sábado, 22 de dezembro de 2012

Como o latifúndio opera e cresce 22/12/2012

Carta Capital 

Marãiwatséde

“Esse conflito é uma história de como o latifúndio opera”


Por Felipe Milanez

Paulo Maldos é secretário Nacional de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência e está na linha de frente no diálogo com os movimentos sociais, principalmente aqueles relacionados a conflitos no campo. No início de 2012, ele acompanhou a desocupação da região do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), e foi alvejado por uma bala de borracha disparada pela Polícia Militar.
O secretário nacional de Articulação Social, Paulo Maldos. Foto: José Cruz/Agência Brasil
Pouco antes, no final de 2011, ao visitar um tekohá guarani-kaiowa no Mato Grosso do Sul, chegou a ser ameaçado por fazendeiros. Agora, Maldos é o coordenador-geral do grupo de trabalho criado pelo governo federal para promover a desintrusão da terra indígena Marãiwatséde. Ele esteve na área e presenciou cenas de violência, racismo, discriminação. Em Brasília, durante o processo, percebeu como funciona a Casa Grande brasileira, cujo lobby em torno de Marãiwatséde serviu para mostrar de que maneira, historicamente, formam-se as grandes propriedades rurais: “É uma história de como o latifúndio opera. Ele vai para as cabeças dos três Poderes, pressionando. A mídia é um grande instrumento deles para contar a sua versão das coisas. E, em campo, utilizam a violência.”
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Como porta-voz das ações do governo na desintrusão, Maldos faz um balanço de uma das mais importantes operações de retomadas de um território indígena em toda a história do País: apesar de homologada, os índios ocupavam menos de 10% da área, totalmente tomada por fazendas, controlada principalmente por 22 grandes fazendeiros. Para se ter uma ideia, na TI Raposa Serra do Sol, em Roraima, os principais ocupantes não-índios eram 7 arrozeiros em uma área cerca de 1% da reserva. Só na primeira semana, já foram retomados mais de 20 mil hectares em Maraiwatséde. “O Estado se organizar para prestar um serviço em defesa do direito originário de uma comunidade indígena é muito bonito”, disse Maldos na entrevista exclusiva abaixo.
CartaCapitalA retomada da terra indígena Marãiwatséde já foi vencida? O clima no local já é de aceitação?
Paulo Maldos – É um processo que ruma para o seu final. Não digo que vai ser amanhã, mas ruma para um desenlace favorável ao reconhecimentos dos direitos indígenas e, particularmente, daqueles da comunidade de Marãiwatséde, que tem uma história de retirada forçada, exílio e volta à terra. O processo de demarcação correu concomitante a uma invasão deliberada, planejada pelos políticos da região.
CartaCapital – Uma invasão deliberada por políticos? Qual é a grande questão por trás?
Paulo Maldos A grande questão era evitar que a terra voltasse a ser dos legítimos donos e ficasse para o mercado. Esse é o pano de fundo dessa disputa: se é um território reconhecido como indígena, de propriedade da União, com usufruto exclusivo da comunidade; ou se é uma terra disponibilizada para o mercado de terras. Essa é a grande queda-de-braço. Só isso explica a virulência dos operadores políticos, econômicos e sociais, que se jogam contra esse processo. No caso concreto, os grandes invasores não admitem a terra fora do mercado. Eles consideram que possuem 7 mil, 9 mil hectares, e raciocinam pelo preço do mercado de terras no Mato Grosso, como se tivessem 50, 60 milhões de reais de patrimônio. Essa ocupação foi fruto de uma invasão deliberada, pura e simples, com a colocação de cercas e de pistoleiros. Eles acham que isso pode se chamar propriedade.
Crianças protestam pelo direito de permanecer em suas terras. Foto: Ministério Público Federal
CartaCapitalNa terra indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, ocorreu um fenômeno parecido com a resistência dos plantadores de arroz?
Paulo Maldos Essa é a mesma coisa que o Paulo Cesar Quartiero (o maior fazendeiro risicultor da área) fazia na Raposa/Serra do Sol. Quando houve a definição da terra indígena, o Quartiero tinha duas mil estacas de cercas prontas para serem colocadas para ampliar a sua chamada “propriedade”. Eles acham que são parcelas de território que devem fazer parte do mercado de terras. Se acham prejudicados por esses territórios serem reconhecidos como patrimônio da União de usufruto exclusivo das comunidades indígenas.
CC – E Marãiwatséde agora, como está?
PM - O que eu percebo é que a situação terá desenlace favorável dessa terra como patrimônio da União e de usufruto exclusivo da comunidade xavante de Marãiwatséde. É um reconhecimento feito 20 anos atrás, pela Funai, e homologado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 1998. Foi muito judicializado, mas em todas as instâncias foi reconhecido o direito indígena. Todas. Por fim, reconhecimento pela última decisão do ministro presidente do STF, Ayres Britto, e confirmada pelo presidente  atual, Joaquim Barbosa. Estas decisões consolidam o quadro jurídico. Operamos a partir dele, de apoio aos oficiais de Justiça para terminar esse processo de retirada dos ocupantes, chamado desintrusão.
Todos os ocupantes foram considerados de má-fé pela Justiça. Do primeiro ao último, eles sabiam que se tratava de terra indígena. Houve um encontro, nos anos 90, em que os políticos incentivaram publicamente os pequenos, os médios e os grandes a entrar. Inclusive definindo territorialmente onde ficaria cada um. Foi uma invasão deliberada. Por um lado, com base no preconceito contra os índios, dizendo que eles não poderiam desenvolver a região. Por outro, na cobiça pela terra e no mercado de terras.
Francisco Tsipé, guerreiro Xavante – o ancião da aldeia, carregando nas mãos um punhado da sua terra de origem. Foto: MPF
Demos apoio aos oficiais de Justiça para as notificações, e apenas no último dia houve tensão, incentivada, de novo, pelos políticos que estavam lá atrás incentivando a invasão do território em 1992. Foram eles que, de novo, apareceram no Posto da Mata, no último momento da notificação. Tentaram trazer tensão ao processo, mas ali praticamente todo o território já estava notificado. Todos estavam amplamente informados, e o juiz considerou que a notificação estava feita. Vencendo essa etapa, chegamos no final do final, que é a retirada dos invasores.
CC – Como está ocorrendo esse processo de desintrusão e a retirada dos invasores?
MD - Está sendo um processo pacífico, muito paciente. Tudo está georreferenciado, todas as posses. Estamos indo uma por uma para verificar in loco se tem gente ou não, dando os meios para aqueles que não puderam sair ainda, para saírem, retirarem o gado, os pertences. Estamos encontrando muita área abandonada. Muitos sítios que são apenas para tomar conta de gado, tem o cercado para o pasto e uma casinha de madeira e palha, onde vai o empregado de vez em quando. A gente encontrou uma região abandonada, com muito pouca infraestrutura para produção. Aqui e ali apenas algum plantio de soja, algum pouco gado, pois muita gente já retirou. É quase terminal o que a gente encontra lá.
CC –  E a tensão, onde tem acontecido?
PM - O foco de maior tensão desse processo se dá no Posto da Mata, que é um conjunto de casas, não chega talvez a 200, que surgiu em torno de um posto de gasolina, ilegal também. Ali se constituiu um núcleo que causa tensão ao processo. Outro é o núcleo que tem os 22 grandes invasores, que operam na política. Esses acionam prefeitos da região, políticos, a bancada do Mato Grosso, o governador. Agem para pressionar o governo federal, o Supremo Tribunal Federal, junto ao presidente da Câmara dos Deputados, ao Senado, e ministros aqui em Brasília. É uma de história de como o latifúndio opera. Ele vai para as cabeças dos três poderes, estabelecendo a tensão, contando a sua versão das coisas. Exigindo respeito à propriedade, mas contando muita mentira. E a mídia é um grande instrumento deles de contar a sua versão das coisas: que viveriam sete mil pessoas lá, que haveriam duas mil cabeças de gado, que tem título de propriedade. A capacidade de manipulação é fantástica. É um absurdo o quanto de mentiras existe nesse processo. A capacidade de faltar com a verdade veiculando uma situação absolutamente fantasiosa sobre o que é Marãiwatséde, sobre a história de Marãiwatséde e a população não índia. Inverdades a respeito da proporção das coisas: está para nascer o milésimo xavante de Marãiwatséde por esses dias. Mas através da mídia falavam em 150 índios, e sete mil não-indígenas. A gente conseguiu encontrar, durante todo esse processo, notificando gente na estrada, nos botecos, 455 pessoas. Esse número é bem distante dos sete mil alardeados. Então tem uma operação que eles fazem, no nível dos três poderes e na mídia, com números totalmente irreais.
O líder Damião com a decisão do desembargador Souza Prudente, do TRF-1, de 18 de maio de 2012, que revogou decisão que suspendia a desintrusão. Foto: MPF
Apesar desse modus operandis, o que houve de concreto foi o reconhecimento pela Justiça do direito indígena àquele território. Terra da União e de uso exclusivo dessa comunidade. O Estado, no caso governo federal, atuando para dar suporte para essa decisão da Justiça. É isso o que está acontecendo. Da parte do governo, da presidenta, essa é uma decisão irreversível.
CC - Qual o papel do governo e da Justiça na decisão da desintrusão de Marãiwatséde?
PM - Os dois estão bem firmes nesse reconhecimento. Ontem teve uma cerimônia no Itamaraty, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, e dois dos premiados foram os bispos eméritos dom Tomaz Balduíno, de Goiás Velho, e dom Pedro Casaldáliga, lá de São Felix do Araguaia – este que é um conhecido defensor dos direitos indígenas, particularmente dos xavantes de Marãiwatséde.  Ele chegou na região nos anos 1960 e viu o processo de formação da fazenda Suiá Missú em cima do território xavante. Viu todas as práticas de destruição ambiental, de violência contra os posseiros na região. É testemunha de tudo isso. Por ter sido sempre defensor dos direitos indígenas foi, nos últimos meses, ameaçado de morte.
CC - Como ocorreram e como foram detectadas as ameaças de morte a dom Pedro Casaldáliga?
PM – Primeiro, foi a inteligência do estado do Mato Grosso, do próprio governo do Estado, através da Polícia Civil. O delegado me ligou para dizer que tinham detectado um plano de sequestro de dom Pedro por parte dos ocupantes “brancos” de Marãiwatséde. Depois, quando já estávamos indo para a região para montar a base, solicitamos aos órgãos de inteligência que fossem num circuito no Posto da Mata para ver o que estava acontecendo e realmente se identificou que havia dois planos. Um para assassinar o cacique Damião, da aldeia de Marãiwatséde, que a polícia civil também já tinha nos alertado. E outro para sequestrar dom Pedro Casaldáliga. Acreditavam que sequestrando dom Pedro Casaldáliga poderiam forçar o governo a voltar atrás. A gente colocou a Polícia Federal e outros para investigar isso. Duas semanas atrás, entre os fazendeiros corria a “decisão” – não sei que nome dar a isso – de que dom Pedro não passava daquela semana. Foi a gota d’água. O sinal vermelho, o máximo de alarme. A Polícia Federal, já na região, fez um acordo com ele de sair temporariamente de lá, para preservar a vida, enquanto levamos esse processo de desintrusão. Vamos esperar que essas questões se acalmem. Inclusive deixar claro para todo mundo nesse processo que dom Pedro Casaldáliga é uma figura histórica. Foi ele quem denunciou a formação criminosa da fazenda Suiá-Missú. A rigor, ele não tem nada a ver com a demarcação, homologação, desintrusão. Marãiwatséde é uma decisão que passou ao nível do Estado. Foi a Justiça, o Tribunal Regional Federal, o Supremo Tribunal Federal, foi a Funai, Ministério da Justiça, Presidência da República do Brasil, do governo anterior, Fernando Henrique Cardoso, que tomaram as decisões, implementaram. A terra está registrada como da União. A dom Pedro Casaldáliga não pode ser imputado nenhum tipo de responsabilidade em um processo. Ele, com todo o mérito e coragem, apenas denunciou a formação do o maior latifúndio brasileiro a época. Um latifúndio criminoso, que usava de práticas criminosas contra posseiros, contra indígenas, contra a população local para se impor. Foi ele quem denunciou quando passou a morar lá, como padre ainda. Como podem misturar as coisas? Querem agredi-lo por algo que ele não tem responsabilidade. Depois o Estado, provocado, tomou medidas para sanear e reconhecer os direitos indígenas sobre esse território. O Estado se responsabilizou. Dom Pedro é uma figura muito querida e importante para o Brasil e a Catalunha. Não se pode responsabiliza-lo por absolutamente nada, apenas ajudou a reconhecer os direitos indígenas.
Reunião no Posto da Mata em 1992. Fotos: Divulgação
CC –  E o período posterior à desintrusão? Haverá uma fiscalização para garantir que os invasores não voltem mais? E a presença do Estado na região, com tantas ameaças de morte?
PM - Os pequenos que querem retirar os pertences também são ameaçados. Dizem que se pegarem o caminhão deles, com as coisas deles, vão incendiar, que vão ser mortos. O que se pretende é que esse processo de desintrusão chegue a termo. A colocação dos pequenos em assentamentos de reforma agrária na região, que são destinados para isso. E também existe a possibilidade de se criar um assentamento pré-urbano, em Alto Boavista, para os que saírem do Posto da Mata, pequenos comerciantes e moradores. Ao sair, pretendemos, primeiro, regularizar essa situação de presença do Estado nesses assentamentos, e depois dar suporte para a comunidade de Marãiwatséde para a gestão de seu território.
CC –  Como vai ser dado esse suporte aos xavante?
PM - A presidenta Dilma lançou no Dia Mundial do Meio Ambiente, nesse ano, a PNGAT, Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas. É um conjunto de instrumentos que permite à comunidade indígena fazer a gestão do seu próprio território. Reflorestamento de áreas degradadas, produção de acordo com seus valores culturais, planejar a ocupação do território e uso dos bens ambientais que dispõe. Ter condições de se auto-sustentar. Vai ser uma ferramenta muito importante para a comunidade se reapropriar do seu território, recuperá-lo ambientalmente, porque foi extremamente degradado. Os invasores não-índios possuem R$ 158 milhões em multas acumuladas por crimes ambientais. Nunca pagaram um real. Foi uma área extremamente devastada, com queimadas sucessivas para formação de pastagem. E essa comunidade xavante está forçada a ter o tamanho que tem, isto é, mil pessoas morando na mesma aldeia, quando geralmente se fraccionam em aldeias bem menores. Agora, vão poder se multiplicar em pequenas aldeias para ocupar o território. Isso fora os xavantes de Marãiwatséde que estão espalhados na região, anciãos e famílias, ainda dispersos pela expulsão original de 1966. A Funai tem o projeto de recontatá-los. É um processo lento.
A reunião que decidiu a ação no começo dos anos 90. Foto: Divulgaçao
Ao mesmo tempo, é preciso ter uma política pública mais forte na região. Por meio do Incra, do Ministério do Desenvolvimento Agrário e outros ministérios, para que o Estado esteja presente lá. Não é só ali que o Estado é bastante frágil, quase inexistente. É na região inteira. Em Confresa, por exemplo, que é um município vizinho, há poucos anos foi identificado cerca de mil trabalhadores em situação análoga a de trabalho escravo. É uma região de ocupação da época da Ditadura, desenfreada, com apoio da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), com práticas criminosas, devastação, expulsão de posseiros que estavam há décadas, feita na base do terrorismo, de queimada de casas, assassinato. A região toda tem uma história da violência, uma cultura da violência e da impunidade, da lei do mais forte e da ausência do Estado. A Amazônia toda é meio assim. Desde a ocupação desenfreada, com apoio governamental na época, criminosa, da Ditadura.
CC –  E com relação outras terras indígenas que vivem situação semelhante, e são impactadas por projetos do governo, como as terras indígenas Apyterewa e Cachoeira Seca do Iriri, na região de Belo Monte, que também estão invadidas? O governo vai tomar o mesmo posicionamento?
PM - A desintrusão de Apyterewa está quase terminada. Houve recentemente o sorteio dos lotes dos ocupantes não índios que irão para um assentamento, com uma participação grande das pessoas que estão lá para buscar seus lotes. Mas Cachoeira Seca ainda falta. A Constituição reconheceu os direitos dos povos indígenas sobre seus territórios. Houve, de lá para cá, uma fase de demarcação que se avançou bastante. Em regiões, digamos, com menos complicações. Durante o governo Fernando Henrique houve um processo bastante intenso de demarcação, com a participação das comunidades indígenas e todo o procedimento legal. Mas em regiões com ocupação rarefeita não-indígena. Isso facilitou os processos de demarcação e homologação. Em Raposa Serra do Sol se viu o início da complicação para obstruir o reconhecimento desses direitos. Há os invasores de má-fé, que não possuem título. Mas tem complicadores, como aqueles em que há ocupantes cujo avô recebeu um título de Vargas, no Mato Grosso do Sul. Nessas regiões o processo fica muito mais complicado, e as resistências se armam. Para essa minoria que exibe títulos de boa-fé, é preciso ver uma solução dar para esses títulos que o Estado cedeu. É necessário continuar todo o processo que a Constituição manda de demarcar e homologar todas as terras indígenas do País. Vai ser um processo sempre cheio de tensões, jurídicas e políticas.
Cartaz do leilão de terras patrocinado pelo Banco Bemerindus de novembro de 1992
CC - O governo informa que 22 grandes fazendeiros, donos de 31 fazendas, são responsáveis por grande parte dos 158 milhões de reais de crime e destruição. Além de estarem por trás de tantas ameaças de mortes. Tudo isso vai ficar impune após a desintrusão?
PM - A Polícia Federal abriu uma série de inquéritos. Isso está em curso. Há vários policiais federais na região e um delegado que abriu inquérito para todo tipo de crime que foi perpetrado. Há várias linhas de inquéritos. Ameaças de morte, agressões, agressões ao meio ambiente. Está tudo em processo. Tudo que foi praticado de crime está em inquérito. A informação vem sendo processada, agregada e organizada.
CC - Com relação ao racismo contra os índios: há algum plano ou política de combate ao racismo na região?
PM - Estamos tão envolvidos com o dia-a-dia que não conseguimos pensar a médio e longo prazo. Mas é uma preocupação nossa. A Secretaria de Direitos Humanos acompanha esse processo, e foi ela quem premiou dom Pedro Casaldáliga, de maneira simbólica, por causa de toda essa situação. Assim como no Mato Grosso do Sul, é um desafio combater o racismo e o preconceito antiindígena. É uma questão que a gente vai ter que lidar. A região foi muito mobilizada com base no racismo nos últimos meses. Fortalecendo o racismo pré-existente, desde os últimos 20 anos ou mais. É um desafio, não só lá como em outras partes do Brasil, particularmente no Mato Grosso do Sul. Não há nada definido ainda. A gente acha que empoderando a comunidade e trabalhando com as novas gerações isso pode ser reduzido.
Como hoje a política pública está muito territorializada,  existem mecanismos. Tanto a Funai, como a educação, e a saúde são constituídas com base nos territórios étnicos, e é possível desencadear processos de fortalecimento da comunidade para combater o racismo em bases territoriais. E isso envolve a saúde também. Por exemplo: semana passada teve um xavante que se acidentou na comunidade de Marãiwatséde, se feriu gravemente e foi retirado pela Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) da aldeia para o hospital em Água Boa. Quando a ambulância passou pelo bloqueio no Posto da Mata, tiveram que esconder o menino dentro do carro. Foram abordados e ameaçados. Por sorte não viram que o menino estava no carro. Se o carro voltasse, eles iriam queimá-lo e quem estivesse dentro poderia não sobreviver. Depois que passaram o bloqueio e chegaram no hospital, o médico se recusou a atender porque era um índio. Não atender uma pessoa porque é índio é uma coisa do século 19, mas está presente lá. Este tipo de racismo e preconceito é furioso. Racismo disseminado e manipulado, instrumentalizado por esses grandes invasores que historicamente tem interesses econômicos ali. São eles quem manipulam esse sentimento, colocam essa população contra os indígenas. E usam expedientes criminosos mesmo.
Exemplo de campanhas racistas promovidas pelos invasores
CC - Onde estão e quem são os criminosos?
PM - A gente identificou no Posto da Mata criminosos, literalmente. Os maiores agitadores ali são ex-presidiários. Com processos de sequestro, assalto a banco, assalto a mão armada, recém saídos da cadeia em Cuiabá. São os mais agressivos no Posto da Mata. Por exemplo: quando estávamos fazendo a notificação, e houve uma tensão no final da notificação, foi o prefeito de São Félix do Araguaia, chamado Filemon, que foi lá e ficou fazendo agitação e jogando a população contra os oficiais de Justiça e contra a Forca Nacional e a Polícia Federal. Filemon é o mesmo que está na origem da invasão, nas gravações de 1992 incentivando a invasão. O mesmo personagem volta 20 anos depois incentivando a população contra a notificação. E quem é que ele incentivou e acabou virando um carro da Força Nacional, quase matou o oficial que estava dentro do carro? Dos sete que viraram a caminhonete, três foram identificados: um recém saído da cadeia por sequestro, outro por assalto a banco, outro por roubo com mão armada. Eles operam em todos os níveis. Por um lado, sobre tribunais, deputados, senadores, ministros. Por outro lado, na mídia. E inclusive com criminosos foragidos da justiça – no Posto da Mata tem muitos foragidos da Justiça.
CC – Essa rede criminosa está concentrada no Posto da Mata?
Mais campanha online contra os índios.
PM - O Posto da Mata funciona como ponto de ataque não só para a área indígena. Tem ali a fazenda Bordolândia, que é uma área que foi destinada a reforma agrária. Ela tem uma reserva legal toda cheia de gado, invadida. A fazenda é vizinha a Marãiwatséde. A Polícia Federal foi lá fazer a desintrusão desse gado e se deparou com os que jogam gado lá dentro. Ao verificar, confirmou que moram em Posto da Mata. É um centro que exporta ilegalidade. Seja na área indígena, seja na área de preservação ambiental. O que eles não admitem nunca é o Estado, lei, regra, pagar imposto. Tudo isso não é bem visto lá.
CC - E qual o sentimento final do processo de desintrusão?
PM - Está sendo um processo pioneiro, instigante e estimulante. Foi criada uma coordenação com mais de 12 órgãos do governo para poder levar esse processo para frente. Atores que entraram nesse processo que é inusitado e um avanço enorme para o estado brasileiro. Setores das Forças Armadas, Ministério da Defesa, vários órgãos fazendo um planejamento estratégico juntos. Temos um lugar de reunião no Ministério da Defesa. Colocamos uma antena lá na base em Alto Boa Vista, onde  constituímos um coletivo do governo duas vezes por semana, um grupo daqui e outro de lá, para ir monitorando o planejamento estratégico que a gente fez. Trocando informações, se articulando, colocando recursos materiais juntos, helicópteros, carros, recursos financeiros, estrutura, gente, e inteligência e energia. Um processo muito bonito e único em termos de governo. O Estado se voltando a prestar serviços para uma comunidade. Quando eu vejo uma reunião com 12 órgãos públicos, e lá do outro lado, na teleconferência, Polícia Federal, Força Nacional, os órgãos todos, trocando informações para viabilizar a notificação e depois viabilizar a desintrusão. É fantástico, é um avanço imenso o Estado se empenhar para cuidar da questão indígena e colocar seus melhores recursos em defesa do direito e do patrimônio público, uma terra da União, mas de usufruto exclusivo dos índios. O Estado se organizar para prestar serviço em defesa desse direito originário de uma comunidade indígena é muito bonito.

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