19/10/2012, Seumas Milne, Guardian, UK
“The end of the New World Order”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
A questão é
assegurar uma maioria de esquerda. Mas é completamente impossível, se nos
limitarmos a gaguejar slogans extremistas, anti-isso, anti-aquilo, anti-qualquer
coisa, anti-qualquer um, enquanto mostramos à direita que somos incapazes de
chegar a qualquer acordo sobre coisa alguma, sem sequer analisar qualquer
condição objetiva da luta.
J. L. Mélenchon (Le Monde, 28/1/2010)*
Seumas Milne |
No
final do verão de 2008, dois eventos, em rápida sucessão, marcaram o fim da Nova
Ordem Mundial. Em agosto, a Geórgia, estado-cliente dos EUA foi esmagada em
guerra breve, mas brutal, depois de ter atacado soldados russos no território
disputado da Ossétia do Sul.
A
ex-república soviética sempre fora estado favorito dos neoconservadores de
Washington. O presidente-ditador local nunca se cansava de trabalhar para que a
Geórgia se unisse ao movimento de expansão da OTAN na direção da Rússia. Em
movimento de muito evidente inversão da realidade, Dick Cheney, então
vice-presidente dos EUA, denunciou a resposta dos russos como ato “de agressão”
que “não pode ser deixado sem resposta”. Como se jamais tivesse declarado sua
guerra catastrófica contra o Iraque, George Bush disse que “a invasão pela
Rússia de um estado soberano” seria “inaceitável no século 21”.
Quando
a luta terminou, Bush alertou a Rússia para que não reconhecesse a independência
da Ossétia do Sul. A Rússia fez exatamente isso, com os navios de guerra dos EUA
passando a ser obrigados a “desviar” do Mar Negro. Aquele conflito marcou um
ponto de virada no cenário internacional. O blefe dos EUA foi exposto ao mundo,
com o ímpeto militarista dos EUA já minado pela guerra ao terror, no Iraque e no
Afeganistão. Depois de vinte anos, durante os quais os EUA marcharam sobre o
mundo esmagando o que viam pela frente, o tempo de poder incontestado dos EUA
chegava ao fim.
Três
semanas depois, um segundo evento, de consequências ainda mais amplas, atingia o
coração do sistema financeiro global dominado pelos EUA. Dia 15 de setembro, a
crise de crédito finalmente irrompeu, quando faliu o quarto maior banco de investimentos
dos EUA. A falência do Lehman Brothers mergulhou o mundo ocidental em sua mais
profunda crise desde os anos 1930s.
A falência do Banco Lehman Brothers |
A
primeira década do século 21 sacudiu a ordem internacional, virando de cabeça
para baixo o que as elites globais diziam saber sobre o mundo; 2008 foi o ponto
de virada. Até ali nos diziam que, com o fim da Guerra Fria, as grandes questões
econômicas e políticas haviam sido resolvidas. A democracia liberal e o
capitalismo de livre-mercado haviam triunfado. O socialismo passara à categoria
de relíquia histórica. Todas as controvérsias políticas seriam doravante guerras
culturais e questão de cortar gastos e impostos.
Em
1990, George Bush Pai inaugurara uma
Nova Ordem Mundial, baseada em incontestada supremacia militar dos EUA e domínio
econômico do ocidente sobre o planeta: mundo unipolar sem rivais. Poderes
regionais curvariam os joelhos ante o novo império planetário. A própria
história, como houve quem dissesse, chegara ao fim.
Mas,
entre o ataque às Torres Gêmeas e a quebra de Lehman Brothers, essa ordem
mundial ruiu. Dois fatores foram cruciais. Ao final de uma década de guerras
ininterruptas, os EUA afinal deixaram ver os limites, não a extensão gigante, de
seu poderio militar. E o modelo de capitalismo neoliberal, que reinara supremo
durante uma geração, espatifou-se.
Ataque às torres gêmeas |
Foi
a reação dos EUA ao 11/9, que quebrou a sensação de invencibilidade do primeiro
verdadeiro império global. A resposta escandalosamente errada do governo Bush
converteu as atrocidades em New York
e Washington no mais bem-sucedido ataque terrorista de toda a história.
A
guerra de Bush falhou, para começar, em seus próprios termos, ao fazer brotar
terroristas em todos os cantos do mundo; e sua campanha de assassinatos
premeditados, tortura e sequestros desacreditou, também, tudo que o ocidente
sempre dissera ao mundo sobre os EUA serem guardiães dos direitos humanos. As
invasões no Afeganistão e no Iraque, por EUA-Grã-Bretanha, revelaram ao mundo a
incapacidade de o ocidente impor a própria vontade a povos decididos a resistir.
Afeganistão e Iraque foram derrota estratégica para os EUA e seus aliados mais
próximos.
O
fim do momento unipolar foi a primeira de quatro mudanças decisivas que
transformaram o mundo – sob alguns aspectos decisivos, para melhor. A segunda
foi o crash de 2008 e a crise da ordem capitalista ocidental dominada
pelo ocidente que a primeira mudança desencadeou, e que apressou o declínio
relativo dos EUA.
A
crise de 2008 foi crise made in USA e aprofundada pelo custo descomunal
das várias guerras norte-americanas. E seu impacto mais devastador aconteceu nas
economias cujas elites compraram mais entusiasticamente a ortodoxia neoliberal
de dar todo o poder a grandes corporações a mercados financeiros desregulados.
O
modelo de capitalismo voraz, metido goela abaixo do mundo como único modo de
administrar uma economia moderna, ao custo de fazer inflar desmedidamente a
desigualdade social e a degradação do meio ambiente, fora desacreditado – e só
foi salvo do colapso total pela maior intervenção do Estado na economia, de toda
a história mundial. A farsa dos irmãos gêmeos – conservadores e liberais – foi
posta em prática e testada até se autodestruir, até o total fracasso.
O
fracasso da farsa dos conservadores e liberais acelerou a ascensão da China – a
terceira mudança radical das décadas iniciais do século 21. O crescimento
dramático da China tirou milhões de homens e mulheres da miséria. E o modelo
econômico chinês, de investimentos puxados pelo Estado, varreu do cenário o
projeto ocidental; fez, da ortodoxia do mercado, piada; e criou um novo centro
global de poder. Nesse novo cenário, o poder de manobra aumentou, para muitos
estados menores.
Pequim e a ascensão da China |
A
ascensão da China ampliou o espaço no qual cresceu a maré de mudanças
progressivas que hoje se alastra pela América Latina – o quarto avanço global.
Por toda a América Latina, governos socialistas e social-democratas foram
levados ao poder em eleições democráticas, passando a atacar a injustiça
econômica e racial, construindo independências regionais e retomando, das mãos
das grandes corporações, o poder. Apenas duas décadas depois de nos terem
convencido de que não haveria saída além do capitalismo neoliberal, os
latino-americanos já estavam criando várias saídas.
São
mudanças que cobram preço alto, e claro, e exigem altíssimas qualificações. Os
EUA permanecerão como potência militar dominante não se sabe até quando; as
derrotas que sofreram no Iraque e no Afeganistão foram pagas com morte e
destruição em escala colossal; e a multipolaridade implica seus próprios riscos
de conflitos. O modelo neoliberal foi desmascarado e desacreditado, mas ainda há
tentativas de trazê-lo à tona mediante programas selvagens de “austeridade”. O
sucesso da China também custou preço alto em termos de desigualdades, direitos
civis e violência contra o meio ambiente. E, na América Latina, elites apoiadas
ainda pelos EUA ainda insistem em forçar o recuo de todos os avanços sociais, o
que conseguem às vezes mediante golpes violentos, como se viu em Honduras em
2009. As mesmas contradições também levaram ao mar de sangue em que o mundo
árabe foi mergulhado em 2010-11 – onde se assiste a outra mudança de proporções
globais planetárias.
Guerra do Iraque |
Hoje,
a ataque às Torres Gêmeas já está convertida em tal fonte de embaraços e
problemas, que o próprio governo dos EUA decidiu mudar-lhe o nome: hoje, a
guerra ao terror já é referida como “operações contingenciadas no estrangeiro”.
O Iraque já é desastre universalmente identificado, o Afeganistão já é
empreitada completamente fracassada. Mas o real significado desse realismo claro
e cru não poderia ser mais diferente do que as fontes de informação e notícias
ocidentais diziam que essas ações seriam, quando foram lançadas.
Se
se recorda o que diziam EUA e britânicos – políticos e especialistas,
intelectuais e jornalistas adestrados – logo depois do 11/9, a única conclusão é
que viviam num universo paralelo de fantasias envenenadas. Nenhum esforço deixou
de ser feito para desacreditar todos os que se opuseram à invasão e à ocupação
do Iraque – os mesmos que, em pouco tempo, já estavam amplamente vingados.
Michael Gove |
Michael Gove, que hoje é ministro de um Gabinete dos Tories, lançou ácido puro
contra o jornal Guardian que publicou amplo debate sobre o ataque ao
Iraque; chamou o Guardian de “gangue Prada-Meinhof” de “quinta-colunas”.
O Sun, de Rupert Murdoch, disse que os que se opunham à invasão do Iraque
seriam “propagandistas antiamericanos da esquerda fascista”. Quando o regime dos
Talibã foi derrubado, o próprio Blair sentenciou a condenação triunfalista de
todos (eu incluído) que se haviam oposto à invasão do Afeganistão e à guerra ao
terror. Todos, declarou Blair, estariam “comprovadamente errados”.
Dez
anos depois, poucos são os que ainda duvidam de que o governo Blair, ele sim,
estava “comprovadamente errado”, erro de consequências catastróficas. Os EUA e
seus aliados não conseguirão submeter o Afeganistão, previam os mais bem
informados. A guerra ao terror, ela mesma, criará terror e terroristas.
Atropelar direitos civis terá consequências terríveis – e qualquer ocupação do
Iraque será desastre afogado em sangue.
Os
“especialistas” do partido da guerra, como o ex “vice-rei da Bósnia” Paddy
Ashdown, zombou das advertências de que invadir o Afeganistão levaria “a longa
campanha de guerra de guerrilha”; disse que seriam ideias “fantasiosas”. Mais de
dez anos depois, a resistência armada está mais forte do que nunca e a guerra do
Afeganistão já é a mais longa de toda a história dos EUA.
História
similar aconteceu no Iraque – embora, então, a oposição à guerra já estivesse
nas ruas, aos milhões. Os que se opunham à guerra ainda eram acusados de
“frouxos” [orig. appeasers]. O secretário de Defesa dos EUA, Donald
Rumsfeld, dizia que a guerra duraria seis dias. Muitos, também na mídia em
língua inglesa, previam que a resistência desabaria em poucos dias. Todos esses,
sim, estavam comprovadamente errados.
Na
primeira semana da invasão-ocupação do Iraque, escrevi que se devia esperar
“forte resistência dos guerrilheiros, mesmo muito depois da partida de Saddam
Hussein” e que os ocupantes daquela ocupação de estilo colonialistas “seriam
expulsos”. Não estava errado. As tropas britânicas enfrentaram ataques
incansáveis, da resistência local armada, até 2009. O mesmo aconteceu aos
soldados regulares dos EUA, até decidirem pela retirada, em 2011.
Mas
não foi só na guerra ao terror que se comprovou que os que se opõem à Nova Ordem
do Mundo acertaram, e que os promotores de guerras nada diziam que não fosse o
mais calamitoso delírio. Por 30 anos, as elites ocidentais insistiram que só
livres-mercados, privatizações e microimpostos para os mais ricos trariam
crescimento e prosperidade.
Desde
antes de 2008, o modelo do “livre-mercado” já vinha sendo alvo de ataque feroz:
o neoliberalismo estava transferindo o poder para bancos e grandes empresas
absolutamente “opacos”, sem fresta de transparência – diziam os ativistas da
globalização antibancos e anticorporações; e assim o neoliberalismo estava
fazendo aumentar a miséria e a injustiça social e esquartejando democracia – e
que esse movimento era insustentável, simultaneamente, economicamente e
ecologicamente.
Ao
contrário dos políticos do New
Labour, que diziam que as políticas “de bolhas” [orig. “boom and
bust”] eram coisa do passado, os críticos lembravam que nada mais absurdo
que dar por “abolido” o ciclo do mercado capitalista. Desregulação,
financeirização e incansável promoção da especulação mais desenfreada, levaria
sem dúvida possível, como levou, à crise.
A
grande maioria dos economistas que previram que o modelo neoliberal caminhava a
passos acelerados para o desastre eram, é claro, de esquerda. E assim, enquanto
os principais partidos na Grã-Bretanha apoiavam “regulação leve” da finança, os
opositores argumentavam, há muito tempo, que a City “liberalizada” ameaçava toda a
economia.
Os
críticos alertaram que privatizar serviços públicos sairia mais caro, geraria
serviços piores e serviria como combustível para mais corrupção. Exatamente o
que aconteceu. E na União Europeia, onde privilégio para bancos e corporações e
ortodoxia de mercado foram formalizados em tratado, o resultado foi ruína de
proporções continentais. A combinação de banking liberal com união
monetária antidemocrática, pervertida e deflacionária, que críticos (nisso,
unânimes, de direita e de esquerda) sempre disseram que não tinha qualquer
coesão interna, nunca passou de desastre esperando para acontecer. O
crash serviu, ali, de gatilho.
A
esquerda sempre foi mais eloquente na crítica contra o capitalismo neoliberal.
Foi também, sempre, mais eloquente na oposição às guerras de invasão e ocupação
promovidas pelos EUA. Mas a esquerda mostrou-se estranhamente lenta e muda, no
momento de capitalizar a seu favor os seus muitos acertos nas discussões
centrais de toda essa era. Nem deve surpreender, talvez, se se considera a perda
de confiança que contaminou as esquerdas mundiais, efeito de suas muitas
derrotas no século 20, inclusive de suas próprias alternativas sociais.
Mas
recuperar para nós as lições desses muitos desastres era essencial, para que não
se repitam os erros. Mesmo depois do Iraque e do Afeganistão, a guerra ao terror
prosseguiu, na matança de civis, na guerra de drones que hoje devasta, do
Paquistão à Somália. As potências ocidentais foram decisivas na derrubada do
regime líbio – agindo em nome de proteger civis, os mesmos civis que,
imediatamente, passaram a ser assassinados aos milhares, numa guerra civil que a
OTAN fez alastrar-se pela região, com a Síria, já devastada pelo mesmo conflito,
sendo ameaçada de intervenção; e o Iraque, de ataque de tipo “solução final”.
E,
enquanto o neoliberalismo era desacreditado em vários fronts, governos ocidentais usavam a
crise para tentar entrincheirá-lo e protegê-lo. Não se cortaram só empregos,
salários e benefícios como jamais antes em toda a história: as privatizações
também prosseguiram. Acertar nas análises, é claro, jamais foi suficiente. Ainda
falta muita pressão social e política, e terá de ser forte, para virar a mesa do
poder.
Em
2008, cresceu também muito acentuadamente a revolta contra uma elite
desacreditada e seus projetos sociais e econômicos fracassados. Com o peso da
crise já descarregado sobre os ombros das maiorias, alastraram-se os protestos,
as greves e vitórias eleitorais, o que mostra que a pressão por mudança efetiva
está só começando. Rejeitar a ganância, a arrogância e o poder das grandes
corporações já é o senso comum de época.
Eric Hobsbawm |
O historiador Eric Hobsbawm
descreveu o crash de 2008 como “equivalente, no mundo da direita, à queda
do muro de Berlim” [2]. Virou lugar comum dizer que,
depois da implosão do comunismo e ante a ascensão da social-democracia
tradicional, a esquerda teria ficado sem alternativa sistêmica a oferecer. Mas
nenhum modelo jamais foi servido pré-cozido. Todos, do poder soviético e do
estado de bem-estar keynesiano ao
neoliberalismo de Thatcher-Reagan, cresceram de improvisações ideologicamente
motivadas em circunstâncias histórias específicas.
O
mesmo vale para o dia seguinte da crise da ordem neoliberal. A necessidade de
reconstruir uma economia quebrada, em novas bases, mais democráticas, mais
igualitárias e mais racional, começa a ditar o formato de uma alternativa menos
instável, mais sustentável. Ambas, a crise econômica e a crise ecológica já
exigiram propriedade social partilhada, intervenção pública, com a riqueza e o
poder já trocando de mãos. A vida real está empurrando na direção de soluções
socialmente avançadas.
Os
levantes dos primeiros anos do século 21 abriram a possibilidade de um novo tipo
de ordem global e de genuína mudança social e econômica. Como os comunistas
aprenderam em 1989, e os defensores do capitalismo só descobriram 20 anos
depois, nada, em nenhum caso, estará jamais resolvido para
sempre.
*Epígrafe
acrescentada pelos tradutores, cortada-colada-traduzida de MOSCHONAS,
Gerassimos, “The
European Union and the Dilemmas of the Radical Left”, Transform,
n. 09/2011, em tradução.
___________________________________________
Notas
de tradução
[1]
Versão editada de extrato de MILNE, Seumas, The
Revenge of History: the Battle for the 21st Century [A vingança
da história: a batalha pelo século 21], New York: Verso.
[2] Eric Hobsbawm, Libération, 23/5/2009, em: “Une
réponse à la propagande libérale”
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