20/2/2013, Dan
Glazebrook, Al-Ahram Weekly,
Cairo
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Dan Glazebrook |
A destruição, pelos EUA-OTAN, do
sistema de segurança do Sahel-Saara beneficiou aqueles que desejam ver a África
permanecer no papel de fornecedor subdesenvolvido de matérias-primas baratas,
escreve Dan Glazebrook
A
imagem clássica da África, difundida pela imprensa-empresa ocidental – um saco
gigante, cheio até a boca de guerras infindáveis, fome, crianças abandonadas –
cria a ilusão de um continente que dependeria existencialmente do que lhe dê a
caridade ocidental.
Soldados tuaregues malianos patrulham as ruas de Gao, norte do Mali, no sábado |
A
verdade é exatamente o contrário disso. O ocidente é que depende
existencialmente do que extráia da África. O que o ocidente obtém da África é
obtido de várias, muitas maneiras. Dentre essas maneiras, os fluxos ilícitos de
recursos; os lucros que, invariavelmente, acabam nos cofres dos bancos
ocidentais pelas trilhas dos paraísos fiscais, como já está fartamente
documentado no livro Poisoned Wells [Poços envenenados], de Nicholas
Shaxson. Ou pelo mecanismo de extorsão do sistema das dívidas nacionais, pelo
qual bancos ocidentais emprestam dinheiro a governantes militares, quase sempre
postos no poder com a ajuda de forças ocidentais, como Mobutu, ex-presidente do
Congo; esses governantes apropriam-se do dinheiro emprestado, quase sempre em
contas privadas no próprio banco que emprestou ao país, cabendo ao país a missão
de pagar juros exorbitantes que crescem exponencialmente.
Pesquisa
recente de Leonce Ndikumana e James K. Boyce descobriu que mais de 80 centavos
de cada dólar emprestado deixaram o país devedor em “voos do capital”, no
período de um ano, sem jamais terem sido investidos no país devedor; e que $20
bilhões são drenados da África, por ano, como pagamento “do serviço da dívida”
desses “empréstimos” essencialmente fraudulentos.
Latuff 2013 (Opera Mundi) |
Outra
via pela qual a África serve ao Ocidente, muito mais que o contrário, é o saque
de minérios. Países como a República Democrática do Congo são saqueados por
milícias armadas que roubam recursos naturais do país e os revendem a preços
inferiores aos dos mercados a empresas ocidentais; muitas dessas milícias são
controladas de países vizinhos, como Uganda, Ruanda e Burundi, os quais, por sua
vez, são patrocinados pelo ocidente – como relatam rotineiramente os relatórios
da ONU.
E
há também a via, talvez a mais importante, pela qual a África serve ao Ocidente,
muito mais que o contrário: os preços escandalosamente baixos pagos na compra de
matérias primas da África e, sempre, da força de trabalho africana que minera
minérios, cultiva o que seja cultivável ou colhe o que tenha de ser colhido.
Assim acontece que a África, de fato, subsidia os altos padrões de vida no
ocidente e as empresas e corporações ocidentais.
Esse
é o papel atribuído à África pelos donos da economia capitalista ocidental:
fornecedora de recursos e de mão de obra de baixo preço. Para que o trabalho e
os recursos continuem baratos, exige-se, basicamente, que a África continue
subdesenvolvida e pobre; se prosperar, os salários crescem; se se desenvolver em
termos tecnológicos, os preços dos recursos se somarão ao valor agregado antes
da exportação; e valor agregado tem de ser pago.
Assim
sendo, a extração de petróleo e de recursos minerais a baixo preço depende de
manter os estados africanos frágeis e desunidos. A República Democrática do
Congo, por exemplo – cujas minas produzem dezenas de bilhões de dólares de
minérios todos os anos – só arrecadou, em recente ano fiscal, miseráveis $32
milhões de impostos sobre material extraído das minas, por causa das guerras por
procuração que o ocidente mantêm ativas na região, entre milícias patrocinadas
pelo ocidente.
União Africana |
A
União Africana (UA), criada em 2002, surgiu como ameaça nova contra tudo isso:
um continente africano mais integrado e unificado, não seria tão facilmente
saqueado. O que mais preocupou os estrategistas ocidentais foram os aspectos
financeiros e militares da unificação africana. Num nível financeiro, os planos
para a constituição de um Banco Central Africano (que criaria uma moeda africana
única, o dinar, com lastro-ouro) ameaçariam gravemente a capacidade de EUA,
Grã-Bretanha e França para continuar a saquear o continente. Todo o comércio
africano feito mediante o dinar-ouro implicaria, em última instância, que os
países ocidentais teriam de pagar em ouro por recursos africanos que comprassem,
não mais, como até agora, em libras, francos ou dólares que, bem feitas as
contas, sempre podem ser impressos em papel podre.
As
duas outras instituições financeiras previstas pela União Africana – o Banco
Africano de Investimentos e o Fundo Monetário Africano – também comprometeriam
fatalmente a capacidade de instituições como o Fundo Monetário Internacional
para manipular as políticas econômicas dos países africanos mediante seu
monopólio das finanças. Como o economista Jean-Paul Pougala mostrou, o Fundo
Monetário Africano, com capital inicial previsto de $42 bilhões “rapidamente
suplantará as atividades africanas do Fundo Monetário Internacional, o qual, com
apenas $25 bilhões, conseguiu pôr de joelhos o continente inteiro e obrigou a
África a engolir um processo muito questionável de privatizações, forçando os
países africanos a converter-se em monopólios privados”.
Além
desses desenvolvimentos fiscais potencialmente ameaçadores, houve também
movimentos no front militar. A reunião de cúpula da União Africana em 2004
em Sirte,
Líbia, decidiu elaborar uma Carta de Defesa e Segurança Comum
Africana, que incluía um artigo que estipulava que “qualquer ataque contra um
país africano é considerado ataque contra o continente como um todo” – copiada,
de fato, da Carta da OTAN. Em seguida, em 2010, foi criada uma Força Reserva
Africana (FRA), com delegação para defender e fazer valer as definições da Carta
de Defesa. Bem evidentemente, se a OTAN tivesse de desmontar a unidade africana
pela força das armas, quanto mais depressa agisse, melhor para a OTAN.
Mas
a constituição da Força de Reserva Africana representou, além de uma ameaça,
também uma oportunidade. Embora houvesse, sem dúvida, a possibilidade de ela vir
a ser força genuína para a independência, para resistir ao colonialismo e para
defender a África contra a agressão imperialista, criava-se, simultaneamente, a
possibilidade de, adequadamente manobrada e sob a liderança adequada, aquela
mesma força converter-se em seu oposto – uma força para promover a subjugação
colonial, ligada numa cadeia de comando ocidental. As apostas eram – e são –
altíssimas.
Os
preparativos militares dos ocidentais na África
O
ocidente também já iniciara seus preparativos militares para a África. O
declínio econômico do ocidente, além da ascensão da China, indicava que o
ocidente já não poderia depender tão essencialmente da chantagem econômica e da
manipulação financeira para manter o continente fraco e subjugado. Vendo
claramente que isso implicava a necessidade crescente de ação militar para
manter a dominação, documento publicado em 2002 pela Iniciativa Grupo de
Política para o Petróleo Africano [orig. African Oil Policy Initiative
Group] recomendava que “um foco novo e vigoroso sobre a cooperação militar
dos EUA na África subsaariana inclua o projeto de uma estrutura de comando
militar subunificada que possa produzir dividendos significativos na proteção
dos investimentos dos EUA”. Essa estrutura veio à luz em 2008, sob o nome de
Comandos dos EUA na África, AFRICOM.
Contudo,
os custos – econômicos, militares e políticos – da intervenção direta no Iraque
e no Afeganistão (só o custo da guerra do Iraque já ultrapassa os 3 trilhões de
dólares) indicavam que o AFRICOM teria de depender basicamente de tropas locais,
para o serviço de guerrear e morrer. O AFRICOM teria de ser o corpo que
coordenaria (e coordenou) a subordinação de exércitos africanos presos a uma
cadeia ocidental de comando. Isso, em outras palavras, converteu exércitos
africanos em exércitos ocidentais “por procuração”.
Mapa das riquezas minerais do Sahel/Saara com o Mali ao centro |
O
maior obstáculo a esse plano era a própria União Africana, que, em 2008,
categoricamente rejeitou qualquer presença de militares dos EUA em solo
africano, o que forçou o AFRICOM a instalar seu quartel-general em Stuttgart,
Alemanha, humilhação para o presidente G. W. Bush, que já
anunciara, pessoalmente, sua intenção de implantar o AFRICOM em território africano.
O pior viria em 2009, quando o então líder líbio Muammar
Gaddafi – o mais empenhado inimigo das políticas imperialistas no continente –
foi eleito para presidir a União Africana. Sob o comando de Gaddafi, a Líbia já
se convertera em principal mantenedora e financiadora da União Africana. Agora,
o mesmo Gaddafi propunha processo rápido de integração africana, que incluía a
constituição de exército africano unificado, moeda única e passaporte único.
O
destino de Gaddafi já é de conhecimento público. Depois de montar a invasão da
Líbia a partir de um pacote de mentiras ainda maior do que o que servira de
pretexto para a invasão do Iraque, a OTAN destruiu a Líbia, reduziu o país à
condição de mais um estado africano falhado e facilitou a tortura e o
assassinato de Gaddafi. Assim se viu livre de seu principal opositor.
Naquele
momento, tudo levava a crer que a União Africana teria sido domada. Três de seus
membros – Nigéria, Gabão e África do Sul – votaram a favor da intervenção
militar na Líbia, no Conselho de Segurança da ONU; e o novo presidente, Jean
Ping, apressou-se a reconhecer o novo governo que a OTAN impôs na Líbia e pôs-se
a denegrir as realizações de Gaddafi. Fez mais: proibiu a assembleia da União
Africana de fazer um minuto de silêncio, depois do assassinato de Gaddafi.
Sahel/Saara - Região objeto da cobiça dos EUA-OTAN |
Mas
esse quadro não durou. Os sul-africanos foram os primeiros a arrepender-se do
apoio à intervenção; nos meses seguintes, o presidente Zuma e o ex-presidente
Thabo Mbeki fizeram sérias críticas à OTAN. Zuma disse – com razão – que a OTAN
agira ilegalmente ao impedir o cessar fogo e as negociações que a Resolução da
ONU exigia, já intermediados pela União Africana e com os quais Gaddafi já
concordara. Mbeki foi além: disse que o Conselho de Segurança da ONU, ao ignorar
as propostas da União Africana, estava tratando “os povos da África com absoluto
desprezo”, o que fez aumentar “a sanha das potências ocidentais para intervir em
nosso continente, inclusive com força armada, para proteger os próprios
interesses, sem considerar a posição dos próprios africanos”.
Experiente
diplomata sul-africano, do Departamento de Relações Internacionais do Ministério
de Relações Exteriores da África do Sul, disse que “muitos estados da Comunidade
Sul Africana de Desenvolvimento [orig. Southern African Development
Community, SADC], sobretudo África do Sul, Zimbábue, Angola, Tanzânia,
Namíbia e Zâmbia, que tiveram papel chave nas lutas de libertação sul-africanas,
não estavam satisfeitos com o modo como Ping conduziu a questão do bombardeio da
Líbia pelos jatos da OTAN”. Em julho de 2012, Ping foi forçado a deixar a
presidência da União Africana e foi substituído – com apoio de 37 estados
africanos – por Nkosazana Dlamini-Zuma, ex-ministra de Relações Exteriores da
África do Sul, braço direito de Mbeki e, bem claramente, militante do campo
oposto ao dos capitulacionistas de Ping. Mais uma vez, a União Africana estava
sob comando de forças comprometidas com genuína independência.
O
assassinato de Gaddafi, porém, não tirou de campo apenas um poderoso membro da
União Africana; removeu também o eixo em torno do qual girava todo o sistema de
segurança regional na região do Sahel-Sahara. Usando cuidadosa e complexa
mistura de força, projeto e desafio ideológico e negociação, a Líbia de Gaddafi
sempre foi a cabeça de um sistema de segurança transnacional que conseguira
impedir que milícias salafistas se implantassem na região – como reconheceu, em
2008, o embaixador Christopher Stevens, dos EUA:
Christopher Stevens |
O
governo da Líbia empreendeu operações agressivas para interromper o fluxo de
combatentes estrangeiros, inclusive com monitoramento cerrado dos portos e
aeroportos de entrada, e rechaçou o apelo ideológico do Islã radical (...). A
Líbia coopera com estados vizinhos no Saara e Sahel, para conter o fluxo de
combatentes extremistas e terroristas transnacionais. Muammar Gaddafi negociou
recentemente um muito divulgado acordo com líderes tribais tuaregues da Líbia,
Chade, Niger, Mali e Argélia, conseguindo que desistissem de suas aspirações
separatistas e das práticas de contrabando (de armas e de extremistas
transnacionais) em troca de assistência para o desenvolvimento dos seus países e
apoio financeiro (...) Nossa avaliação é que o fluxo de combatentes estrangeiros
da Líbia para o Iraque e o fluxo reverso de veteranos do Iraque para a Líbia
diminuiu por causa da cooperação entre a Líbia e outros estados
– disse Stevens.
Essa
“cooperação entre a Líbia e outros estados” refere-se à CEN-SAD (Community of
Sahel-Saharan States / Comunidade de Estados Sahel-Saarianos), organização
lançada por Gaddafi em 1998 visando ao livre comércio, livre movimentação de
pessoas e desenvolvimento regional de seus 23 estados-membros, mas com foco
principal na segurança mútua e na paz. Além de conter a influência das milícias
salafistas, a CEN-SAD desempenhou papel chave mediando conflitos entre Etiópia e
Eritreia e na região do rio Mano; e negociou solução duradoura e sustentável
para a rebelião no Chade. A CEN-SAD tinha sede em Trípoli e a Líbia, sem dúvida,
era a principal força do grupo. De fato, o apoio da CEN-SAD foi fator
determinante para a eleição de Gaddafi à presidência da União Africana em 2009.
A
própria eficácia desse sistema de segurança local foi um duplo golpe contra a
hegemonia do ocidente na África: não apenas aproximou a África de uma condição
de paz, na qual a prosperidade local tornava-se possível, como, também,
simultaneamente, esvaziava o pretexto chave para todas as intervenções militares
do ocidente no continente. Os EUA haviam criado uma sua “Parceria de
Contraterrorismo Trans-Saara” [orig. “Trans-Sahara Counter-Terrorism
Partnership” (TSCTP)], mas, como Mutassim Gaddafi (conselheiro de Segurança
Nacional da Líbia) explicou à ex-secretária de Estado Hillary Clinton em
Washington em 2009,
a “Comunidade de Estados Sahel-saarianos (CEN-SAD) e a
Força de Reserva tornam dispensável qualquer TSCTP”.
Enquanto
Gaddafi esteve no poder e comandou um efetivo e poderoso sistema de segurança
regional, as milícias salafistas no Norte da África não podiam ser usadas como
“terrível ameaça” para justificar invasões e ocupação pelo ocidente, para salvar
os nativos desamparados. Ao conseguir fazer o que o ocidente diz desejar (mas,
em todos os pontos, fracassa sempre) – neutralizar o “terrorismo islamista”– a
Líbia tirou dos imperialistas um pretexto chave para todas as guerras que
fizeram contra a África. Ao mesmo tempo, impediram que as milícias continuassem
a desempenhar outra função histórica que sempre tiveram, servindo ao ocidente
como força “alugada”, que agia por procuração, para desestabilizar estados
seculares independentes, como Mark Curtis documentou em seu excelente Secret
Affairs. O ocidente apoiou esquadrões da morte salafistas
em campanhas para desestabilizar a URSS e a Iugoslávia, com grande sucesso; e
planejava fazer o mesmo contra a Líbia e a Síria.
A
África depois de Gaddafi
Com
a OTAN trabalhando para fazer da Líbia estado falhado, esse sistema local foi
destroçado. As milícias salafistas não receberam só equipamento militar ultra
moderno, cortesia da OTAN; receberam também carta branca para saquear os
arsenais do governo líbio e um paraíso seguro a partir do qual organizar ataques
por toda a região. As fronteiras entraram em colapso, com a aparente conivência
do novo governo líbio e de seus patrocinadores na OTAN – como registra um
trágico relatório da empresa de segurança global Jamestown Foundation.
Segundo
esse relatório, “Al-Wigh era importante base estratégica do regime Gaddafi,
localizada em região próxima das fronteiras com Niger, Chade e Argélia. Depois
da queda de Gaddafi, a base passou a ser controlada por combatentes da tribo
Tubu, sob comando nominal do Exército Líbio, mas sob comando local de um
comandante tubu, Sharafeddine Barka Azaiy, que reclamou que “durante a
revolução, controlar essa base era assunto de máxima importância estratégica.
Conseguimos ocupar a base. Agora nos sentimos abandonados. Não temos equipamento
suficiente, nem viaturas nem armas para proteger a fronteira. Embora sejamos
parte do exército nacional, ninguém nos paga soldo”.
O
relatório conclui que “o Conselho de Governo Nacional Líbio (GNC) e o que havia
antes dele, Conselho Nacional de Transição (TNC), falharam na segurança de
importantes instalações militares no sul e permitiram que a segurança de vastas
porções de fronteira no sul fossem, de fato, “privatizadas” nas mãos de grupos
tribais, conhecidos há muito tempo pela prática, ali tradicional, de
contrabando. Isso, por sua vez, põe em risco a segurança da infraestrutura do
petróleo líbio e a segurança das regiões vizinhas. Com a venda e o transporte de
armas líbias já convertidos em mini-indústria na era pós-Gaddafi, as imensas
quantidades de dinheiro com que conta a Al-Qaeda no Maghreb Islâmico (AQIM)
conseguem abrir muitas portas, em região empobrecida e subdesenvolvida. Ainda
que a invasão francesa no norte do Mali consiga desalojar os militantes
islamistas, nem assim haverá o que impeça os mesmos grupos de estabelecer novas
bases nas áreas mal controladas do deserto selvagem no sul da Líbia. Enquanto
não houver estruturas de segurança controladas por autoridade central na Líbia,
o interior desse país continuará a ser ameaça de segurança para todas as demais
nações na região”.
Mali e fronteiras. O trecho hachurado em vermelho é a área tomada pelos salafistas |
A
vítima mais óbvia dessa desestabilização foi o Mali. Não há analista sério que
não saiba que a tomada do Mali pelos salafistas é consequência direta da ação da
OTAN na Líbia. Um dos resultados do avanço da desestabilização promovida pela
OTAN no Mali é que a Argélia – que perdeu 200 mil cidadãos numa guerra civil
contra os islamistas nos anos 1990s – está hoje cercada por milícias salafistas
pesadamente armadas em duas fronteiras: ao leste (fronteira com a Líbia) e ao
sul (fronteira com o Mali). Depois da destruição da Líbia e da derrubada de
Hosni Mubarak no Egito, a Argélia é hoje o único estado do norte da África ainda
governado pelo partido anticolonialista que conquistou a independência contra a
tirania das forças coloniais europeias.
Esse
postura de independência ainda está bem evidente na atitude da Argélia em
relação à África e à Europa. No front
africano, a Argélia é forte apoiadora da União Africana, contribuindo com
15% do orçamento da organização; e tem 16 bilhões de dólares empenhados na
constituição do Fundo Monetário Africano, o que faz dela o maior contribuinte do
FMA. E nas relações com a Europa, a Argélia tem-se recusado repetidamente a
fazer o papel de nação subordinada que a Europa espera dela. Argélia e Síria
foram os dois únicos países da Liga Árabe que votaram contra o bombardeio da
OTAN contra a Líbia e a Síria. E, como se sabe, a Argélia deu abrigo a membros
da família Gaddafi que fugiam de ser massacrados pela OTAN.
Mas,
do ponto de vista dos estrategistas europeus, muito mais preocupante que tudo
isso é, provavelmente, que a Argélia – com o Irã e a Venezuela – constituem o
que eles chamam de uma “[Organização dos Países Produtores de Petróleo] OPEC
linha dura”, empenhados em vender caro o acesso aos seus recursos nacionais.
Como se lia recentemente em furibundo artigo publicado no London Financial
Times, “o nacionalismo dos recursos” impera. Resultado disso, “as Grandes do
Petróleo padecem muitas dificuldades na Argélia; as empresas reclamam da
burocracia que as esmaga, dos controles fiscais duríssimos e do comportamento
abusivo da Sonatrach, a empresa estatal de energia, que participa de quase todos
os contratos de petróleo e gás”. Na sequência, o artigo observa que a Argélia
implementou “um controverso imposto monstro” em 2006, e cita um executivo de
petroleira ocidental em Argel, que disse que “as empresas [de petróleo] estão
fartas da Argélia”.
É
instrutivo observar que o mesmo jornal também acusou a Líbia de “nacionalismo
dos recursos” – ao que parece, o crime mais hediondo, na avaliação daqueles
leitores – apenas um ano antes da invasão da OTAN.
Evidentemente,
“nacionalismo dos recursos” significa precisamente que os recursos de uma nação
sejam usados, em primeiro lugar, para promover o desenvolvimento em benefício da
própria nação, não em benefício de empresas estrangeiras e, nesse sentido, a
Argélia bem merece a “acusação”. A Argélia exporta mais de cerca de $70 bilhões
em petróleo por ano, e muito desse dinheiro tem sido usado em investimentos
massivos em moradia e saúde pública, além de um financiamento recente de $23
bilhões, num programa de estímulo para pequenos comerciantes. De fato, esses
altos níveis de investimentos sociais são considerados por muitos como a
principal razão pela qual não se viram levantes da “Primavera Árabe” na Argélia,
em anos recentes.
A
mesma tendência de “nacionalismo dos recursos” também aparece anotada em recente
material distribuído por STRATFOR, empresa de inteligência global, que escreveu
que “a participação estrangeira na Argélia sofreu, em larga medida, por causa de
políticas protecionistas aplicadas pelo governo militar fortemente
nacionalista”. Seria evento particularmente preocupante, diz STRATFOR, em
momento em que a
Europa aproxima-se de situação em que se tornará muito mais
dependente do gás argelino, com as reservas no Mar do Norte em processo de
esgotamento. “Desenvolver a Argélia como grande exportador de gás natural é
imperativo econômico e estratégico para os países da União Europeia, em momento
em que a produção da commodity entra em declínio terminal na próxima
década. A Argélia já é importante fornecedor de energia para o continente, mas a
Europa precisará de acesso expandido àquele gás natural, para suprir o declínio
de suas reservas indígenas” – diz STRATFOR.
Os
planos das Grandes do Petróleo para a África
Prevê-se
que as reservas britânicas e holandesas de gás no Mar do Norte estarão esgotadas
no final dessa década; e que as da Noruega entrarão em acentuado declínio a
partir de 2015. Com a Europa temerosa de tornar-se superdependente do gás da
Rússia e da Ásia, o relatório anota que a Argélia – com reservas de gás natural
estimadas em 4,5 trilhões de metros cúbicos, e reservas de gás de xisto de 17
trilhões de metros cúbicos – tornar-se-á fornecedora essencial. Mas o maior
obstáculo para que a Europa controle esses recursos ainda é o governo da Argélia
– com suas “políticas protecionistas” e seu “nacionalismo dos recursos”.
Mapa legendado da Argélia elaborado pelo Repsol (petróleo & gás) |
Sem
dizê-lo abertamente, o relatório conclui sugerindo que uma Argélia
desestabilizada e convertida em “estado falido” seria sempre preferível a uma
Argélia sob governo “protecionista”. E sugere que “o envolvimento que se vê hoje
das majors de energia da União Europeia em países de alto risco, como
Nigéria, Líbia, Iêmen e Iraque, indica saudável tolerância à instabilidade e a
problemas de segurança”.
Em
outras palavras: em tempos de segurança privada, o Big Oil já não carece
de estabilidade ou da proteção do estado para seus investimentos. Zonas de
desastre são toleráveis. Intoleráveis, só estados fortes e independentes.
Já
aparece, portanto, no radar dos interesses estratégicos da segurança energética
do ocidente, uma Argélia reduzida a estado falhado, exatamente como o Iraque, o
Afeganistão e a Líbia um dia apareceram no mesmo radar.
Com
isso em mente, é fácil ver como a política aparentemente contraditória de armar
milícias salafistas num primeiro momento (na Líbia) e imediatamente depois
passar a bombardeá-las (no Mali) faz, de fato, perfeito sentido. A missão
francesa de bombardeio visa, nas próprias palavras dos franceses, à “total
reconquista” do Mali. Na prática, implica empurrar os rebeldes gradualmente para
o norte do país. Quer dizer: diretamente para a Argélia.
Vê-se
afinal que a deliberada destruição do sistema de segurança que a Líbia
coordenava em toda a região do Sahel-Saara trouxe vastos benefícios para os que
contam com que a África permaneça presa no papel de fornecedora subdesenvolvida
de matéria prima barata. O processo já armou, treinou e assegurou território
para milícias que, em seguida, serão usadas na destruição da Argélia – o único
grande estado rico em recursos naturais do norte da África ainda empenhado numa
genuína unidade africana, com independência. A operação também persuadiu alguns
africanos de que – diferente da rejeição unânime contra o AFRICOM, há pouco
tempo – eles realmente precisam, hoje, de que o ocidente os “proteja” daquelas
milícias.
Como
a clássica venda de proteção à moda das máfias, o ocidente cuida de tornar sua
proteção “necessária”: arma e atiça ele mesmo as forças contra as quais,
adiante, as pessoas terão de ser protegidas.
Agora,
a França está ocupando o Mali; os EUA estão montando uma nova base de
drones no Niger; e o primeiro-ministro britânico David Cameron fala de
seu compromisso com uma nova “guerra ao terror” que se alastrou sobre seis
países e durará décadas.
Mas
nem tudo caminha bem, no front
imperialista. Longe disso, porque o ocidente, sem dúvida alguma, contava com não
ter de mobilizar seus próprios soldados. O objetivo inicial era sugar a Argélia
e colhê-la exatamente na mesma armadilha já usada com sucesso contra a União
Soviética nos anos 1980s – exemplo anterior de Grã-Bretanha e EUA, patrocinando
violenta insurgência sectária nas fronteiras do território inimigo, para atrair
o inimigo-alvo para guerra destrutiva de retaliação. A guerra da URSS no
Afeganistão, no final, não apenas fracassou: ela também, no processo, destruiu a
moral e a economia do país e foi fator chave por trás da autodestruição do
estado soviético em 1991.
Mas
a armadilha para pegar a Argélia não funcionou. A jogada de Clinton e François
Hollande, fazendo a cena do “policial bonzinho” e “policial durão” – uma
“pressionando para a ação” em Argel, em outubro; e as ameaças dos franceses,
dois meses depois – deu em nada.
Simultaneamente,
em vez de se manterem fiéis ao roteiro, os imprevisíveis salafistas, na função
de simulacros locais do ocidente, optaram por expandir sua base no norte do
Mali, não na direção da Argélia, como previsto, mas para o sul, rumo a Bamako,
ameaçando desestabilizar um regime aliado do ocidente, ali instalado, por golpe,
menos de um ano antes. Os franceses foram obrigados a intervir, para mandar os
salafistas de volta para o norte, de volta contra o estado que, desde o início,
deveria ter sido seu alvo real.
Até
aqui, essa invasão parece contar com certo nível de apoio entre os africanos que
temem os salafistas simulacros do Ocidente, ainda mais do que temem os próprios
soldados ocidentais. Mas, à medida que a ocupação se aprofunde, desconstruindo a
credibilidade dos salafistas e ultrapassando-os em número de soldados ocupantes,
ao mesmo tempo em que se for conhecendo a brutalidade dos ocupantes e de seus
aliados... então, veremos.
Veremos
quanto tempo durará tudo isso.
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