por M K Bhadrakumar
[*]
A emergência de Israel, que sai da paisagem de fundo, só pode
significar uma coisa: que a crise síria encaminha-se para a fase
decisiva. Acenderam-se as luzes no palco de operações, e
começou a operação de esculpir a Síria. O que vem
aí não será bonito de ver. O paciente não
será anestesiado, e o cirurgião-chefe prefere liderar dos
bastidores, enquanto seus capangas fazem o serviço sujo.
Até agora, Turquia, Arábia Saudita e Qatar fizeram tudo o que podiam para desestabilizar a Síria e remover de lá o regime chefiado pelo presidente Bashar al-Assad. E Bashar continua vivo. Daqui em diante, só a perícia dos israelenses, para completar o serviço.
Alguém terá de enfiar a faca, bem fundo, nas costas de Bashar. O rei da Jordânia não pode fazer o serviço: mal chega aos joelhos de Bashar. Os xeiques sauditas e quataris, flácidos e gorduchos, não são dados a agitação física. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) prefere ser deixada de fora, depois que queimou os dedos na Líbia, em operação limítrofe com crime de guerra. Resta a Turquia.
Em princípio, a Turquia tem poder muscular, mas intervenção na Síria é missão de altíssimo risco, e uma das heranças mais duradouras de Kemal Ataturk é de a Turquia evitar expor-se a riscos. Além disso, os militares turcos não estão lá em muito boa forma.
O primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan tão pouco tem conseguido arrastar a maioria dos turcos a aceitarem fazer guerra contra a Síria. O próprio Erdogan navega águas perigosas, tentando aprovar emendas na Constituição turca que o transformarão num verdadeiro sultão – como se o presidente François Hollande da França passasse, de repente, a acumular as funções do primeiro-ministro Jean-Marc Ayrault e de Martine Aubry, presidente do Partido Socialista, além da presidência da França.
Obviamente, Erdogan não porá em risco a própria carreira política. Além do mais, há imponderáveis – uma potencial represália dentro da própria Turquia pela minoria alawita (que ressente o crescimento do salafismo no governo de Erdogan); além do perigo perene de cair numa armadilha armada por militantes curdos.
Al-Jazeera entrevistou um líder alawita na Turquia, na semana passada, que manifestou preocupação crescente com o tom cada vez mais sectário da disputa interna na Síria, inspirada por sunitas salafistas. Temem um levantamento salafista dentro da Turquia. Para os alawitas turcos, Assad "tenta manter coesa uma Síria pluralista e tolerante."
Planos de contingência
Mas tudo isso vai-se tornando irrelevante. Na sexta-feira, o New York Times noticiava, citando funcionários do governo em Washington, que o presidente Barack Obama dos EUA "está aumentando a ajuda aos rebeldes e redobrando esforços para construir uma coligação de países com ideias semelhantes às dos EUA para derrubar à força o governo [da Síria]". [2]
Noticiava também que agentes da CIA que estão no sul da Turquia "já há várias semanas" serão mantidos na missão de criar cada vez mais violência contra o regime sírio. Enquanto isso, EUA e Turquia também trabalham em conjunto para implantar um "governo provisório pós-Assad" na Síria.
Na mesma direcção, líderes da Irmandade Muçulmana, proscrita na Síria, organizaram um conclave de quatro dias em Istambul para criar "um partido islâmico". "Estamos prontos para a era pós-Assad, temos planos para a economia, os tribunais de justiça, a política" – anunciou o porta-voz da Irmandade Muçulmana.
Diz o New York Times que Washington se mantém em contacto íntimo com Ancara e Telavive, para discutir "uma gama ampla de planos de contingência" sobre "como administrar um colapso do governo sírio".
O plano operacional que está emergindo prevê que, enquanto Ancara avança nas operações clandestinas dentro da Síria (pagos pela Arábia Saudita e Qatar), Israel cruzará a fronteira, entrando na Síria pelo Sul e atacará Bashar militarmente, para degradar sua capacidade de resistir à ameaça turca.
A Turquia também avançou na guerra psicológica, projectando – com televisões, jornais e jornalistas – a ideia de que o regime sírio começa a rachar. Jornalistas e comentaristas turcos já propalam isso. Murat Yetkin, do Hurriyet, diário oficialista, reproduziu palavras de um oficial turco a dizer que:
Até agora, Turquia, Arábia Saudita e Qatar fizeram tudo o que podiam para desestabilizar a Síria e remover de lá o regime chefiado pelo presidente Bashar al-Assad. E Bashar continua vivo. Daqui em diante, só a perícia dos israelenses, para completar o serviço.
Alguém terá de enfiar a faca, bem fundo, nas costas de Bashar. O rei da Jordânia não pode fazer o serviço: mal chega aos joelhos de Bashar. Os xeiques sauditas e quataris, flácidos e gorduchos, não são dados a agitação física. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) prefere ser deixada de fora, depois que queimou os dedos na Líbia, em operação limítrofe com crime de guerra. Resta a Turquia.
Em princípio, a Turquia tem poder muscular, mas intervenção na Síria é missão de altíssimo risco, e uma das heranças mais duradouras de Kemal Ataturk é de a Turquia evitar expor-se a riscos. Além disso, os militares turcos não estão lá em muito boa forma.
O primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan tão pouco tem conseguido arrastar a maioria dos turcos a aceitarem fazer guerra contra a Síria. O próprio Erdogan navega águas perigosas, tentando aprovar emendas na Constituição turca que o transformarão num verdadeiro sultão – como se o presidente François Hollande da França passasse, de repente, a acumular as funções do primeiro-ministro Jean-Marc Ayrault e de Martine Aubry, presidente do Partido Socialista, além da presidência da França.
Obviamente, Erdogan não porá em risco a própria carreira política. Além do mais, há imponderáveis – uma potencial represália dentro da própria Turquia pela minoria alawita (que ressente o crescimento do salafismo no governo de Erdogan); além do perigo perene de cair numa armadilha armada por militantes curdos.
Al-Jazeera entrevistou um líder alawita na Turquia, na semana passada, que manifestou preocupação crescente com o tom cada vez mais sectário da disputa interna na Síria, inspirada por sunitas salafistas. Temem um levantamento salafista dentro da Turquia. Para os alawitas turcos, Assad "tenta manter coesa uma Síria pluralista e tolerante."
Planos de contingência
Mas tudo isso vai-se tornando irrelevante. Na sexta-feira, o New York Times noticiava, citando funcionários do governo em Washington, que o presidente Barack Obama dos EUA "está aumentando a ajuda aos rebeldes e redobrando esforços para construir uma coligação de países com ideias semelhantes às dos EUA para derrubar à força o governo [da Síria]". [2]
Noticiava também que agentes da CIA que estão no sul da Turquia "já há várias semanas" serão mantidos na missão de criar cada vez mais violência contra o regime sírio. Enquanto isso, EUA e Turquia também trabalham em conjunto para implantar um "governo provisório pós-Assad" na Síria.
Na mesma direcção, líderes da Irmandade Muçulmana, proscrita na Síria, organizaram um conclave de quatro dias em Istambul para criar "um partido islâmico". "Estamos prontos para a era pós-Assad, temos planos para a economia, os tribunais de justiça, a política" – anunciou o porta-voz da Irmandade Muçulmana.
Diz o New York Times que Washington se mantém em contacto íntimo com Ancara e Telavive, para discutir "uma gama ampla de planos de contingência" sobre "como administrar um colapso do governo sírio".
O plano operacional que está emergindo prevê que, enquanto Ancara avança nas operações clandestinas dentro da Síria (pagos pela Arábia Saudita e Qatar), Israel cruzará a fronteira, entrando na Síria pelo Sul e atacará Bashar militarmente, para degradar sua capacidade de resistir à ameaça turca.
A Turquia também avançou na guerra psicológica, projectando – com televisões, jornais e jornalistas – a ideia de que o regime sírio começa a rachar. Jornalistas e comentaristas turcos já propalam isso. Murat Yetkin, do Hurriyet, diário oficialista, reproduziu palavras de um oficial turco a dizer que:
Nosso pessoal [a inteligência turca] em campo já observa que a maioria urbana, que até agora preferia manter-se neutra, começa a apoiar os grupos da oposição. Acreditamos que o povo sírio começa a perceber que o governo está a rachar.
De facto, essas emocionantes versões também reflectem a
preocupação, no establishment turco, perante a evidência de
que o regime sírio não dá qualquer sinal de
capitulação apesar dos incansáveis golpes que tem sofrido
dos 'rebeldes'.
Missão para Moscovo
A esperança de Erdogan é que a inteligência turca consiga orquestrar algum tipo de "golpe palaciano" em Damasco, nos próximos dias ou semanas. O que mais alegraria Ancara seria ver Bashar substituído por uma estrutura de transição que conservasse elementos da actual estrutura baathista do estado, o que facilitaria uma transferência ordeira de poder para novo governo – quer dizer, em termos ideais, uma transição em nada diferente da que houve no Egipto depois da saída de Hosni Mubarak.
Mas Erdogan não tem certeza de que a Turquia consiga armar um golpe à moda Egipto, em Damasco. A corrida de Erdogan a Moscovo, quarta-feira passada, foi uma tentativa de sondar Moscovo para saber se seria possível montar uma estrutura de transição, nova e estável, em Damasco, mediante algum tipo de cooperação internacional. (Obama investiu o seu peso na missão de Erdogan: na quinta-feira telefonou pessoalmente ao presidente Vladimir Putin da Rússia, para discutir a Síria.)
Curiosamente, pouco antes de Erdogan sair para o encontro agendado com Putin no Kremlin, aconteceu em Damasco um ataque terrorista maciço que matou o ministro da Defesa da Síria e seu chefe de Inteligência. Considerado aquele evento, Moscovo ouviu polidamente o que Erdogan tinha a dizer e assegurou-lhe que manteria separação clínica entre os laços estratégicos que unem Rússia e Turquia, de um lado; e, de outro, a questão síria. E a posição russa manteve-se inalterada – como se viu bem claramente, no veto no Conselho de Segurança da ONU, uma semana depois do encontro com Erdogan.
Não há dúvida de que Moscovo já percebeu que o jogo na Síria se aproxima do fim. Em entrevista à rede de TV Rússia Today na sexta-feira, o embaixador da Rússia na ONU, Vitaly Churkin, [3] falou em termos excepcionalmente fortes sobre o que está acontecendo:
Missão para Moscovo
A esperança de Erdogan é que a inteligência turca consiga orquestrar algum tipo de "golpe palaciano" em Damasco, nos próximos dias ou semanas. O que mais alegraria Ancara seria ver Bashar substituído por uma estrutura de transição que conservasse elementos da actual estrutura baathista do estado, o que facilitaria uma transferência ordeira de poder para novo governo – quer dizer, em termos ideais, uma transição em nada diferente da que houve no Egipto depois da saída de Hosni Mubarak.
Mas Erdogan não tem certeza de que a Turquia consiga armar um golpe à moda Egipto, em Damasco. A corrida de Erdogan a Moscovo, quarta-feira passada, foi uma tentativa de sondar Moscovo para saber se seria possível montar uma estrutura de transição, nova e estável, em Damasco, mediante algum tipo de cooperação internacional. (Obama investiu o seu peso na missão de Erdogan: na quinta-feira telefonou pessoalmente ao presidente Vladimir Putin da Rússia, para discutir a Síria.)
Curiosamente, pouco antes de Erdogan sair para o encontro agendado com Putin no Kremlin, aconteceu em Damasco um ataque terrorista maciço que matou o ministro da Defesa da Síria e seu chefe de Inteligência. Considerado aquele evento, Moscovo ouviu polidamente o que Erdogan tinha a dizer e assegurou-lhe que manteria separação clínica entre os laços estratégicos que unem Rússia e Turquia, de um lado; e, de outro, a questão síria. E a posição russa manteve-se inalterada – como se viu bem claramente, no veto no Conselho de Segurança da ONU, uma semana depois do encontro com Erdogan.
Não há dúvida de que Moscovo já percebeu que o jogo na Síria se aproxima do fim. Em entrevista à rede de TV Rússia Today na sexta-feira, o embaixador da Rússia na ONU, Vitaly Churkin, [3] falou em termos excepcionalmente fortes sobre o que está acontecendo:
E continuou, recordando também o Iraque:"Infelizmente, a estratégia de nossos colegas ocidentais parece estar a ser encaminhada exclusivamente para o aumento das tensões na Síria e em torno da Síria. Não perdem uma oportunidade. Dessa vez, aproveitaram a circunstância de ser necessário prorrogar o mandato da missão de monitoramento que opera na Síria, e acrescentaram, no mesmo projecto de Resolução rascunhado por eles, inúmeras outras cláusulas inaceitáveis.".
"Não há quem não saiba que os maiores interventores humanitários do planeta – EUA e Grã-Bretanha – intervieram no Iraque, por exemplo, declamando os mais nobres pretextos (naquele caso, a existência de armas de destruição em massa que jamais existiram). O resultado, no Iraque, foram 150 mil mortes, só entre os civis; além de milhões de refugiados e legiões de seres humanos cujas vidas foram arruinadas e vagam pelo país. Por tudo isso, não se deixem enganar pela retórica do humanitarismo ocidental. Na política ocidental para a Síria, há muito mais geopolítica, que humanismo."
Antes de ir a Moscovo, Erdogan foi a Pequim, que também já sente
que os EUA estão batendo o martelo sobre a Síria. O
Global Times
comentou, em editorial, na sexta-feira, que "É provável que
o governo de Assad seja derrubado (...) diminuem muito rapidamente as
possibilidades de solução política (...) as coisas na
Síria podem mudar bem rapidamente."
[4]
Toni Donilon, Conselheiro para Segurança Nacional dos EUA, viaja agora para Pequim: vai tentar descobrir se há alguma possibilidade de conseguir que os chineses moderem a posição sobre a Síria.
Rússia e China vêem com bons olhos a era Erdogan, que ampliou os laços entre esses países e a Turquia. A Rússia obteve um contrato de $20 a $25 mil milhões de dólares para a construção de centrais nucleares na Turquia. A China atraiu a Turquia, como parceiro para os diálogos da Organização de Cooperação de Xangai. A Turquia realizou um segundo exercício de manobras militares com a China, recentemente; e sonha com ser a ponte que venha a unir a NATO a Pequim.
O homem que não vendeu sua alma [5]
Mesmo assim, ambas, Rússia e China considerarão, na análise, que, com uma "nova guerra fria" em construção, Washington espera que a Turquia volte ao ninho antigo e desempenhe o papel de aliada numa vasta faixa de terra que se estende do Mar Negro ao Cáucaso e ao Cáspio e até a Ásia Central. Em última análise, os EUA jogam com inúmeros trunfos, cortesia da era da Guerra-fria, para manipular as políticas turcas. É o que se vê claramente na centralidade que Washington atribui ao líder curdo iraquiano Massoud Barzani, na estratégia geral dos EUA.
Obama recebeu-o recentemente na Casa Branca. Barzani passou a ser o "eixo de conexão" das políticas de EUA-Turquia para a Síria. Isso acontece poucos meses depois de a ExxonMobil assinar, em Outubro, contratos para desenvolver os enormes campos de petróleo localizados no Curdistão, região controlada por Barzani, ignorando os protestos de Bagdad de que tal negócio, firmado com uma autoridade provincial e passando por cima do governo central, viola a soberania do Iraque.
Na semana passada, a Chevron, gigante do petróleo dos EUA, anunciou que também adquirira 80% do controle de outra companhia que opera na região, cobrindo uma área total de 1.124 quilómetros quadrados sob o controle de Barzani.
A entrada das empresas ExxonMobile e Chevron muda o jogo na política regional para a Síria. O ponto é que a melhor via para transportar até o mercado mundial o que for extraído dos depósitos gigantes de gás e petróleo no Curdistão é o porto sírio de Latáquiia, no Mediterrâneo oriental. Não há dúvida de que aí está uma nova dimensão a considerar no plano de jogo de EUA-Turquia sobre a Síria.
A empresa turca de engenharia e construção Siyah Kalem apresentou projecto para o transporte do gás natural extraído do Curdistão. Evidentemente, em algum lugar do subsolo, os interesses do business corporativo da Anatólia (que tem laços com o partido islâmico que governa a Turquia) e a orientação da política externa turca passaram a convergir. Os interesses dos EUA e da Turquia sobrepõem-se na geopolítica das reservas de energia do Norte do Iraque.
Barzani não é só parceiro comercial de Washington e Ancara; é também agente chave que pode ajudar a encaminhar o problema da Turquia com os curdos. Com o apoio de Washington, Barzani lançou um projecto para reposicionar as várias facções curdas – turcos, iraquianos e sírios – numa nova trilha política.
No mês passado, Barzani organizou reunião das facções curdas em Arbil. Em termos claros: Barzani tentou subornar os líderes de várias facções curdas com fundos que lhe chegaram de Ancara. Diz que conseguiu reconciliar os diferentes grupos curdos sírios. (A insurreição curda na Turquia é comandada por sírios de etnia curda.) Diz também que conseguiu convencer os curdos sírios a romper os laços que os ligam a Bashar e a alinhar-se ao lado da oposição síria.
Esses ecos de Arbil têm peso vital no que Erdogan venha a fazer sobre a Síria. Como lembrou recentemente um importante analista do Washington Institute for Near East Policy, Soner Cagaptay, o centro da questão é que "grande parte da minoria curda, agitada e bem organizada na Síria, não confia na Turquia." [7]
O salafismo em asas israelenses
Facto é que, em última análise, só Israel pode resolver o dilema de Erdogan. O ministro da Defesa de Israel Ehud Barak declarou no fim-de-semana que "a Síria tem mísseis antiaéreos e mísseis terra-terra avançados e elementos de armas químicas. Ordenei que o Exército de Israel se prepare para uma situação na qual tenhamos de considerar a possibilidade de um ataque". [8]
Barak acrescentou que "no momento em que [Bashar] começar a cair, nós [Israel] iniciaremos monitoramento de inteligência e nos associaremos a outras agências." Falou depois de uma visita secreta de Donilon a Israel, na semana anterior. Nos calcanhares da visita de Donilon, chegou a Telavive a secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton, depois de um encontro histórico no Cairo com o presidente recém eleito Mohammed Morsi da Irmandade Muçulmana, que garantiu a Washington que não pensa criar qualquer problema para Israel, em futuro previsível.
As declarações de Barak rompem o fino véu de indiferença que Telavive manteve até aqui sobre os desenvolvimentos sírios. O que emerge, em retrospectiva, é que Washington manteve Israel em resguardo até o momento de demolir fisicamente a maquinaria de guerra de Bashar – empreitada que Erdogan não quer assumir ou não tem capacidade para assumir.
O mais provável é que Erdogan já estivesse de sobreaviso, para aparecer ao lado de Barak, mas, político arguto, manteve as aparências de quem muito sofria com a crise síria – ao mesmo tempo em que, clandestinamente, a alimentava.
Em versão simples, Washington passou a perna a Moscovo e Pequim. Sempre afirmou que a ideia de os EUA intervirem directamente na Síria, ou efectuar intervenção indirecta, por operação da NATO, como na Líbia, jamais passara pela cabeça de Obama. Como agora se vê, Obama não mentia.
O que se desdobra hoje é visão espantosamente estranha: o salafismo voa nas asas da Força Aérea israelense e vai aterrar em Damasco. Erdogan voltará, com renovado vigor, a sacudir a árvore de Bashar em Damasco. E, a qualquer momento, em futuro próximo, de repente, Barak começará a podar os galhos da árvore, varrendo-os como raio.
Erdogan e Barak deixarão tão nua a árvore de Bashar, tão desamparada, que ela perceberá a futilidade do esforço para se manter erecta sobre as suas raízes. E nada de "intervenção militar", nada de operações da NATO, ninguém poderá fazer qualquer analogia com o que foi cometido na Líbia. Nem Erdogan ordenará que seu exército marche sobre a Síria.
A secretária de Estado Clinton diria que isso é o "smart power". Num ensaio grandiloquente intitulado "A arte do Smart Power", de sua autoria, analisando o curioso desenlace do conto da Primavera Árabe, na semana passada Clinton escreveu que agora os EUA "lideram por novas vias". [6]
Clinton esclarece que os EUA estão a expandir a "sua caixa de ferramentas de política externa para integrar todos os activos e parceiros, e fundamentalmente mudamos o modo como nós [os EUA] fazemos negócios. (...) A trilha que interliga todos os nossos esforços é um compromisso com adaptar a liderança global dos EUA às necessidades de um mundo em mudança".
No fim, Erdogan fará da pedra, sopa, que engolirá untada em banha de porco. A verdade nua e crua é que Israel fará por ele o serviço sujo na Síria.
Nada resta a Erdogan, além de aceitar o facto de que não passa de um dos instrumentos da "caixa de ferramentas" de Washington – nada mais, nada menos. Seu destino nunca foi liderar o Oriente Médio muçulmano. O ocidente apenas lhe deu corda, para que se enforcasse na sua conhecida vaidade.
Liderar o Oriente Médio muçulmano é prerrogativa exclusiva de Washington.
NT
Toni Donilon, Conselheiro para Segurança Nacional dos EUA, viaja agora para Pequim: vai tentar descobrir se há alguma possibilidade de conseguir que os chineses moderem a posição sobre a Síria.
Rússia e China vêem com bons olhos a era Erdogan, que ampliou os laços entre esses países e a Turquia. A Rússia obteve um contrato de $20 a $25 mil milhões de dólares para a construção de centrais nucleares na Turquia. A China atraiu a Turquia, como parceiro para os diálogos da Organização de Cooperação de Xangai. A Turquia realizou um segundo exercício de manobras militares com a China, recentemente; e sonha com ser a ponte que venha a unir a NATO a Pequim.
O homem que não vendeu sua alma [5]
Mesmo assim, ambas, Rússia e China considerarão, na análise, que, com uma "nova guerra fria" em construção, Washington espera que a Turquia volte ao ninho antigo e desempenhe o papel de aliada numa vasta faixa de terra que se estende do Mar Negro ao Cáucaso e ao Cáspio e até a Ásia Central. Em última análise, os EUA jogam com inúmeros trunfos, cortesia da era da Guerra-fria, para manipular as políticas turcas. É o que se vê claramente na centralidade que Washington atribui ao líder curdo iraquiano Massoud Barzani, na estratégia geral dos EUA.
Obama recebeu-o recentemente na Casa Branca. Barzani passou a ser o "eixo de conexão" das políticas de EUA-Turquia para a Síria. Isso acontece poucos meses depois de a ExxonMobil assinar, em Outubro, contratos para desenvolver os enormes campos de petróleo localizados no Curdistão, região controlada por Barzani, ignorando os protestos de Bagdad de que tal negócio, firmado com uma autoridade provincial e passando por cima do governo central, viola a soberania do Iraque.
Na semana passada, a Chevron, gigante do petróleo dos EUA, anunciou que também adquirira 80% do controle de outra companhia que opera na região, cobrindo uma área total de 1.124 quilómetros quadrados sob o controle de Barzani.
A entrada das empresas ExxonMobile e Chevron muda o jogo na política regional para a Síria. O ponto é que a melhor via para transportar até o mercado mundial o que for extraído dos depósitos gigantes de gás e petróleo no Curdistão é o porto sírio de Latáquiia, no Mediterrâneo oriental. Não há dúvida de que aí está uma nova dimensão a considerar no plano de jogo de EUA-Turquia sobre a Síria.
A empresa turca de engenharia e construção Siyah Kalem apresentou projecto para o transporte do gás natural extraído do Curdistão. Evidentemente, em algum lugar do subsolo, os interesses do business corporativo da Anatólia (que tem laços com o partido islâmico que governa a Turquia) e a orientação da política externa turca passaram a convergir. Os interesses dos EUA e da Turquia sobrepõem-se na geopolítica das reservas de energia do Norte do Iraque.
Barzani não é só parceiro comercial de Washington e Ancara; é também agente chave que pode ajudar a encaminhar o problema da Turquia com os curdos. Com o apoio de Washington, Barzani lançou um projecto para reposicionar as várias facções curdas – turcos, iraquianos e sírios – numa nova trilha política.
No mês passado, Barzani organizou reunião das facções curdas em Arbil. Em termos claros: Barzani tentou subornar os líderes de várias facções curdas com fundos que lhe chegaram de Ancara. Diz que conseguiu reconciliar os diferentes grupos curdos sírios. (A insurreição curda na Turquia é comandada por sírios de etnia curda.) Diz também que conseguiu convencer os curdos sírios a romper os laços que os ligam a Bashar e a alinhar-se ao lado da oposição síria.
Esses ecos de Arbil têm peso vital no que Erdogan venha a fazer sobre a Síria. Como lembrou recentemente um importante analista do Washington Institute for Near East Policy, Soner Cagaptay, o centro da questão é que "grande parte da minoria curda, agitada e bem organizada na Síria, não confia na Turquia." [7]
O salafismo em asas israelenses
Facto é que, em última análise, só Israel pode resolver o dilema de Erdogan. O ministro da Defesa de Israel Ehud Barak declarou no fim-de-semana que "a Síria tem mísseis antiaéreos e mísseis terra-terra avançados e elementos de armas químicas. Ordenei que o Exército de Israel se prepare para uma situação na qual tenhamos de considerar a possibilidade de um ataque". [8]
Barak acrescentou que "no momento em que [Bashar] começar a cair, nós [Israel] iniciaremos monitoramento de inteligência e nos associaremos a outras agências." Falou depois de uma visita secreta de Donilon a Israel, na semana anterior. Nos calcanhares da visita de Donilon, chegou a Telavive a secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton, depois de um encontro histórico no Cairo com o presidente recém eleito Mohammed Morsi da Irmandade Muçulmana, que garantiu a Washington que não pensa criar qualquer problema para Israel, em futuro previsível.
As declarações de Barak rompem o fino véu de indiferença que Telavive manteve até aqui sobre os desenvolvimentos sírios. O que emerge, em retrospectiva, é que Washington manteve Israel em resguardo até o momento de demolir fisicamente a maquinaria de guerra de Bashar – empreitada que Erdogan não quer assumir ou não tem capacidade para assumir.
O mais provável é que Erdogan já estivesse de sobreaviso, para aparecer ao lado de Barak, mas, político arguto, manteve as aparências de quem muito sofria com a crise síria – ao mesmo tempo em que, clandestinamente, a alimentava.
Em versão simples, Washington passou a perna a Moscovo e Pequim. Sempre afirmou que a ideia de os EUA intervirem directamente na Síria, ou efectuar intervenção indirecta, por operação da NATO, como na Líbia, jamais passara pela cabeça de Obama. Como agora se vê, Obama não mentia.
O que se desdobra hoje é visão espantosamente estranha: o salafismo voa nas asas da Força Aérea israelense e vai aterrar em Damasco. Erdogan voltará, com renovado vigor, a sacudir a árvore de Bashar em Damasco. E, a qualquer momento, em futuro próximo, de repente, Barak começará a podar os galhos da árvore, varrendo-os como raio.
Erdogan e Barak deixarão tão nua a árvore de Bashar, tão desamparada, que ela perceberá a futilidade do esforço para se manter erecta sobre as suas raízes. E nada de "intervenção militar", nada de operações da NATO, ninguém poderá fazer qualquer analogia com o que foi cometido na Líbia. Nem Erdogan ordenará que seu exército marche sobre a Síria.
A secretária de Estado Clinton diria que isso é o "smart power". Num ensaio grandiloquente intitulado "A arte do Smart Power", de sua autoria, analisando o curioso desenlace do conto da Primavera Árabe, na semana passada Clinton escreveu que agora os EUA "lideram por novas vias". [6]
Clinton esclarece que os EUA estão a expandir a "sua caixa de ferramentas de política externa para integrar todos os activos e parceiros, e fundamentalmente mudamos o modo como nós [os EUA] fazemos negócios. (...) A trilha que interliga todos os nossos esforços é um compromisso com adaptar a liderança global dos EUA às necessidades de um mundo em mudança".
No fim, Erdogan fará da pedra, sopa, que engolirá untada em banha de porco. A verdade nua e crua é que Israel fará por ele o serviço sujo na Síria.
Nada resta a Erdogan, além de aceitar o facto de que não passa de um dos instrumentos da "caixa de ferramentas" de Washington – nada mais, nada menos. Seu destino nunca foi liderar o Oriente Médio muçulmano. O ocidente apenas lhe deu corda, para que se enforcasse na sua conhecida vaidade.
Liderar o Oriente Médio muçulmano é prerrogativa exclusiva de Washington.
[1] Orig. smart power. Sobre a expressão, ver Eric Etheridge, New York Times, 14/1/2009, "How 'Soft Power' Got 'Smart'" [como o 'poder suave' tornou-se 'inteligente'], onde se lê: "No discurso que fez ao aceitar a indicação para o cargo de secretária de Estado do governo Obama, Hillary Clinton usou quatro vezes a expressão smart power. Na declaração, que antecedeu o discurso de aceitação do cargo, usou nove vezes a mesma expressão" ( http://opinionator.blogs.nytimes.com/2009/01/14/how-soft-power-got-smart/ )
[2] 21/7/2012, New York Times, www.nytimes.com/...
[3] 20/7/2012, "Não se deixem enganar pela retórica do humanitarismo ocidental", Vitaly Churkin, embaixador da Rússia à ONU, à rede Russia Today (entrevista transcrita e traduzida ao português, em redecastorphoto.blogspot.com.br/...
[4] 20/7/2012, Global Times, Pequim, em http://www.globaltimes.cn/content/722217.shtml
[5] Orig. A man for all seasons. É expressão inglesa do séc. XVI, tradicionalmente aplicada a Thomas More. Dá título também a uma biografia cinematográfica, que recebeu no Brasil o título de "O homem que não vendeu sua alma" [que se aproveita nessa tradução] .
[6] 18/6/2012, "The art of smart power", Hillary Clinton, New Statesman, em www.newstatesman.com/... Aí se lê, na conclusão do artigo: "Não há precedente real na história para o papel que os EUA desempenham hoje ou para a responsabilidade que assumem sobre os seus ombros. Isso é o que torna tão excepcional a liderança dos EUA. Por isso confio que continuaremos a servir e a defender uma ordem global pacífica e próspera ainda por muitos anos no futuro".
[7] 20/7/2012, globalpublicsquare.blogs.cnn.com/... .
[8] 20/7/2012, Jerusalem Post, Israel, http://www.jpost.com/Defense/Article.aspx?id=278314 .
22/Julho/2012
Ver também:
[*] Ex-embaixador da Índia em Moscovo.
O original encontra-se em http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/NG24Ak01.html
Tradução (com pequenas alterações) de Vila Vudu, vila.vudu@gmail.com .
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
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