Natural de Porto Alegre/RS, o major do Exército Leandro Santos da Costa
viu o que pouquíssimos ocidentais conseguiram testemunhar: durante três
meses, ele vivenciou por dentro o conflito na Síria e seu cotidiano de
carros-bombas, emboscadas e sequestros.
Palco do mais sangrento conflito da atualidade, a Síria é, mesmo depois
de 17 meses de guerra, uma incógnita para o resto do mundo. Ao blindar
suas fronteiras, impedindo o acesso de jornalistas internacionais, o
regime de Bashar al-Assad transformou o território em área livre para
matar. Com o uso de caças e artilharia, sufocou a revolta contra o seu
governo nas cidades de Homs e Hama. E, como em qualquer guerra não há
mocinhos, de combatentes da liberdade os opositores tornaram-se
protagonistas de barbáries e violações aos direitos humanos. Até agora,
23 mil pessoas morreram, segundo o Observatório Sírio dos Direitos
Humanos.
Os poucos relatos que se esvaem pelas frestas da ditadura, graças à
internet, revelam um cotidiano de medo, explosões, chacinas, vítimas em
hospitais. Esta é uma parte da história. Há uma outra face. Até na
guerra existe rotina — as pessoas continuam, mesmo durante bombardeios,
acordando, escovando os dentes, indo à escola. É o dia a dia de cidadãos
comuns engolfados pela violência. Há ainda o trabalho de formiguinha de
quem tentou, até o último minuto, buscar um diálogo que até agora
fracassou.
Pelas raras informações no Ocidente sobre o que acontece na Síria é que o
relato a seguir, do major Leandro Santos da Costa, 42 anos, torna-se
exclusivo. O militar viveu, durante três meses, o conflito sírio por
dentro. Viu o que quase ninguém fora do país conseguiu presenciar.
Natural de Porto Alegre, lotado na 6ª Divisão de Exército, Leandro é um
dos poucos brasileiros a integrar o grupo de observadores das Nações
Unidas, que tinha a missão de zelar pelo cumprimento do plano de paz
traçado pelo ex-secretário-geral Kofi Annan. Com 22 anos de Exército,
embarcou para a Síria em 9 de maio, dia do nascimento dos gêmeos Fillipe
e Eduarda.
— Era a oportunidade de uma vida. Quando o gabinete do comandante do
Exército me consultou se eu era voluntário, pedi 15 minutos para
conversar com minha mulher. A Adriana entendeu e aceitou. Retornei a
ligação e disse: "Tô pronto" — conta o major, que deixou em Porto
Alegre, além da mulher e dos bebês, o filho mais velho, Matheus, de nove
anos.
Salvos graças aos veículos blindados
Diferentemente das tropas de manutenção da paz — como as que o Brasil
conserva no Haiti —, os observadores, como Leandro, não usam armas. São
uma espécie de juiz, devem ser neutros, verificar, com isenção, ataques
dos dois lados e relatá-los ao comando. O fato de estar desarmado em um
país como a Síria é um risco a mais. Certo dia, seu comboio foi
surpreendido por uma emboscada no caminho de Al-Jaffa, possivelmente
executada por apoiadores do regime. Os observadores só se salvaram
graças à blindagem dos carros. Em outra tarde, o grupo foi sequestrado
por opositores que queriam obrigar os militares a ver os feridos de um
bombardeio em um hospital.
As tropas do governo deveriam garantir a segurança do grupo, mas não
controlavam sequer todo o seu território. Ao mesmo tempo, a presença
deles ao lado dos capacetes-azuis tirava a qualidade que a ONU mais
preza: a independência.
A complexidade do conflito e as sucessivas violações pelos dois lados
contribuíram para, no dia 2 de agosto, Kofi Annan, impotente, demitir-se
do cargo de enviado da ONU. Sua saída deu origem a uma nova onda de
questionamentos sobre o papel das Nações Unidas na resolução de
conflitos. Apesar do fracasso da comunidade internacional em conter o
banho de sangue, Leandro diz não estar frustrado:
— A minha missão foi muito clara: monitorar o plano de Annan. E eu monitorei. Nenhum dos dois lados estava respeitando-o.
O desembarque em Damasco
"Cheguei lá no dia 10, todos os observadores foram para Damasco e, de
lá, seguimos para os respectivos team sites (times locais). Não tínhamos
funções específicas: um dia tu poderias ser motorista, no outro,
fotógrafo, chefe de patrulha, dependendo da escala. Saíamos sempre em,
no mínimo, duas viaturas. No início, a situação estava mais complicada
em Homs e Hama. Também houve duas semanas em que Damasco ficou
complicada. Quando acontecia um atentado a bomba, alguns tiroteios,
havia uma denúncia, e a gente ia investigar. Chegava ao local, colhia
dados com a população, às vezes, precisávamos de um especialista em
explosivos. Em todas as missões, contávamos com um intérprete — um
militar de Egito, Marrocos, Mauritânia — para facilitar o contato com a
população. Éramos sempre escoltados pelo governo."
A rotina na capital
"Por ser capital, a presença do governo é muito forte em Damasco. Senti
que a população apoia muito o regime. É diferente de outras localidades,
como Aleppo (segunda maior cidade). No início, quem estava em Damasco
não sentia que o país estava em guerra. A cidade tem shoppings, tudo
funciona normalmente. Mas, depois de um tempo, começaram os conflitos
bem próximos ao nosso hotel. Escutávamos diariamente o som de explosivos
e de tiroteios. A vida do comércio continuou normal. Acho que a
população assimilou aquela situação."
O primeiro contato com a violência
"Foi em Al-Jaffa. Havia uma denúncia de bombardeio por parte do governo
na cidade. Estávamos tentando chegar lá para verificar. Em uma estrada, a
população cortou a frente do nosso comboio, com crianças e mulheres. A
retaguarda foi fechada com um caminhão de gás. Quando houve o bloqueio,
eu logo senti que teríamos problemas. O líder da patrulha falou: "Volta,
volta!" Naquele meio, eram tiros, paus, pedaços de ferro, pedras. Entre
a população, não havia como distinguir se eram militares ou não. Só
pensávamos em tentar sair dali. Vários carros foram atingidos por balas.
Todas as viaturas são blindadas. Eu era o motorista de uma delas, a
terceira no comboio. Consegui ir para fora da estrada, todas as viaturas
conseguiram romper o cerco. Um dos nossos homens ficou ferido. Cada
viatura foi para uma direção diferente. Abortamos aquela missão, acho
que não havia interesse em que a ONU chegasse naquele momento a
Al-Jaffa. Quem fez esse bloqueio, a oposição ou o governo? Provavelmente
o governo... Nós estávamos sendo escoltados pelo governo. E eles não
foram atacados."
Independência e liberdade de atuação
"O governo tinha de nos dar segurança. Entendo que segurança é 24 horas.
Mas, em algumas localidades, eles não entravam. Então íamos sem
segurança. Até Hama, o governo entra. Entre Hama e Aleppo, perto de
Idlib, existe uma faixa de uns 20 quilômetros que a oposição havia
tomado. Havia pontos de checagem do governo e, depois, da oposição. Homs
está nas mãos do governo. Quando a gente colhia o depoimento da
população, as pessoas viam que éramos escoltados pelo governo. Isso
intimidava. Não é o ideal. Nossa patrulha era acompanhada de duas
viaturas civis, com homens do governo à paisana, armados. Isso intimida a
população."
O sequestro
"O nosso chefe do estado-maior queria chegar a Aleppo, onde a situação
estava bastante complicada. Queríamos ir até lá para verificar. Tentamos
ir pelo litoral, por Tartus, mas não conseguimos. Em um dos últimos
postos de checagem do governo, os militares disseram que não garantiriam
nossa segurança a partir dali, uma área montanhosa. Decidimos seguir
sem escolta do governo. Logo, identificamos cabos de aço na estrada para
bloquear o acesso de viaturas. Retornamos para Homs, quase 300
quilômetros. De lá, tentamos seguir por outro caminho. De repente,
opositores pararam nossas viaturas: estavam com fuzis AK-47 apontados
para nós. Eles nos levaram até uma espécie de posto de comando da
oposição, deram-nos água e nos conduziram até um hospital. Queriam que
víssemos os feridos. Passamos a noite em uma barraca. Não houve ameaça.
Mas obrigaram a gente a dormir ali, com tapetes árabes no chão. Não
consegui pegar no sono. Foi das 6h da tarde até as 10h da manhã do dia
seguinte. Ninguém dormiu. A gente não sabia qual seria a reação deles.
Em nenhum momento, garantiram que seríamos liberados. Achei que ia
morrer."
Violações aos direitos humanos
"Visitamos muitos hospitais, onde há muitas crianças. É uma guerra
interna, tem população civil atingida, mulheres e crianças feridas.
Normalmente, o ataque pesado é feito pelo governo. Mas também ocorrem
alguns atentados a bomba realizados pela oposição."
Susto na saída
"Nós estávamos nos preparando para vir embora. Estávamos eu e outros
brasileiros juntos (um coronel da Força Aérea e um capitão-de-corveta da
Marinha) no hall do hotel Dedeman, em Damasco. O comboio sairia às 8h.
Estávamos tranquilos, aguardando a saída, quando, de repente, veio a
explosão. Foi bem na frente do hotel, do outro lado da rua: um
carro-bomba. Cada um de nós correu para um lado. Vidros foram
estilhaçados. Algumas pessoas foram atingidas. Fomos para o subsolo do
prédio, uma área mais segura. Foi de lá que o comboio acabou saindo rumo
à fronteira com o Líbano. Ao passarmos a fronteira, a sensação foi de
alívio."
Frustração?
"Não, porque a minha missão foi muito clara: monitorar o plano de Kofi
Annan, os seis pontos. A minha missão era essa. E eu monitorei. Não sei
se a ONU saiu frustrada ao não obter a paz. A minha missão era verificar
que o plano não foi implementado. Nenhum dos dois lados estava
respeitando-o. Os lados envolvidos têm de cooperar, já que nós estávamos
desarmados. O que está acontecendo lá é um reflexo da Primavera Árabe.
Acho que, mais cedo ou mais tarde, vai haver uma mudança de governo."
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