Do Sul 21
Rachel Duarte
Dos rincões miseráveis do Brasil emergiram as vozes de mais de uma
centena de mulheres que foram ouvidas por uma pesquisadora paulista
preocupada em compreender os impactos do programa Bolsa Família na vida
dos 5,4 milhões de beneficiários. Ainda alvo de críticas por vários
setores, o programa de transferência de renda é considerado pela
socióloga Walquíria Leão Rego como um começo de reparação social do
estado brasileiro para com os mais pobres. “Estas pessoas saíram da
miséria absoluta, os índices de mortalidade infantil ficaram mais
baixos e isto tem impacto fundamental para um país que se diz
minimamente democrático. Conviver com a miséria como o Brasil conviveu
por tantos séculos, mesmo depois do fim do regime militar, deveria ser
um processo que mexe com todos os brasileiros”, falou em entrevista aoSul21.
Professora do programa de pós-graduação em Sociologia da Unicamp,
Walquíria Leão Rego fez a pesquisa por conta própria, sem apoio
financeiro da Unicamp ou do governo federal. Financiou as viagens do
próprio bolso, agendando as excursões em seus períodos de férias. A seu
lado, em parte da pesquisa, esteve o filósofo italiano Alessandro
Pinzani, que leciona na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
“A qualidade de vida destas pessoas melhorou e elas não estão mais
adoecendo. Esta afirmação é algo constatada não só na minha pesquisa,
que não é quantitativa, mas pelo IPEA (Instituto de Pequisa Econômica e
Aplicada), IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ONU
(Organização das Nações Unidas), PNUD (Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento), todos constatam a mesma coisa”, afirma.
Concebida com a finalidade de averiguar se, como e em que medida a
nova renda e sua regularidade afetam a vida cotidiana das famílias e, em
particular, das mulheres, a pesquisa completa estará disponível no
livroVozes do Bolsa Família, a ser lançado pela Editora Unesp
no dia 11 de junho. “A remuneração proporciona uma liberdade pessoal.
Esta é uma das importantes funções do beneficio ser em dinheiro. É
diferente se fosse uma cesta básica, onde já é determinado o que a
pessoa irá fazer com o recurso e o que ela irá comer”, explica a
socióloga.
Na visão da professora, os ataques ao programa federal criado pelo
governo Lula são feitas por setores específicos da sociedade e com base
em conceitos preconceituosos. Ela não acredita em uso político do seu
livro. “Este recente episódio do boato que o programa iria acabar e que
levou centenas de pessoas aos bancos em poucas horas, mostra bem para os
críticos o tamanho da necessidade do Bolsa Família. Por isso, acho
pouco provável que alguém queira brincar com isso”, fala.
Sul21 – O Bolsa Família completa 10 anos em 2013, alcançando
perto de 5,4 milhões de pessoas e é reconhecido internacionalmente como o
maior programa de combate à pobreza. Qual é o impacto real deste
programa no desenvolvimento do país, porque ao mesmo tempo, ele segue
sendo alvo de críticas?
Walquíria Leão Rego – Criticado por quem? Temos que
nos perguntar a quem interessa falar mal deste programa. O principal
impacto é perceptível. Uma parte significativa da população da chamada
‘extrema pobreza’ deixou de estar nesta condição. Isto não é pouco. É
algo muito importante. Estas pessoas saíram da miséria absoluta, os
índices de mortalidade infantil ficaram mais baixos e isto tem impacto
fundamental para um país que se diz minimamente democrático. Conviver
com a miséria como o Brasil conviveu por tantos séculos, mesmo depois do
fim do regime militar isto fez parte do país por muitos anos, deveria
ser um processo que mexe com todos os brasileiros. A imprensa, a
academia e a sociedade em geral deveriam ser tocadas com isso. O impacto
é muito grande para as pessoas que passaram a ter um rendimento
regular, apesar de pequeno. É um dinheiro que eles podem contar todos os
meses. Eles aprendem a conviver com esse recurso e buscam querer viver
melhor. Este programa é o começo de uma reparação por parte do estado
brasileiro.
Sul21– Os usuários conseguem administrar a liberdade de ter uma fonte fixa de renda, o que para muitos deve ser algo inédito?
Walquíria Leão Rego - Administram muito bem. Este
argumento de que eles não saberiam administrar é preconceito com os
pobres. Quem está endividada é a classe média e os ricos, não os pobres.
Quando falo em pobres, me refiro aos cadastrados no Bolsa Família,
porque existem pobres que estão na categoria de pobres e não estão
vivendo na extrema pobreza. Eles administram muito bem os recursos e em
dez anos aprenderam a gerir as finanças como qualquer outra pessoa
aprende. A qualidade de vida destas pessoas melhorou e elas não estão
mais adoecendo. Esta afirmação é algo constatado não só na minha
pesquisa, que não é quantitativa, mas pelo IPEA (Instituto de Pequisa
Econômica e Aplicada), IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), ONU (Organização das Nações Unidas), PNUD (Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento), todos constatam a mesma coisa.
Isto deveria estar nas manchetes dos jornais do país. Demonstrar que
este programa, mesmo oferecendo um auxílio pequeno, está tornando as
pessoas cidadãos de fato. Este programa garante o direito mais
elementar: a vida.
Estudam no ensino público, fazem intercâmbio no exterior com auxílio
público e voltam para abrir um consultório na Avenida Paulista e cobrar
até R$ 1,5 mil por uma consulta. Isto é o horizonte típico da classe
média brasileira que faz medicina.
Sul21 – Dados oficiais revelam que 70% dos beneficiários
adultos são trabalhadores e os estudantes que participam do programa
possuem média de aprovação quase 5% maior que a média nacional. Além de
ter um índice menor de abandono dos estudos.
Walquiria Leão Rego – Isto acontece pela exigência
do vínculo das crianças na escola para receber o benefício, o que é
muito interessante, porque mostra o quanto estas crianças estavam
abandonadas pelo estado. Porém, também é necessário discutir a qualidade
da escola brasileira. A escola pública no Brasil precisa de muito
investimento ainda. As crianças que eu estudei vivem em cidades do
interior, algumas em zona rural e em periferias de grandes cidades.
(Recife, Vale do Jequitinhonha, etc ). O benefício também implica o
controle da saúde das crianças, mas ainda faltam médicos no Brasil nos
postos de saúde destas regiões. O governo federal estuda trazer para o
Brasil os médicos cubanos, espanhóis e portugueses, porque os nossos não
costumam ir para estes lugares. Isto acontece pela falta de compromisso
de certas pessoas com o seu país. Os paulistas, por exemplo, querem
fazer medicina na melhor universidade, que é USP (Universidade de São
Paulo) ou a Unicamp, para se formar em uma universidade pública. Estudam
no ensino público, fazem intercâmbio no exterior com auxílio público e
voltam para abrir um consultório na Avenida Paulista e cobrar até R$ 1,5
mil por uma consulta. Isto é o horizonte típico da classe média
brasileira que faz medicina. O compromisso com o povo eles não querem
saber. Não adianta oferecer o salário e o benefício que for para estas
pessoas porque elas não vão para as regiões de periferia e interior. As
crianças que são beneficiadas com o Bolsa Família são abandonadas como
cidadãos. O estado tenta resolver e a classe média vai para as ruas
fazer protesto contra os médicos estrangeiros.
Sul21 – Recentemente foi divulgado que 1,6 milhão de famílias
beneficiadas pelo Bolsa Família deixaram espontaneamente o programa.
Isto contraria a tese de que elas se tornam dependentes do programa?
Walquíria Leão Rego – Isto sempre foi uma tese
preconceituosa. Toda tese preconceituosa é desmentida em pouco tempo. O
preconceito é algo estreito. Isto foi desmentido porque este dado revela
que as pessoas querem melhorar de vida e, em algumas regiões não há
emprego. Aliás, não há nem o que vestir ou que comer. Quem irá oferecer
emprego para alguém que vive no sertão? Existe uma ignorância de algumas
pessoas sobre a realidade do seu próprio país. Não sabem a geografia do
seu país, que dirá a geografia econômica ou informações sociológicas.
Então, há muito preconceito e estereótipo por trás destas teses.
Sul21 – A senhora desenvolveu a pesquisa por conta própria,
sem apoio financeiro da Unicamp ou do governo federal. Financiou as
viagens do próprio bolso, agendando as excursões em seus períodos de
férias. Como alcançou a publicação do livro?
Walquíria Leão Rego – Consegui a publicação por meio
da editora Unesp (Universidade Estadual Paulista), que é uma editora
universitária. As outras editoras não se interessaram pelo meu material.
Percebi que teria que ser pela editora universitária e creio que este é
o papel mesmo. As editoras comerciais só estão interessadas em lucro.
As publicações são aquelas que irão vender. Mas, mesmo contando com
editora universitária não é fácil publicar estudos como este no Brasil.
A remuneração proporciona uma liberdade pessoal para as pessoas. Esta
é uma das importantes funções do beneficio ser em dinheiro.
Sul21 – Na sua pesquisa, que resultou no livro Vozes do Bolsa Família,
foram ouvidas 150 mulheres cadastradas no programa. O que é possível
dizer desta experiência de dar autonomia para as mulheres na gestão dos
recursos do Bolsa Família?
Walquiria Leão Rego –
Nós ouvimos muito mais pessoas, mas selecionamos uma amostragem de 150
mulheres para poder fazer um recorte. O livro é um experimento
interpretativo, sociológico e com contribuição para o meio intelectual.
Não terá grande reflexo na sociedade que, sinceramente, sei que não irá
se interessar em ler meu livro. O que é uma pena, porque pode ser uma
oportunidade de a sociedade experimentar conhecimento sobre seu próprio
país. O estudo desfaz uma série de estereótipos de que os pobres só
querem depender do estado e não querem trabalhar. Quem ler este livro
conseguirá aprender alguma coisa. É a minha esperança. Agora, o conceito
de autonomia é muito complexo. Tem implicações morais e políticas. O
que podemos dizer é que, o fato destas mulheres tão destituídas em suas
vidas e em estado de extrema pobreza, passarem a ser titulares de
cartões de recursos transferidos pelo estado traz certa autonomia. A
remuneração proporciona uma liberdade pessoal para as pessoas. Esta é
uma das importantes funções do beneficio ser em dinheiro. É diferente se
fosse uma cesta básica, onde já é determinado o que a pessoa irá fazer
com o recurso e o que ela irá comer. Fica imposto a quantidade de comida
e o tipo de alimento que ela irá comer. O dinheiro dá liberdade de
escolha, com isso elas aprendem a administrar os recursos. É um
exercício de cidadania muito maior do que as classes mais abastadas
pensam sobre a capacidade dos pobres.
Sul21 – Os homens ficaram ou
tendem a ficar para trás neste processo de desenvolvimento que foca nas
mulheres, a curto, médio ou longo prazo?
Walquíria Leão Rego – Homens também são pobres,
analfabetos ou com mínima escolaridade. O desemprego é geral, não está
relacionado com o gênero em determinadas regiões do país. Por séculos o
estado abandonou parte do país. É preciso ter esta consciência. Agora,
com o Bolsa Família, é que se começou a fazer alguma coisa pelo abandono
desta parte da população. O estado decretou há muitos anos a morte
civil destas pessoas. Elas não têm voz, a sociedade não as escuta. As
pessoas não querem pensar sobre isso ou mesmo esquecem de pensar porque
isso as incomoda muito e passa a crescer o preconceito. Os brasileiros
conviveram por várias gerações sabendo da existência da pobreza e
defendem que a culpa é dos próprios pobres que “não querem trabalhar” ou
“são vagabundos”. Se não tivesse existido um programa como o Bolsa
Família, pessoas seguiriam morrendo no Brasil, África e em tantas outras
nações onde ele foi criado.
No que se refere ao programa Bolsa Família, por exemplo, creio que
seja necessário aumentar o valor do benefício. É preciso ter mais
oportunidade de acesso ao ensino. A imprensa precisa ser melhor. É uma
imprensa muito controlada pelos seus patrões.
Sul21 – Como garantir o desenvolvimento do país após o desligamento do Bolsa Família?
Walquíria Leão Rego – Tem que se avançar muito mais
no país em termos de desenvolvimento. No que se refere ao programa Bolsa
Família, por exemplo, creio que seja necessário aumentar o valor do
benefício. É preciso ter mais oportunidade de acesso ao ensino. A
imprensa precisa ser melhor. É necessário que aconteça um conjunto de
políticas públicas, inclusive específicas para a realidade destas
regiões mais pobres. A educação é feita na escola, com a alfabetização,
mas outras formas de formação para estes cidadãos são necessárias. Uma
pessoa do sertão aprende a ler, mas segue vendo apenas televisão. Isto
não resolve muito. Nós temos que discutir o que é educar. Não é só
escola. É ter uma mídia democrática que produza conteúdos que elevem as
pessoas. A televisão hoje indignifica as pessoas. Estamos ainda
iniciando um novo processo de formação e transformação no Brasil. Eu
citei apenas alguns exemplos aqui, mas temos muito que avançar.
O que foi feito no último ano do governo Fernando Henrique Cardoso
não tinha a mesma dimensão distributiva e a amplitude do Bolsa Família
criado no governo Lula.
Sul21 – Por ser um dos poucos estudos acadêmicos sobre um
dos programas mais importantes para a gestão do PT, e do próprio PSDB,
que alega a paternidade do embrião do programa, a senhora imagina que
seu livro terá uso político?
Walquíria Leão Rego –
Não temo. Este recente episódio do boato que o programa iria acabar e
que levou centenas de pessoas aos bancos em poucas horas, mostra bem
para os críticos o tamanho da necessidade do Bolsa Família. Eu creio que
essa reação das pessoas mostrou a importância que o programa tem na
vida delas. Isso mostra o significado dessa bolsa para a população. Por
isso, acho pouco provável que alguém queira brincar com isso. Além do
que, o programa de fato tomou a dimensão que tomou e se tornou o maior
programa do mundo não foi com o PSDB. O programa deles (PSDB) era outra
coisa. O que foi feito no último ano do governo Fernando Henrique
Cardoso não tinha a mesma dimensão distributiva e a amplitude do Bolsa
Família criado no governo Lula. A transformação social do país por meio
deste programa começou, sem dúvida, no governo Lula e agora tem
continuidade com o governo Dilma, isso não tem como negar. Se um
jornalista quiser fazer investigação sobre isso, é só perguntar para as
pessoas nas ruas do Brasil. Isso é um dado de realidade, não tem como
mentir ou falsificar a história.
Sul21 – A senhora acredita que a imprensa tem interesse em dar voz aos críticos deste programa de forma sistemática?
Walquíria Leão Rego – De fato, isto é algo
recorrente. A desqualificação do governo, das pessoas, do programa, e ao
mesmo tempo a não-informação sobre o êxito desta iniciativa. Isso é o
que mais me assusta, como eles (a mídia) se sentem no direito de não
informar o país sobre o que está acontecendo no país? Você não vê isso
em outros lugares do mundo. É uma imprensa muito controlada pelos seus
patrões, talvez uma das mais controladas do mundo.
Sul21 – A senhora vê com esperança o avanço da democratização da mídia no país?
Walquíria Leão Rego - A própria imprensa hegemônica
não quer discutir a democratização, e colocou na cabeça de seus
jornalistas — e de alguns intelectuais que ela já produziu — que eles
devem escrever que discutir e regulamentar a imprensa é abdicar da
liberdade de expressão. Então eles usam essa questão para não discutir
que quem não pratica essa liberdade de expressão são eles. Eles recusam o
debate e usurpam o direito democrático à informação. As pessoas, de
modo geral, não sabem o que está acontecendo. Alguma vez a grande
imprensa fez alguma matéria séria sobre o Bolsa Família? Nunca. Pelo
contrário, ela difama, mente e distorce. Isso não é jornalismo.
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