento, o antigo ministro das Finanças irlandês Brian Lenihan declarou: “Desde minha nomeação, em maio de 2008, eu tive o sentimento de que nossas dificuldades – ligadas ao setor bancário e às nossas finanças públicas – eram tais que nós praticamente tínhamos perdido nossa soberania”. Pedindo ajuda à União Europeia e ao FMI, continuava ele, “a Irlanda abdicava oficialmente de sua capacidade de decidir sobre seu próprio destino” (The Irish Times, 25 abr. 2011). O modo como o devedor se encontra “nas mãos” do credor lembra a última definição de poder de Foucault: ação que mantém como “súdito livre” aquele sobre quem ela é exercida.2 O poder da dívida o deixa livre, mas o incita – insistentemente! – a agir com o único propósito de honrar suas dívidas (mesmo que a utilização que a Europa e o FMI fazem da dívida leve a enfraquecer os “devedores” por meio da imposição de políticas econômicas que favorecem a “recessão”).
Gerações endividadas
Mas a relação credor-devedor não concerne somente à população atual. Enquanto sua redução não passar pelo aumento do fisco sobre os altos salários e as empresas – quer dizer, pela inversão da relação de forças entre as classes que levou à sua aparição –, as modalidades de sua gestão comprometerão as gerações por vir. Conduzindo os governos a prometer honrar suas dívidas, o capitalismo se apodera do futuro. Ele pode assim prever, calcular, medir e estabelecer equivalências entre os comportamentos atuais e os comportamentos futuros, enfim, criar uma ponte entre o presente e o futuro. Assim, o sistema capitalista reduz o que será ao que é, o futuro e suas possibilidades às relações de poder atuais. A estranha sensação de viver em uma sociedade sem tempo, sem possibilidades, sem ruptura possível – os “indignados” denunciam outra coisa? – encontra na dívida uma de suas principais explicações.
A relação entre tempo e dívida, empréstimo de dinheiro e apropriação do tempo pelo que empresta é conhecida há séculos. Se na Idade Média a distinção entre usura e lucro não estava bem estabelecida – a primeira sendo considerada apenas um excesso do segundo (ah! a sabedoria dos antigos!) –, via-se, por outro lado, muito bem o que “roubava” aquele que emprestava o dinheiro e em que consistia seu erro: ele vendia tempo, algo que não lhe pertencia e cujo único proprietário era Deus. Para Karl Marx, a importância histórica do empréstimo usurário deve-se ao fato de que, contrariamente à riqueza consumidora, este representa um processo gerador assimilável ao (e precursor do) capital, quer dizer, dinheiro que cria dinheiro.
As finanças velam para que as únicas escolhas e as únicas decisões possíveis sejam as da tautologia do dinheiro que cria dinheiro, da produção pela produção. Enquanto nas sociedades industriais ainda subsistia um tempo “aberto” – sob a forma do progresso ou da revolução –, hoje, o futuro e suas possibilidades, esmagados sob as somas espantosas mobilizadas pelas finanças e destinadas a reproduzir as relações de poder capitalista, parecem bloqueados, pois a dívida neutraliza o tempo, o tempo como criação de novas possibilidades, quer dizer, a matéria-prima de toda mudança política, social ou estética.
Notas:
(1) Citado por Tim Mark em “Unpaid student loans top $1 trillion” [Empréstimos não pagos de estudantes atingem US$ 1 trilhão], 19 out. 2011. Disponível em: .
(2) Michel Foucault, “Le sujet et le pouvoir” [O sujeito e o poder]. In: Dits et écrits [Ditos e escritos], volume IV, Gallimard, Paris, 2001.
* Maurizio Lazzarato é sociólogo e filósofo.
** Publicado originalmente no site Diplomatique.
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