sábado, 25 de agosto de 2012

Superorganismos 25/08/2012

Sob o sugestivo título de "O micróbio faz o homem", a revista britânica "The Economist" dedicou a capa de sua edição da semana passada à ideia, que vem ganhando corpo na biologia e na medicina, de que precisamos pensar o ser humano não como uma entidade à parte, mas no conjunto de suas relações com o meio ambiente, em especial a interação com espécies microscópicas com as quais vivemos em promiscuidade. Nesse modelo, nós perdemos um pouco de nós para nos tornarmos um superorganismo, no qual outros seres vivos, notadamente aqueles que habitam nosso corpo, têm papel fundamental.
A noção não é exatamente nova. Ela tem pipocado em diversos artigos científicos e já constitui a diretriz de certos livros. No finalzinho do ano passado, eu mesmo, na coluna "A Vingança dos Vermes", resenhei o excelente "The Wild Life of Our Bodies: Predators, Parasites and Partners That Shape Who We Are Today" (A vida selvagem de nossos corpos: predadores, parasitas e parceiros que moldaram o que somos hoje), de Rob Dunn, que vai exatamente nessa linha. A longa reportagem auxiliar da "Economist", porém, tem o grande mérito de consolidar num único texto diversas pesquisas e evidências que apoiam a tese de que somos um superorganismo, não muito diferente de uma barreira de corais. Dos cerca de cem filos de bactérias, quatro estão presentes no homem: Actinobactérias, Bacteroidetes, Firmicutes e Proteobactérias. São elas que produzem muitas das vitaminas e enzimas de que dependemos para viver, mas nossos genes não sabem fabricar.
Uma prova elegante de que estamos há milhões de anos coevoluindo com elas reside no fato de que o leite humano está repleto de glicanos, um polissacarídeo que é convertido em carboidratos digeríveis através de enzimas do grupo das beta-glicosidases. O detalhe intrigante é que essas enzimas não são produzidas pelo homem, mas apenas por bactérias que nos colonizam, numa evidência de que elas são confiáveis e estão conosco há muito tempo.
E, já que estamos falando de nutrição, há cada vez mais evidências de que as bactérias desempenham um papel-chave aí. Quem primeiro mostrou isso foi Jeffrey Gordon, em 2006. Ele analisou a flora intestinal de americanos gordos e magros e verificou que os mais cheinhos tinham uma proporção maior de Firmicutes e menor de Bacteroidetes. Mais intrigante, quando conseguiam emagrecer, o balanço de bactérias também se alterava.
De 2006 para cá, Gordon continuou nessa linha de pesquisa. No ano passado, mostrou que, além de obesidade, bactérias também podem provocar desnutrição. Estudando pares de gêmeos, verificou que, quando um dos indivíduos era bem nutrido e o outro mal, eles tinham microbiomas diferentes. Deixando os gêmeos em paz e trabalhando com ratos, conseguiu induzir desnutrição apenas alterando a flora intestinal do bichinho.
As implicações são óbvias. Se essas ideias estiverem corretas, é em princípio possível encontrar um tratamento efetivo para a obesidade, que se afigura como o próximo flagelo a castigar a espécie, apenas modificando a proporção de bactérias em nosso trato digestivo. É um avanço notável, quando se considera que já tentamos mais ou menos de tudo para controlar essa moléstia --e sem muito sucesso.
Há evidências de que bactérias estão também envolvidas em doenças cardíacas, diabetes, esclerose múltipla e várias outras moléstias. No caso do coração, a suspeita vem da constatação de que os níveis de acido fórmico encontrados na urina de uma pessoa são inversamente proporcionais à sua pressão sanguínea. O fato de estarmos falando de ácido fórmico nos remete imediatamente para bactérias, já que, a menos que o indivíduo em questão tenha dieta de tamanduá e devore formigas, é o nosso microbioma que o produz. E o ácido atua nos rins modificando a quantidade de sal que eles absorvem, o que tem impacto na pressão arterial.
Já descambando para a mais pura escatologia, a manipulação de bactérias, mais especificamente o transplante fecal, é um tratamento promissor para casos de colite provocada por Clostridium difficile resistente a antibióticos. A doença pode ser fatal. O procedimento consiste em recolher os dejetos do doador (normalmente um parente bem, bem próximo) e liquefazê-los com solução salina. A mistura é então levada até o trato intestinal do receptor através de enemas ou de sonda nasogástrica. A hipótese teórica é que a flora saudável do doador agirá como um probiótico, colonizando o intestino e desalojando o C. difficile.
Admito que é nojento, mas essas bizarrices dizem algo a respeito da evolução da medicina em particular e da filosofia da ciência em geral. A história da medicina é uma sucessão de tentativas, erros, vários outros erros, mas também alguns sucessos. A única certeza é a de que tudo o que é sólido se desmancha no ar, para citar o bom e velho Marx. Teorias que gozavam de séculos de solidez, como a dos quatro humores, ruíram, deixando só vestígios arqueológicos no nome de doenças, como a "depressão melancólica" (a melancolia era um dos humores). Teses que antes pareciam doidas, como a de que bichos invisíveis causam moléstias, se tornaram inquestionáveis. Pelo menos até agora. E isso foi, em termos históricos, outro dia. Micro-organismos patógenos são conhecidos há menos de 150 anos; os antibióticos só ganharam difusão a partir de 1941. E não faz uma década que começamos a perceber que somos mais do que os 10 trilhões de células comandadas por 23 mil genes. A noção de homem como um superorganismo acrescenta a cada um de nós a bagatela de 100 trilhões de bactérias e 3 milhões de genes não humanos. Nossa incrível complexidade ganha mais alguns atores.
Hélio Schwartsman Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na versão impressa da Página A2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos e às quintas no site.

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