20/8/2012, M K
Bhadrakumar*, Asia Times
Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
A
pergunta mais imediata que se tem de fazer aqui é: o que os EUA teriam a ganhar,
afinal, na conquista de Damasco, que perseguem com violência e bestialidade
brutais, se já perderam Cairo e Bagdá?
A
preocupação e o humor sombrio devem estar aumentando em Washington. O
Egito afasta-se da aliança com os EUA – e a dura verdade é que
já não é mais possível ocultar ou encobrir o movimento dos egípcios.
Não
é exatamente o que Washington entendia como desenvolvimento do “lado certo da
história”. No Egito, a “Primavera Árabe” gerou estranho fruto – variante pura,
bem diferente dos híbridos brotados na Tunísia, Líbia ou Iêmen.
Barack Obama |
Considere-se
o seguinte. O presidente Barack Obama foi dos primeiros chefes de Estado a
congratular-se com Mohammed Mursi, imediatamente depois de sua vitória nas
urnas, em maio. Obama quebrou o protocolo e telefonou para dar parabéns ao novo
presidente – e mostrou a ansiedade que acometia Washington, disposta a qualquer
coisa para criar química esplêndida com o novo Egito.
Em
seguida, Obama
escreveu carta a Mursi e mandou o vice-secretário de Estado William Burns voar
imediatamente ao Cairo, para entregá-la em mãos. Logo depois, lá se foi a
secretária de Estado Hillary Clinton ao Cairo, também para audiência com Mursi.
E adiante, também o secretário de Defesa Leon Panetta esteve no Cairo: tudo
isso, no primeiro mês de Mursi na presidência.
Panetta
retornou a Washington satisfeitíssimo, por a liderança militar egípcia, que
sempre foi a âncora da estratégia regional dos EUA e zeladora dos interesses dos
EUA no Egito, e Mursi, estarem não só se entendendo lindamente, mas, também,
porque até já tinham agenda comum.
O
resto é história. Em poucos dias ou semanas de otimismo de Panetta, Mursi, sem
cerimônias, despachou os militares, que viviam nos corredores do poder político,
de volta aos quartéis. Washington não teve escolha além de fazer cara de que não
era com ela, detendo-se um passo antes de divulgar a notícia-barriga de que
Mursi teria consultado o governo Obama antes de endurecer, de vez, com os
militares egípcios.
Até
que, no final da semana, a história chegou ao mundo. Os EUA bem podem estar
enfrentando pesadíssimo golpe contra seus robustos esforços para influenciar o
governo de Mursi. A carta de que Burns foi portador há um mês, ao que se
suspeita, continha convite de Obama para que Mursi o visitasse em Washington.
Mohammed Mursi |
E
Mursi viajará. Mas na direção de China e Irã.
O
anúncio apareceu na página oficial da presidência do Egito na internet, no
domingo. Tudo indica que Mursi está encadeando duas visitas: à China e ao Irã.
Que fará visita oficial à China, a partir da 2ª-feira, atendendo a convite do
presidente Hu Jintao. E que, de Pequim, parece interessado a viajar a Teerã, na
5ª-feira, para participar da reunião dos países do Movimento dos Não Alinhados.
Pequim
ainda não anunciou a visita de Mursi. O jornal estatal chinês China
Daily, de fato, publicou comentário na 2ª-feira, intitulado “Visita de Mursi
ao Irã pode reformatar a paisagem política” – sem qualquer referência à
possibilidade de o presidente egípcio incluir Pequim no roteiro.
Mas
o Al-Ahram, importante jornal egípcio, noticiou que Mursi e Hu “planejam discutir questões cruciais do mundo
árabe, como a situação da Síria e a questão palestina. Os dois presidentes
também discutirão modos de ampliar o intercâmbio comercial entre seus
respectivos países, além de aumento dos investimentos chineses no Egito”.
Al-Ahram
resumiu: “As duas visitas podem assinalar
mudanças na política exterior do Egito, dado que esses dois países [China e Irã]
vivem momento de relações tensas com os EUA, país do qual o Egito sempre foi
leal aliado, sobretudo durante o governo do deposto presidente Hosni
Mubarak”.
Nem
poodle, nem pau-mandado
Fratenidade Muçulmana |
Fato
é que o Oriente Médio parece estar despertando para a evidência de que os
americanos foram mandados dormir na casa do cachorro, no Cairo. Sem dúvida, é
decisão que parece carregar a marca da Fraternidade Muçulmana. Que planos terão
em mente os
Irmãos?
Primeiro,
os Irmãos sabem que esse movimento cairá extremamente bem, em boa harmonia com o
estado de espírito da rua egípcia, que veementemente demanda nova orientação
para a política exterior, que despache para a estratosfera a parceria dos anos
Mubarak com os EUA e Israel, e o retorno a uma política externa egípcia
independente.
Segundo,
Mursi não quer depender excessivamente dos empréstimos do Fundo Monetário
Internacional e/ou dos ricos estados do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG),
empréstimos que estão sendo fortemente pressionado a aceitar e os quais, como
todos sabem, sempre vêm acompanhados de pesados encargos políticos.
O
Fundo Monetário Internacional está impondo termos duros, para conceder um
empréstimo de US$ 3,2 bilhões ao Egito. O Banco de Desenvolvimento Islâmico, com
sede em Jeddah, concedeu financiamentos ao Egito que montam a $2,5 bilhões. O
Qatar está depositando $2 bilhões no Banco Central do Egito, destinado a aliviar
a falta de reservas do país. Ano passado, em maio, a Arábia Saudita anunciou
ajuda ao Egito no total de $4 bilhões em “empréstimos baratos, depósitos e
avais.” Estava em pleno curso uma guerra, comandada pelos EUA, para subornar a
alma do Egito.
Hu Jintao |
Muito
razoavelmente, Mursi vê a China como investidor potencial na economia egípcia,
porque Pequim não inclui cláusulas políticas na cooperação econômica e, em
termos gerais, joga pelas regras do mercado, afinada com as políticas
neoliberais que Mursi estaria trabalhando para construir. A questão é que os
Irmãos sabem muito bem que os países do CCG – Bahrain, Kuwait, Omã, Qatar,
Arábia Saudita – mas muito especialmente a Arábia Saudita, veem os movimentos
políticos dos Irmãos como incômodo intrínseco e como ameaça existencial contra
os seus respectivos regimes autoritários. A Arábia Saudita, sobretudo, sempre
teve relação tumultuada com a Fraternidade Muçulmana.
O
falecido Príncipe Coroado Nayef usou métodos de extrema brutalidade para
reprimir as atividades da Fraternidade na Arábia Saudita. Recentemente, no
sábado, o jornal do establishment saudita Asharq Al-Awasat dava
renovados sinais da antipatia que Mursi inspira aos sauditas, em coluna assinada
pelo editor-chefe, Osman Mirghani, na qual se lia:
O
golpe que Mursi assestou [contra os militares], que lhe permitiu assenhorear-se
do poder, foi repentino e não previsto, não só pelo alto comando do SCAF, mas
tampouco foi previsto pelo próprio povo egípcio (...) São gestos que se
aproximam perigosamente de um golpe de estado (...). A Fraternidade Muçulmana
tentou dominar toda a arena política, depois que sequestrou a revolução e
empurrou a onda revolucionária para longe do governo, e sem que se possa
esquecer que só bem tardiamente se engajaram na revolução egípcia (...). A
Fraternidade sempre buscou minar a influência de outros partidos e, para o mesmo
objetivo, recusou-se a cooperar ou coordenar ações com outros partidos também
durante o período de transição que antecedeu as eleições.
O
Egito é hoje governado por declarações e decisões ‘constitucionais’ lançadas por
um presidente que tem muito mais poderes do que Mubarak algum dia teve (...) Se
há quem diga que Mursi (...) libertou-se e libertou a presidência da custódia e
da intervenção do exército, então a pergunta mais imediata que se tem de fazer
aqui é: será que Mursi algum dia se libertará da Fraternidade, que parece
presente em todas as suas decisões e medidas?
É
útil ter em mente que esse agudo criticismo apareceu um mês depois da visita de
Mursi a Riad, a convite do rei Abdullah e dois dias depois da reunião
extraordinária da Organização da Conferência Islâmica [Organization of
Islamic Conference, OIC] em Jeddah, à qual Mursi compareceu.
A
narrativa foi que Mursi, em sua fala à reunião da OIC pediu “mudança de regime”
na Síria – o que implicaria que o Egito seria fiel seguidor de campo da linha
definida por Arábia Saudita, Qatar e Turquia. A verdade é que Mursi ignorou a
troika e propôs que a solução para a Síria fosse buscada por um Grupo de
Contato formado de Arábia Saudita, Turquia, Irã e Egito, grupo que mediaria um
diálogo sírio e a reconciliação com vistas a construir transição política
pacífica, em atmosfera livre de violência.
Apertos
de mão e beijos
Mohamed Ahmadinejad |
Claro:
a inclusão do Irã no Grupo de Contato que Mursi propôs foi afronta à Arábia
Saudita, que hospedava a reunião da OIC. E houve também a linguagem corporal,
que sempre conta muito nas reuniões intra-árabes. Às margens da conferência,
Mursi trocou apertos de mão e beijos com o presidente Mahmud Ahmadinejad do Irã
e falou-lhe com visíveis manifestações de consideração e afeto.
Teerã
imediatamente acolheu a proposta de Mursi, movimento que, por sua vez,
conquistou simpatias na Fraternidade no Cairo, que viu, na calorosa resposta de
Teerã confirmação segura de que o Egito começa a reconquistar pelo menos parte
do prestígio diplomático e estratégico de que gozou na região, no passado.
Formou-se uma espécie de parceria de mútua admiração entre o Cairo e Teerã, que
atravessou os áridos desertos da Península Arábica.
Da
performance de Mursi na reunião da OIC, três coisas emergiram.
Primeiro,
Mursi sinalizou que o Egito pretende seguir política externa independente em
relação às agendas do ocidente e dos países do Golfo do petróleo. Significa
dizer que o Egito não mais seguirá humildemente os passos que lhe indiquem nem
aceitará posição subalterna.
Segundo,
o Egito não está vendo a Turquia como exemplo a ser seguido, apesar dos altos
decibéis da propaganda ocidental que, desde a Primavera Árabe, tenta fazer crer
que o islamismo do tipo que hoje se vê no governo de Recep Tayyip Erdogan seria
o que o médico receitaria para todo o Oriente Médio. Erdogan voltou de uma
visita ao Cairo, ano passado, certo que fora consagrado como uma espécie de
rock star ídolo dos egípcios. Aparentemente Mursi não se alinha entre
seus fãs.
Terceiro,
a decisão de Mursi, de incluir o Irã como parceiro na busca da paz para a Síria
implica rejeitar completamente a abordagem ocidental e turco-saudita. Nos
corredores da conferência da OIC, o Ministro de Relações Exteriores do Egito,
Mohammed Amr também se encontrou com o ministro iraniano, Al Akbar Salehi, e
disse-lhe que Teerã deve, sim, ajudar a resolver a crise síria.
Sim,
todos esses movimentos são iniciais, mas a decisão de Mursi visitar o Irã (país
com o qual o Egito não tem relações diplomáticas) só pode ser
interpretada como movimento estratégico de consequências profundas para a
segurança regional e a política global. Não pode passar sem qualquer
consideração ou explicação.
Por
um lado, o Irã é o primeiro país muçulmano, depois da Arábia Saudita, que Mursi
visitará no Oriente Médio. A rua árabe saberá ver que os Irmãos do Egito
rejeitam a ideia (difundida pelo ocidente e pela Arábia Saudita) segundo a qual
um “Crescente Xiita” liderado pelo Irã seria ameaça às comunidades sunitas no
Oriente Médio muçulmano.
Muito
visivelmente, o Egito planeja normalizar suas relações com o Irã, já bem
distanciado do Egito de Mubarak e de seus medos maniqueístas de “golpes”
iranianos para desestabilizar o país. As coisas mudaram. O vide-líder da
Fraternidade, Mahmoud Ezzat, disse recentemente à Associated Press: “O velho regime
costumava converter em fantasmas os seu [de Mubarak] rivais. Nós [a
Fraternidade] não queremos fazer como Mubarak e não exageramos o perigo que o
Irã representaria”.
P5+1 - Irã |
Do
ponto de vista de Teerã, tudo isso é importante abertura diplomática e
geopolítica em momento difícil, quando as conversações chegaram a um impasse no
grupo P5+1-Irã. Posto em versão simplificada, as equações no Oriente Médio
foram, de repente, libertadas, entraram em fluxo.
Tudo
havia sido pensado para ser uma continha simples: “o campo de Teerã” (Irã,
Síria, Hezbollah e Hamás) versus “o campo dos EUA” (Arábia Saudita,
Israel, Turquia e Qatar). Mas Mursi, sem fazer alarde, está cruzando a barreira
geopolítica.
Pode
estar a caminho uma forte sacudida na política regional? No mínimo, o
caleidoscópio girou e, de repente, vê-se que as situações na Síria, no Líbano ou
em Gaza podem começar a eivar-se no novas possibilidades. (Por falar nisso,
Mursi deixou bem claro, na conferência da OIC, que qualquer atenção que se desse
à crise síria de modo algum desviaria a atenção do problema palestino – questão
sempre crucial para o mundo muçulmano).
A
grande pergunta é: o que move a Fraternidade egípcia? A interpretação
convencional diz que os Irmãos são gente cautelosa; operam devagar e não se
apressarão na tarefa de refazer o cálculo do poder no Cairo nem, menos ainda, na
remodelagem da política externa do Egito. Mas é visível que, em oito dias,
começou a emergir um retrato diferente dos Irmãos. Como explicar a mudança?
Não
há retorno possível à era Mubarak
Visto
em retrospecto, o movimento de Mursi contra os militares há uma semana foi golpe
preventivo. Os Irmãos avaliaram que, no mínimo, surfariam a onda das altas
expectativas da opinião pública, que quer ver mudanças fundamentais nas
políticas nacionais; e que qualquer adiamento ou procrastinação na ação
resultaria em os militares concentrarem cada vez mais poder, até virarem a mesa,
em termos políticos, e esvaziarem a presidência de Mursi.
Mossad - Logo |
Simultaneamente,
os Irmãos não confiam no papel dos EUA e em suas intenções reais ante a
liderança de Mursi. Vale lembrar que a Fraternidade (e o Hamás) acusaram
declarada e abertamente o MOSSAD israelense de ser responsável pelo ataque
terrorista no Sinai dia 5/8.
Não
se sabe exatamente o que levou os Irmãos àquela conclusão, mas o Sinai é terra
sem lei há décadas, e é inconcebível que a inteligência israelense não conheça
os grupos de militantes islamistas ativos ali. De fato, ninguém sabe o que
realmente aconteceu dia 5/8, e absolutamente ninguém que conheça a região
acreditará que os beduínos teriam meios para organizar operação tão altamente
profissional.
E
há outra coisa também chocante. O ataque terrorista no Sinai aconteceu logo
depois de Mursi reunir-se com os líderes do Hamás no Cairo, reunião depois da
qual foi decidido reduzir parcialmente as restrições na passagem de Rafah (o
que, claro, foi como furar o “bloqueio” de Israel contra Gaza).
Seja
como for, o ataque no Sinai aconteceu quando os EUA aumentavam a pressão sobre
Mursi para que ressuscitasse os laços militares e de segurança da era Mubarak
entre Cairo, Washington e Telavive. Ambos, Clinton e Panetta, muito se
empenharam para convencer Mursi a reencarnar o espírito da cooperação tripartite
de segurança, EUA-Egito-Israel, no Sinai.
Os
Irmãos não deixariam de ver que essa volta às políticas da era Mubarak seria
muito mal recebida pelo público egípcio – tanto os islâmicos como os
“secularistas” – o que desacreditaria a Fraternidade e corroeria a credibilidade
da presidência de Mursi; que, em suma, seria suicídio político. Os Irmãos
tampouco deixariam de ver que qualquer configuração das estratégias regionais do
Egito cujo lócus se mantivesse no terrorismo, fecharia no nascedouro qualquer
possibilidade de repensar criativamente a questão de Gaza.
Em
resumo, a decisão de Mursi de abrir uma linha para Pequim e Teerã deve ser
analisada sobre pano de fundo grande, amplo. Os Irmãos perceberam a tempo que
havia um plano de EUA-Israel para desestabilizar o governo de Mursi, se não se
alinhasse ao diktat de Washington. A partir disso, se puseram a procurar
meios e modos para reduzir o atual nível de superdependência do Egito
em relação aos
EUA e seus aliados no Golfo; para tanto, tentam diversificar as
relações externas do país e somar parceiros de peso que possam ajudar na
construção da autonomia estratégica do Egito.
As
próximas semanas prometem ser momento de definição na política do Oriente Médio,
com realinhamentos interárabes, com a viagem de Mursi a Pequim e Teerã. Com o
Egito distanciando-se, as estratégias dos EUA na região espatifam-se. A pergunta
mais imediata que se tem de fazer aqui é: o que os EUA teriam a ganhar, afinal,
na conquista de Damasco, que perseguem com violência e bestialidade brutais, se
já perderam Cairo e Bagdá?
MK
Bhadrakumar*
foi
diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União
Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão,
Uzbequistão e Turquia. É especialista
em
questões do Afeganistão e
Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações,
dentre as quais
The
Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais
velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e
militante de Kerala.
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