A exceção latino-americana
Única área do planeta onde os gulags de tortura da CIA não se
implantaram
18/2/2013, Greg Grandin, Tom
Dispatch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Greg Grandin |
O
mapa diz tudo.
Como
ilustração para um terrível novo relatório, “Globalizing Torture: CIA Secret Detentions
and Extraordinary Rendition” [Globalizar a Tortura: Prisões secretas da CIA
e as “entregas extraordinárias” (de prisioneiros políticos a outros países para
serem torturados fora do território norte-americano)] recentemente
publicado pelo Open Society Institute, o Washington
Post construiu um infográfico igualmente terrível: todo pintado de vermelho,
como encharcado em sangue; mostra que nos anos depois do 11/9 a CIA transformou
quase todo o planeta em um gigantesco arquipélago gulag.
No
início do século 20, mapa também quase todo pintado em vermelho era usado para
mostrar o alcance global do Império Britânico, onde, se dizia, o sol nunca se
punha. Tudo sugere que, entre o 11/9 e o dia em que George W. Bush deixou
a Casa Branca, o sol tampouco se punha no império de tortura que a CIA
construiu.
No total, dos cerca de 190 países
que há no planeta, 54 participaram de diferentes modos do sistema global de
tortura construído pelos EUA, acolhendo as prisões da CIA nos “pontos negros”
[orig. black
site],
permitindo que seu espaço aéreo e aeroportos fossem usados para voos
clandestinos, oferecendo inteligência, sequestrando estrangeiros ou nacionais do
próprio país e repassando-os a agentes norte-americanos para que
fossem “entregues” a
terceiros países como o Egito ou a Síria. Marca registrada dessa rede, escreve
Open Society, foi sempre a
tortura. O
relatório documenta os nomes de 136 indivíduos desaparecidos no que o relatório
apresenta como operação ainda em andamento, embora os autores deixem bem claro
que o número total, implicitamente muito superior, “permanecerá para sempre
oculto”, dado o “excepcional nível de sigilo oficial, associado às prisões
secretas e à rede das ‘entregas extraordinárias’ de prisioneiros a vários
países”.
Nenhuma região do mundo escapa à
imensa mancha de sangue. Nem a América do Norte, lar do comando central do
gulag global. Nem a Europa, o Oriente Médio, a África, a Ásia. Nem a tão
social-democrata Escandinávia. A Suécia entregou pelo menos dois prisioneiros à
CIA, em seguida repassados (“entrega extraordinária”) ao Egito, onde foram
torturados com choques elétricos e sofreram outras violências. Nenhuma região
escapa... exceto a América Latina.
O
que mais chama a atenção no mapa publicado pelo Post é que, na América
Latina, não se vê nenhuma marca vermelha-cor-de-sangue, horrenda marca de postos
de tortura distribuídos pelo planeta pela CIA. De fato, nenhum dos países do que
um dia se chamou “o quintal de Washington” participou do programa de entrega de
prisioneiros, por agentes norte-americanos, para serem torturados fora do
território dos EUA; nenhum apoiou o programa dirigido por Washington; nenhum
recebeu, para serem torturados, quaisquer “suspeitos de terrorismo”. Nem a
Colômbia, país que, nos últimos 20 anos, foi o estado-cliente mais próximo dos
EUA na região. É verdade que deveria aparecer uma marca de sangue sobre a ilha
de Cuba, mas só faria confirmar o que já se viu. Ali não é território
latino-americano desde que Teddy Roosevelt tomou para os EUA a Base Naval de
Guantánamo, em 1903, como “propriedade perpétua”.
Duas,
três, muitas CIAs
Como a
América Latina conseguiu tornar-se territorio libre nesse novo mundo
distópico de prisões “pontos negros” e
voos na calada da noite, o Sion dessa
matrix (como
diriam os fãs dos filmes de Wachowskis) militarista? Afinal de contas, foi na
América Latina que uma primeira geração de especialistas em contraguerrilha
norte-americanos ou financiados pelos EUA criaram um protótipo do que seria a
Guerra Global ao Terror, de Washington, no século 21.
Michael McClintock |
Já antes da Revolução Cubana de
1959, antes de Che Guevara convocar os revolucionários a criarem “dois, três,
muitos Vietnãs”, Washington já tratava de instalar duas, três, muitas agências
centralizadas de inteligência na América Latina. Como Michael McClintock mostra
em seu
indispensável Instruments of Statecraft, no final
de 1954, poucos meses depois do infame golpe que a CIA promoveu na Guatemala e
que derrubou governo democraticamente eleito, o Conselho Nacional de Segurança
dos EUA recomendava “fortalecer as forças internas de segurança nas nações
estrangeiras amigas”. Na Região, significa três coisas.
Primeiro, os
agentes da CIA e outros funcionários dos EUA puseram-se a trabalhar
“profissionalizando” as forças de segurança de vários países (Guatemala,
Colômbia e Uruguai) – quer dizer: convertendo os aparelhos locais de
inteligência, quase sempre brutais, mas pouco eficazes, em agências sempre
brutais, mas “centralizadas” e eficientes, capazes de reunir informações,
analisá-las e armazená-las. Mais importante, cuidaram de coordenar os vários
braços das forças de segurança de cada país – a polícia, os militares e os
esquadrões paramilitares – para agirem a partir da informação obtida, ação quase
sempre letal e sempre brutal.
Segundo, os
EUA expandiram enormemente o alcance dessas novas agências muito mais eficazes e
eficientes, deixando bem claro que trabalhavam não só na defesa nacional, mas
também na agressão contra estrangeiros. Estavam sendo construídas para serem a
vanguarda de uma guerra global pela “liberdade” e de um império anticomunista de
terror em todo o hemisfério.
Terceiro, os
agentes norte-americanos em Montevidéu, Santiago,
Buenos Aires, Assunção, La Paz, Lima, Quito, San Salvador, Cidade da Guatemala e
Manágua trabalhariam para sincronizar a operação de todas as diferentes forças
nacionais de segurança.
Orlando Letelier |
O
resultado foi estado de terror em escala praticamente continental. Nos anos
1970s e 1980s, a “Operação Condor” [1]
do
ditador chileno Augusto Pinochet, na qual operaram juntos serviços de
inteligência de Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai e Chile, foi o mais infame
consórcio transnacional de terror, com ações criminosas em Washington (assassinato de Orlando
Letelier), em
Paris e
em Roma. Os
EUA, desde antes, já trabalhavam
para construir
operações desse tipo no hemisfério sul, principalmente na América Central, nos
anos 1960s.
Quando
a União Soviética entrou em colapso em 1991, centenas de milhares de
latino-americanos haviam sido torturados, assassinados, sequestrados e
desaparecidos, ou presos sem julgamento, por resultado, em grande parte, das
habilidades organizacionais e do apoio de agentes terroristas norte-americanos.
A América Latina era, então, o gulag de fundo de quintal de Washington.
Os atuais presidentes de três países da região – José Mujica, do Uruguai; Dilma
Rousseff, do Brasil; e Daniel Ortega da Nicarágua – foram vítimas desse reino de
terror.
Quando
terminou a Guerra Fria, grupos de direitos humanos começaram a tarefa hercúleo
de desmantelar a rede amplíssima, muito profundamente enraizada, de dimensões
continentais, de agentes de inteligência, espiões, prisões clandestinas e
técnicas de tortura – e de expulsar do governos da região os militares,
enviando-os de volta à caserna. Nos anos 1990s, Washington não só não se opôs a
esse processo como, de fato, até deu uma ajuda na despolitização das Forças
Armadas na América Latina. Muitos acreditaram que, com a União Soviética fora do
páreo, Washington poderia projetar o próprio poder no próprio quintal mediante
meios mais ‘suaves’ como acordos internacionais de comércio e outras modalidades
de alavancagem econômica., Aconteceu, então, o 11/9.
“Oh
My Goodness”
Rumsfeld |
No
final de novembro de 2002, exatamente quando os traços básicos dos programas de
prisões secretas e de “entregas
extraordinárias” [de
prisioneiros, para serem torturados] da CIA estavam sendo delineados noutra
parte do mundo, o Secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld viajou quase 10
mil quilômetros até Santiago, Chile, para participar de uma reunião de Ministros
de Defesa do hemisfério. “Desnecessário dizer”, disse Rumsfeld,
retórico, “que eu
não viajaria toda essa distância se não achasse que é evento extremamente
importante”. E era.
Foi depois da invasão do
Afeganistão, mas antes da invasão do Iraque, e Rumsfeld
surfava altas ondas, além de repetir “11 de setembro” praticamente de segundo em
segundo. Talvez não conhecesse o especial significado da data em toda a América
Latina, mas 29 anos antes, no primeiro 11/9, um golpe apoiado
pelo general Pinochet e seus militares, com apoio da CIA, levara à morte o
presidente Salvador Allende, democraticamente eleito para governar o Chile. Ou
talvez soubesse e aí estivesse, exatamente, o que mais o interessava? De fato,
estava em preparação uma nova guerra global de defesa da liberdade, chamada
dessa vez Guerra Global ao Terror. Rumsfeld chegava para arregimentar recrutas.
Lá, em Santiago, na cidade da qual
Pinochet comandara a Operação Condor, Rumsfeld e outros funcionários do
Pentágono tentaram vender o
que chamavam então de
“integração” de “várias capacidades integradas em maiores capacidades regionais”
– fórmula insípida de descrever sequestro, tortura e outros meios mortais que já
estavam em andamento em outros pontos. “Eventos em todo o mundo antes e depois
de 11 de setembro sugerem as vantagens” – disse Rumsfeld, de as
nações trabalharem em conjunto para enfrentar a ameaça terrorista.
Pinochet |
“Oh
my goodness [Santo Deus!]” – disse Rumsfeld a um
repórter chileno – “os tipos de ameaças que enfrentamos são globais”. A América
Latina estava em paz, admitiu, mas tinha um aviso para os líderes
latino-americanos: não cometessem a tolice de convencer-se de que o continente
estaria a salvo de nuvens que engrossavam em outros pontos. Os perigos existem,
“antigas ameaças, como drogas, crime organizado, tráfico de armas, sequestros,
captura de reféns, pirataria e lavagem de dinheiro; e novas ameaças, como
cibercrimes; e ameaças desconhecidas, que podem surgir sem aviso”.
“Novas
ameaças”, acrescentou, “têm de ser enfrentadas com novas capacidades”. Graças ao
relatório agora publicado pela Open
Society, vê-se hoje exatamente de que “novas capacidades” Rumsfeld falava.
Poucas
semanas antes de Rumsfeld chegar a Santiago, por exemplo, os EUA, agindo
baseados em informação falsa fornecida pela Real Polícia Montada do Canadá,
haviam prendido Maher Arar, homem de duas nacionalidades, sírio e canadense, no
aeroporto John F. Kennedy de New
York; em seguida o entregaram a uma “Unidade Especial de Remoção” [orig.
Special Removal Unit]. Foi levado primeiro à Jordânia, onde foi
espancado; depois, foi levado à Síria, país que vive em fuso horário cinco horas
adiante em relação ao
Chile, onde foi entregue a torturadores locais. Dia 18 de
novembro, quando Rumsfeld fazia sua palestra em Santiago ao meio dia, já eram
cinco da tarde na “cela-túmulo” de Arar numa prisão da Síria. Ali Arar passaria,
sob tortura, todo o ano seguinte.
Ghairat Baheer |
Ghairat
Baheer foi capturado no Paquistão cerca de três semanas antes da viagem de
Rumsfeld ao Chile, e jogado numa prisão controlada pela CIA no Afeganistão,
chamada Salt Pit. Enquanto o
Secretário de Defesa elogiava o retorno da América Latina ao Estado de Direito,
depois dos negros dias da Guerra Fria, é provável que Baheer estivesse no meio
de uma sessão de tortura “pendurado nu, durantes horas”.
Capturado
um mês antes da visita de Rumsfeld a Santiago, o cidadão saudita Abd al Rahim al
Nashiri foi transportado para Salt
Pit; depois foi transferido “para outro ponto negro em Bangkok,
Tailândia, onde sofreu simulação de afogamento”. Depois, passou
pela Polônia, Marrocos, Guantánamo, Romênia, e voltou a Guantánamo, onde
permanece. Nesse período, foi submetido a “simulação de execução com pólvora
seca, com ele em pé e amarrado”; e um interrogador norte-americano encostou uma
arma semiautomática na cabeça dele, com ele sentado à sua frente”. Os
interrogadores também “o ameaçaram de trazer sua mãe, para ser estuprada à
frente do filho”.
Cerca
de um mês antes da reunião em Santiago, o iemenita Bashi Nasir Ali Al Marwalah
foi levado de avião para Camp X-Ray, na ilha de Cuba, onde permanece até hoje.
Menos
de duas semanas depois que Rumsfeld jurou que os EUA e a América Latina
partilhariam “valores comuns”, Mullah Habibullah, cidadão afegão, morreu “depois
de sofrer graves maus tratos” quando estava sob custódia da CIA num local
chamado “Bagram Collection Point”.
Investigação militar nos EUA “concluiu que o uso de posições de estresse e
privação de sono, combinado a outros tipos de agressões (...) causaram ou foram
fatores que contribuíram diretamente para sua morte”.
Dois
dias depois do discurso do secretário em Santiago, um agente da CIA que
trabalhava em Salt Pit, acorrentara Gul Rahma nu, num bloco de concreto, ao ar
livre. Rahma morreu de frio.
E
o relatório da Open Society prossegue assim, com muitos e muitos e muitos outros
casos.
Territorio
Libre
Rumsfeld
deixou Santiago sem obter compromissos firmes. Alguns dos militares da região
sentiram-se tentados pelas supostas oportunidades que parecia haver na visão do
secretário, de fundir luta contra crimes comuns e uma campanha ideológica contra
o Islã radical, uma guerra unificada na qual tudo ficava subordinado ao comando
dos EUA. Como observou o cientista político Brian Loveman, à época da visita de
Rumsfeld a Santiago, o comandante do Exército Argentino abraçara o mais recente
conjunto de temas de Washington; e insistia em que “defesa é questão a ser
tratada de modo integrado, sem falsas divisões a separarem segurança interna e
externa”.
Mas
a história não andava a favor dos planos de Rumsfeld. Sua viagem a Santiago
coincidiu com a crise de proporções épicas que se abateu sobre as finanças
argentinas, das piores da história. A crise marcou colapso muito profundo e
amplo do modelo econômico – algo como um “reganismo super carregado de
esteróides” – que Washington muito fizera para promover na América Latina, desde
o final da Guerra Fria. Em pouco tempo, uma nova geração de políticos de
esquerda começaria a chegar ao poder em grande parte do continente, e
comprometidos com a noção de soberania nacional, o que implicava limitar a
influência de Washington na região, mais do que qualquer de seus predecessores.
Luiz Ignácio Lula da Silva (E), Hugo Chávez Frías(C), Néstor Kirchner(D) |
Hugo Chávez já era presidente da
Venezuela. Apenas um mês antes da viagem de Rumsfeld a Santiago, Luiz Inácio
Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil pela primeira vez. Poucos meses
depois, no início de 2003, os argentinos elegeram Néstor Kirchner, que pouco
depois de empossado pôs fim às manobras militares conjuntas com os EUA. Nos anos
seguintes, os EUA sofreram baque após baque. Em 2008, por exemplo, o Equador
expulsou os norte-americanos da Base Aérea Manta, que os
EUA
mantinham no país. [2]
Naquele mesmo período, o frenesi
de que foi tomado o governo Bush para invadir o Iraque, ato ao qual se opuseram
a maioria dos países latino-americanos, também contribuiu para minar o que ainda
restasse da boa vontade pró-EUA que o 11/9 produzira na região. O Iraque parecia
confirmar as mais sinistras previsões dos novos presidentes latino-americanos:
que a tal “força para manutenção da paz”, de cuja relevância Rumsfeld tanto
queria convencê-los, não passava de isca, com a qual esperava arregimentar
soldados latino-americanos como Gurkhas,
para
uma guerra imperial unilateral a ser ressuscitada.
No
Brasil, a “cortina de fumaça”
Telegramas
diplomáticos dos EUA divulgados por WikiLeaks mostram o quão firmemente o Brasil
rejeitou os esforços de Washington para pintar o país de vermelho-sangue, no
novo mapa do gulag global.
Telegrama
do Departamento de Estado, de
maio de 2005, por
exemplo, revela que o governo do presidente Lula recusou “múltiplas
solicitações” feitas por Washington para que o país acolhesse prisioneiros
libertados da prisão de Guantánamo, particularmente um grupo de cerca de 15
uigures que os EUA mantinham presos desde 2002 e não podiam ser mandados de
volta para a China.
“A
posição [do Brasil] quanto a essa questão não mudou desde 2003 e não há sinais
de que venha a mudar em futuro próximo” – diz o telegrama. Na sequência,
relatava que o governo Lula dera a entender que considerava todo o sistema
montado em Guantánamo (e por todo o planeta) como afronta à lei internacional.
“Todas as tentativas de discutir essa questão com funcionários do governo do
presidente Lula” concluía o telegrama, “foram rapidamente rejeitadas, ou aceitas
sem entusiasmo e não prosperaram”.
Além disso, o Brasil também não
aceitou qualquer cooperação com o governo Bush para criar o que seria uma
versão, para todo o Hemisfério Ocidental da lei conhecida como Patriot
Act. O plano
implicava, e foi rejeitado por isso, revisar a legislação local de modo a
rebaixar as exigências para comprovar prática de crime de conspiração, ao mesmo
tempo em que se ampliaria a definição do crime de conspiração.
Lula congelou a iniciativa e
manteve-a congelada por vários anos, mas parece que o Departamento de Estado não
percebeu o movimento, ou não o compreendeu corretamente. Até que, em abril de
2008, afinal, um diplomata dos EUA escreveu que o suposto interesse do Brasil em
reformar seu código de leis, acolhendo o pedido de Washington, não passava,
mesmo, de “cortina de fumaça”. O governo brasileiro, conjecturava o
diplomata, temia
que expandir a definição de terrorismo visasse a permitir ataques contra
“membros de movimentos que [o governo Lula] considera legítimos movimentos
sociais que lutam por sociedade mais justa”. E não seria possível “redigir leis
anti-terrorismo que excluíssem as práticas corriqueiras” da base social de
esquerda que apoiava o governo Lula.
Um diplomata
norte-americano reclamou que
esse “modo de pensar” – quer dizer, um modo de pensar de quem realmente valoriza
as liberdades civis – “implica graves desafios aos nossos esforços para promover
a cooperação contra o terrorismo ou promover a aprovação de leis
antiterrorismo”. Além disso, o governo do Brasil preocupava-se com a
possibilidade de a mesma legislação vir a ser usada para perseguir
árabe-brasileiros, que são muitíssimos, no Brasil.
Pode-se
concluir que, se o Brasil e os demais países latino-americanos tivessem
concordado com integrar-se ao programa de “entregas especiais” de prisioneiros
para serem torturados também na América Latina, a Open Society teria lista muito maior de
torturados a publicar em seus relatórios.
Para
finalizar, telegrama também distribuído por WikiLeaks revelou que o Brasil
rejeitou várias vezes os esforços dos EUA para isolar Hugo Chávez, presidente da
Venezuela, providência absolutamente indispensável para que os EUA conseguissem
comandar toda a operação de antiterrorismo em que planejavam envolver o
continente.
Nelson Jobim |
Em fevereiro de 2008, por exemplo,
o embaixador dos EUA no Brasil reuniu-se com o ministro da Defesa de Lula,
Nelson Jobim, para queixar-se de Chávez. Jobim
disse a
Sobell que o Brasil partilhava a “sua preocupação sobre a possibilidade de a
Venezuela exportar instabilidade”. Mas, em vez de “isolar a Venezuela”, o que
poderia levar apenas a maior polarização, Jobim “sugeriu que seu governo
apoiaria a criação de um Conselho Sul Americano de Defesa, para controlar Chávez
e impedi-lo de gerar turbulências”.
Só
havia um problema: o Conselho Sul Americano de Defesa já era, então, ideia de
Chávez! Foi parte de seu esforço, em parceria com Lula do
Brasil, para criar instituições independentes, paralelas às instituições
controladas por Washington. Na conclusão do telegrama, o embaixador dos EUA
estranha a ideia de que o Brasil cogitasse de usar a ideia de Chavez para
“cooperação de Defesa”, como parte de uma “suposta estratégia”... para conter
Chávez.
Para
engripar a engrejagem da máquina perfeita de guerra perpétua
Incapaz de pôr em operação seus
planos de contraterrorismo pós 11/9 em toda a América Latina,
o
governo Bush re-entrincheirou-se. Passou
a tentar construir uma “máquina perfeita de guerra perpétua” num corredor que ia
da Colômbia, pela América Central, até o México. O processo militarizar essa
região mais delimitada, quase sempre sob o disfarce de que ali haveria “guerras
de drogas”, só fez crescer e ampliar-se durante o governo Obama, para dizer o
mínimo. A América Central converteu-se, sim, em única área na qual o SOUTHCOM –
comando do Pentágono que cobre as Américas Central e do Sul – consegue operar
mais ou menos à vontade. Basta considerar este outro
mapa, construído
por Fellowship of Reconciliation, que
mostra a região como uma espécie de longa área de livre movimentação aérea para
os drones e para operações norte-americanas de caça a traficantes de
drogas.
Washington continua
a
tentar avançar cada vez mais para o sul, tentando estabelecer-se como corpo
militar na região; dessa vez, pôs a coisa em embalagem mais tecnocrática e menos
ideológica, mas ainda é aspiração de globalizamento. Os estrategistas militares
dos EUA, por exemplo, adorariam contar com uma
faixa de ampla movimentação aérea na Guiana Francesa ou na parte do Brasil que
avança pelo Atlântico. O Pentágono a usaria como apoio, no projeto de aumentar
sua presença já crescente na
África – o que permitiria que seu SOUTHCOM passasse a agir em coordenação com o o
AFRICOM, o mais novo comando global dos EUA. Mas, pelo menos por hora, a América
do Sul está conseguindo engripar e manter engripada a máquina norte-americana de
guerra perpétua.
Voltando
ao mapa do Washington Post, vale a pena registrar que, pelo menos nessa
parte do mundo, pelo menos nesse século 21, o sol ainda não raiou na coreografia
da tortura global coreografada pelos EUA.
Notas
dos tradutores
[1] A
ver, sobre essa Operação Condor, também, o documentário Condor (Brasil, 2007, dir. Roberto
Mader), interessantíssimo.
[2] Sobre o fim
da base militar dos EUA no Equador: 22/5/2012, vídeo-entrevista traduzida: Assange
entrevista No. 6 – “Rafael
Correa, presidente do Equador”, em que os dois comentam
o episódio:
“JULIAN
ASSANGE: Seu Governo fechou a base militar dos EUA em Manta. Pode
dizer-me por que decidiu fechar aquela base?
RAFAEL
CORREA:
Ora... Você aceitaria uma base militar estrangeira no seu país? Como eu disse
naquela época: se é assunto tão simples, se não há problema algum em os EUA
manterem uma base militar no Equador, ok, tudo bem: permitiremos que a base de
inteligência permaneça no Equador, se os EUA permitirem que estabeleçamos uma
base militar do Equador em Miami. Nessas condições, ok, sem problema.
[Assange
ouve a tradução e ri]
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