terça-feira, 21 de agosto de 2012

Egito vs EUA 21/08/2012


20/8/2012, M K Bhadrakumar*, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
A pergunta mais imediata que se tem de fazer aqui é: o que os EUA teriam a ganhar, afinal, na conquista de Damasco, que perseguem com violência e bestialidade brutais, se já perderam Cairo e Bagdá?
A preocupação e o humor sombrio devem estar aumentando em Washington. O Egito afasta-se da aliança com os EUA – e a dura verdade é que já não é mais possível ocultar ou encobrir o movimento dos egípcios.
Não é exatamente o que Washington entendia como desenvolvimento do “lado certo da história”. No Egito, a “Primavera Árabe” gerou estranho fruto – variante pura, bem diferente dos híbridos brotados na Tunísia, Líbia ou Iêmen.
Barack Obama
Considere-se o seguinte. O presidente Barack Obama foi dos primeiros chefes de Estado a congratular-se com Mohammed Mursi, imediatamente depois de sua vitória nas urnas, em maio. Obama quebrou o protocolo e telefonou para dar parabéns ao novo presidente – e mostrou a ansiedade que acometia Washington, disposta a qualquer coisa para criar química esplêndida com o novo Egito. 
Em seguida, Obama escreveu carta a Mursi e mandou o vice-secretário de Estado William Burns voar imediatamente ao Cairo, para entregá-la em mãos. Logo depois, lá se foi a secretária de Estado Hillary Clinton ao Cairo, também para audiência com Mursi. E adiante, também o secretário de Defesa Leon Panetta esteve no Cairo: tudo isso, no primeiro mês de Mursi na presidência.
Panetta retornou a Washington satisfeitíssimo, por a liderança militar egípcia, que sempre foi a âncora da estratégia regional dos EUA e zeladora dos interesses dos EUA no Egito, e Mursi, estarem não só se entendendo lindamente, mas, também, porque até já tinham agenda comum.
O resto é história. Em poucos dias ou semanas de otimismo de Panetta, Mursi, sem cerimônias, despachou os militares, que viviam nos corredores do poder político, de volta aos quartéis. Washington não teve escolha além de fazer cara de que não era com ela, detendo-se um passo antes de divulgar a notícia-barriga de que Mursi teria consultado o governo Obama antes de endurecer, de vez, com os militares egípcios.
Até que, no final da semana, a história chegou ao mundo. Os EUA bem podem estar enfrentando pesadíssimo golpe contra seus robustos esforços para influenciar o governo de Mursi. A carta de que Burns foi portador há um mês, ao que se suspeita, continha convite de Obama para que Mursi o visitasse em Washington.
Mohammed Mursi
E Mursi viajará. Mas na direção de China e Irã.
O anúncio apareceu na página oficial da presidência do Egito na internet, no domingo. Tudo indica que Mursi está encadeando duas visitas: à China e ao Irã. Que fará visita oficial à China, a partir da 2ª-feira, atendendo a convite do presidente Hu Jintao. E que, de Pequim, parece interessado a viajar a Teerã, na 5ª-feira, para participar da reunião dos países do Movimento dos Não Alinhados.
Pequim ainda não anunciou a visita de Mursi. O jornal estatal chinês China Daily, de fato, publicou comentário na 2ª-feira, intitulado “Visita de Mursi ao Irã pode reformatar a paisagem política” – sem qualquer referência à possibilidade de o presidente egípcio incluir Pequim no roteiro.
Mas o Al-Ahram, importante jornal egípcio, noticiou que Mursi e Hu “planejam discutir questões cruciais do mundo árabe, como a situação da Síria e a questão palestina. Os dois presidentes também discutirão modos de ampliar o intercâmbio comercial entre seus respectivos países, além de aumento dos investimentos chineses no Egito”.
Al-Ahram resumiu: “As duas visitas podem assinalar mudanças na política exterior do Egito, dado que esses dois países [China e Irã] vivem momento de relações tensas com os EUA, país do qual o Egito sempre foi leal aliado, sobretudo durante o governo do deposto presidente Hosni Mubarak”.
Nem poodle, nem pau-mandado
Fratenidade Muçulmana
Fato é que o Oriente Médio parece estar despertando para a evidência de que os americanos foram mandados dormir na casa do cachorro, no Cairo. Sem dúvida, é decisão que parece carregar a marca da Fraternidade Muçulmana. Que planos terão em mente os Irmãos?
Primeiro, os Irmãos sabem que esse movimento cairá extremamente bem, em boa harmonia com o estado de espírito da rua egípcia, que veementemente demanda nova orientação para a política exterior, que despache para a estratosfera a parceria dos anos Mubarak com os EUA e Israel, e o retorno a uma política externa egípcia independente.
Segundo, Mursi não quer depender excessivamente dos empréstimos do Fundo Monetário Internacional e/ou dos ricos estados do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), empréstimos que estão sendo fortemente pressionado a aceitar e os quais, como todos sabem, sempre vêm acompanhados de pesados encargos políticos.
O Fundo Monetário Internacional está impondo termos duros, para conceder um empréstimo de US$ 3,2 bilhões ao Egito. O Banco de Desenvolvimento Islâmico, com sede em Jeddah, concedeu financiamentos ao Egito que montam a $2,5 bilhões. O Qatar está depositando $2 bilhões no Banco Central do Egito, destinado a aliviar a falta de reservas do país. Ano passado, em maio, a Arábia Saudita anunciou ajuda ao Egito no total de $4 bilhões em “empréstimos baratos, depósitos e avais.” Estava em pleno curso uma guerra, comandada pelos EUA, para subornar a alma do Egito.
Hu Jintao
Muito razoavelmente, Mursi vê a China como investidor potencial na economia egípcia, porque Pequim não inclui cláusulas políticas na cooperação econômica e, em termos gerais, joga pelas regras do mercado, afinada com as políticas neoliberais que Mursi estaria trabalhando para construir. A questão é que os Irmãos sabem muito bem que os países do CCG – Bahrain, Kuwait, Omã, Qatar, Arábia Saudita – mas muito especialmente a Arábia Saudita, veem os movimentos políticos dos Irmãos como incômodo intrínseco e como ameaça existencial contra os seus respectivos regimes autoritários. A Arábia Saudita, sobretudo, sempre teve relação tumultuada com a Fraternidade Muçulmana.
O falecido Príncipe Coroado Nayef usou métodos de extrema brutalidade para reprimir as atividades da Fraternidade na Arábia Saudita. Recentemente, no sábado, o jornal do establishment saudita Asharq Al-Awasat dava renovados sinais da antipatia que Mursi inspira aos sauditas, em coluna assinada pelo editor-chefe, Osman Mirghani, na qual se lia:
O golpe que Mursi assestou [contra os militares], que lhe permitiu assenhorear-se do poder, foi repentino e não previsto, não só pelo alto comando do SCAF, mas tampouco foi previsto pelo próprio povo egípcio (...) São gestos que se aproximam perigosamente de um golpe de estado (...). A Fraternidade Muçulmana tentou dominar toda a arena política, depois que sequestrou a revolução e empurrou a onda revolucionária para longe do governo, e sem que se possa esquecer que só bem tardiamente se engajaram na revolução egípcia (...). A Fraternidade sempre buscou minar a influência de outros partidos e, para o mesmo objetivo, recusou-se a cooperar ou coordenar ações com outros partidos também durante o período de transição que antecedeu as eleições.
O Egito é hoje governado por declarações e decisões ‘constitucionais’ lançadas por um presidente que tem muito mais poderes do que Mubarak algum dia teve (...) Se há quem diga que Mursi (...) libertou-se e libertou a presidência da custódia e da intervenção do exército, então a pergunta mais imediata que se tem de fazer aqui é: será que Mursi algum dia se libertará da Fraternidade, que parece presente em todas as suas decisões e medidas?
É útil ter em mente que esse agudo criticismo apareceu um mês depois da visita de Mursi a Riad, a convite do rei Abdullah e dois dias depois da reunião extraordinária da Organização da Conferência Islâmica [Organization of Islamic Conference, OIC] em Jeddah, à qual Mursi compareceu.
A narrativa foi que Mursi, em sua fala à reunião da OIC pediu “mudança de regime” na Síria – o que implicaria que o Egito seria fiel seguidor de campo da linha definida por Arábia Saudita, Qatar e Turquia. A verdade é que Mursi ignorou a troika e propôs que a solução para a Síria fosse buscada por um Grupo de Contato formado de Arábia Saudita, Turquia, Irã e Egito, grupo que mediaria um diálogo sírio e a reconciliação com vistas a construir transição política pacífica, em atmosfera livre de violência.
Apertos de mão e beijos
Mohamed Ahmadinejad
Claro: a inclusão do Irã no Grupo de Contato que Mursi propôs foi afronta à Arábia Saudita, que hospedava a reunião da OIC. E houve também a linguagem corporal, que sempre conta muito nas reuniões intra-árabes. Às margens da conferência, Mursi trocou apertos de mão e beijos com o presidente Mahmud Ahmadinejad do Irã e falou-lhe com visíveis manifestações de consideração e afeto.
Teerã imediatamente acolheu a proposta de Mursi, movimento que, por sua vez, conquistou simpatias na Fraternidade no Cairo, que viu, na calorosa resposta de Teerã confirmação segura de que o Egito começa a reconquistar pelo menos parte do prestígio diplomático e estratégico de que gozou na região, no passado. Formou-se uma espécie de parceria de mútua admiração entre o Cairo e Teerã, que atravessou os áridos desertos da Península Arábica.
Da performance de Mursi na reunião da OIC, três coisas emergiram.
Primeiro, Mursi sinalizou que o Egito pretende seguir política externa independente em relação às agendas do ocidente e dos países do Golfo do petróleo. Significa dizer que o Egito não mais seguirá humildemente os passos que lhe indiquem nem aceitará posição subalterna.
Segundo, o Egito não está vendo a Turquia como exemplo a ser seguido, apesar dos altos decibéis da propaganda ocidental que, desde a Primavera Árabe, tenta fazer crer que o islamismo do tipo que hoje se vê no governo de Recep Tayyip Erdogan seria o que o médico receitaria para todo o Oriente Médio. Erdogan voltou de uma visita ao Cairo, ano passado, certo que fora consagrado como uma espécie de rock star ídolo dos egípcios. Aparentemente Mursi não se alinha entre seus fãs.
Terceiro, a decisão de Mursi, de incluir o Irã como parceiro na busca da paz para a Síria implica rejeitar completamente a abordagem ocidental e turco-saudita. Nos corredores da conferência da OIC, o Ministro de Relações Exteriores do Egito, Mohammed Amr também se encontrou com o ministro iraniano, Al Akbar Salehi, e disse-lhe que Teerã deve, sim, ajudar a resolver a crise síria.
Sim, todos esses movimentos são iniciais, mas a decisão de Mursi visitar o Irã (país com o qual o Egito não tem relações diplomáticas) só pode ser interpretada como movimento estratégico de consequências profundas para a segurança regional e a política global. Não pode passar sem qualquer consideração ou explicação.
Por um lado, o Irã é o primeiro país muçulmano, depois da Arábia Saudita, que Mursi visitará no Oriente Médio. A rua árabe saberá ver que os Irmãos do Egito rejeitam a ideia (difundida pelo ocidente e pela Arábia Saudita) segundo a qual um “Crescente Xiita” liderado pelo Irã seria ameaça às comunidades sunitas no Oriente Médio muçulmano.
Muito visivelmente, o Egito planeja normalizar suas relações com o Irã, já bem distanciado do Egito de Mubarak e de seus medos maniqueístas de “golpes” iranianos para desestabilizar o país. As coisas mudaram. O vide-líder da Fraternidade, Mahmoud Ezzat, disse recentemente à Associated Press: “O velho regime costumava converter em fantasmas os seu [de Mubarak] rivais. Nós [a Fraternidade] não queremos fazer como Mubarak e não exageramos o perigo que o Irã representaria”.
P5+1 - Irã
Do ponto de vista de Teerã, tudo isso é importante abertura diplomática e geopolítica em momento difícil, quando as conversações chegaram a um impasse no grupo P5+1-Irã. Posto em versão simplificada, as equações no Oriente Médio foram, de repente, libertadas, entraram em fluxo.
Tudo havia sido pensado para ser uma continha simples: “o campo de Teerã” (Irã, Síria, Hezbollah e Hamás) versus “o campo dos EUA” (Arábia Saudita, Israel, Turquia e Qatar). Mas Mursi, sem fazer alarde, está cruzando a barreira geopolítica.
Pode estar a caminho uma forte sacudida na política regional? No mínimo, o caleidoscópio girou e, de repente, vê-se que as situações na Síria, no Líbano ou em Gaza podem começar a eivar-se no novas possibilidades. (Por falar nisso, Mursi deixou bem claro, na conferência da OIC, que qualquer atenção que se desse à crise síria de modo algum desviaria a atenção do problema palestino – questão sempre crucial para o mundo muçulmano).
A grande pergunta é: o que move a Fraternidade egípcia? A interpretação convencional diz que os Irmãos são gente cautelosa; operam devagar e não se apressarão na tarefa de refazer o cálculo do poder no Cairo nem, menos ainda, na remodelagem da política externa do Egito. Mas é visível que, em oito dias, começou a emergir um retrato diferente dos Irmãos. Como explicar a mudança?
Não há retorno possível à era Mubarak
Visto em retrospecto, o movimento de Mursi contra os militares há uma semana foi golpe preventivo. Os Irmãos avaliaram que, no mínimo, surfariam a onda das altas expectativas da opinião pública, que quer ver mudanças fundamentais nas políticas nacionais; e que qualquer adiamento ou procrastinação na ação resultaria em os militares concentrarem cada vez mais poder, até virarem a mesa, em termos políticos, e esvaziarem a presidência de Mursi.
Mossad - Logo
Simultaneamente, os Irmãos não confiam no papel dos EUA e em suas intenções reais ante a liderança de Mursi. Vale lembrar que a Fraternidade (e o Hamás) acusaram declarada e abertamente o MOSSAD israelense de ser responsável pelo ataque terrorista no Sinai dia 5/8.
Não se sabe exatamente o que levou os Irmãos àquela conclusão, mas o Sinai é terra sem lei há décadas, e é inconcebível que a inteligência israelense não conheça os grupos de militantes islamistas ativos ali. De fato, ninguém sabe o que realmente aconteceu dia 5/8, e absolutamente ninguém que conheça a região acreditará que os beduínos teriam meios para organizar operação tão altamente profissional.
E há outra coisa também chocante. O ataque terrorista no Sinai aconteceu logo depois de Mursi reunir-se com os líderes do Hamás no Cairo, reunião depois da qual foi decidido reduzir parcialmente as restrições na passagem de Rafah (o que, claro, foi como furar o “bloqueio” de Israel contra Gaza).
Seja como for, o ataque no Sinai aconteceu quando os EUA aumentavam a pressão sobre Mursi para que ressuscitasse os laços militares e de segurança da era Mubarak entre Cairo, Washington e Telavive. Ambos, Clinton e Panetta, muito se empenharam para convencer Mursi a reencarnar o espírito da cooperação tripartite de segurança, EUA-Egito-Israel, no Sinai.
Os Irmãos não deixariam de ver que essa volta às políticas da era Mubarak seria muito mal recebida pelo público egípcio – tanto os islâmicos como os “secularistas” – o que desacreditaria a Fraternidade e corroeria a credibilidade da presidência de Mursi; que, em suma, seria suicídio político. Os Irmãos tampouco deixariam de ver que qualquer configuração das estratégias regionais do Egito cujo lócus se mantivesse no terrorismo, fecharia no nascedouro qualquer possibilidade de repensar criativamente a questão de Gaza.
Em resumo, a decisão de Mursi de abrir uma linha para Pequim e Teerã deve ser analisada sobre pano de fundo grande, amplo. Os Irmãos perceberam a tempo que havia um plano de EUA-Israel para desestabilizar o governo de Mursi, se não se alinhasse ao diktat de Washington. A partir disso, se puseram a procurar meios e modos para reduzir o atual nível de superdependência do Egito em relação aos EUA e seus aliados no Golfo; para tanto, tentam diversificar as relações externas do país e somar parceiros de peso que possam ajudar na construção da autonomia estratégica do Egito.
As próximas semanas prometem ser momento de definição na política do Oriente Médio, com realinhamentos interárabes, com a viagem de Mursi a Pequim e Teerã. Com o Egito distanciando-se, as estratégias dos EUA na região espatifam-se. A pergunta mais imediata que se tem de fazer aqui é: o que os EUA teriam a ganhar, afinal, na conquista de Damasco, que perseguem com violência e bestialidade brutais, se já perderam Cairo e Bagdá?
MK Bhadrakumar* foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The HinduAsia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.





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