domingo, 28 de julho de 2013

Entrevista com David Harvey: E a História não acabou 28/07/2013

Esquerda.Net

O geógrafo britânico David Harvey fala sobre a volta do interesse em Marx, analisa a atual situação económica da Europa e explica como a atual ideologia consumista norteia a ordenação das cidades. Por Glauco Faria e Thiago Balbi da Revista Fórum.
David Harvey, geógrafo e teórico social, professor de antropologia no Graduate Center da City University de Nova Iorque - Foto de Yumi Kajiki
Fórum – O que o senhor acha desse ressurgimento do interesse em Marx, tanto em estudos académicos quanto como inspiração no meio político?
David Harvey – Na verdade, a história de se ler Marx surge quando tudo está mal e ninguém sabe bem o por quê, daí as pessoas retornam e dizem: “Bem, Marx tinha algo a dizer sobre isso”. Acho que, historicamente, é assim. E há outros eventos que afastaram as pessoas da leitura de Marx, por exemplo, o fim da Guerra Fria e o colapso dos Estados comunistas, que levaram muitas pessoas a concluir que não havia uma boa razão para ler Marx. Foi um período dos anos 1990, quando alguns diziam: “Ganhámos tudo… É o fim da História…”
E a História, de repente, voltou. É um grande tempo, em que as pessoas começam a olhar ao seu redor e entender que há alguma razão para tentar analisar isso usando as ideias de Marx, para entender a crise.
Fórum – Poderíamos estabelecer uma relação entre a possibilidade de explicar a crise económica atual e a análise feita por Marx em O Capital?
Harvey – Acho que você poderia, na verdade, ler O Capital e falar sobre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos nos anos 1970. Era difícil ver a conexão naquela altura por causa do Estado de Bem-Estar Social, o poder estatal parecia estar a crescer, o capital estava de certa forma sob controle por forças políticas. Então, quando comecei a dar aulas, nos anos 1970, o assunto que estava em pauta era o imperialismo, e Marx não fala tanto assim sobre imperialismo, era difícil fazer dele um autor relevante nessa situação.
Mas quando se tem 30, 40 anos de neoliberalismo destruindo o Estado de Bem-Estar Social, mudando os processos de trabalho para um estágio anterior e voltando ao que eram no século XIX, as pessoas leem Marx, especialmente o Volume 1 de O Capital, sobre as condições do trabalho, e dizem: “Nossa, é o que está a acontecer na China, nas zonas de empresas maquiladoras”. Fica muito mais fácil conectar o argumento, principalmente do volume 1 de O Capital, com o que está a acontecer agora, porque toda a história do neoliberalismo tem sido recriar aquele mundo do século XIX, com a visão de forças de exploração, a desigualdade económica e, claro, a destruição do meio ambiente e tudo relacionado a isso. Como professor, é mais fácil para eu poder dizer: “Leiam Marx, e agora vamos pegar alguns trechos do New York Times da última semana e ver qual é a diferença”. As pessoas dizem: “Uau, o que está a acontecer?”
Fórum – No mesmo contexto da política económica, outro pensador, Keynes, foi de alguma forma resgatado para explicar algumas soluções financeiras para a crise. Hoje, na sua visão, quem desperta mais interesse para explicar o atual cenário, Keynes ou Marx?
Harvey – Acho que Marx é muito mais interessante. Desde que você leia tudo de Marx, quando você lê o volume 2, Keynes lhe vem à mente, o que não acontece quando lê o volume 1. Quem vem à mente quando se lê o volume 1 é Friedman ou Hayek. De certa forma, eu diria que os mecanismos centrais do desenvolvimento económico no período de 1945 a 1975 estão no volume 2, o que suscita Keynes e a questão da gestão . Desde 1975, há uma mudança de perspetiva, e voltamos às formulações do volume 1, particularmente no que diz respeito à gestão da procura/oferta de trabalho, que evolui para as formas mal pagas. O que Marx faz, e há uma fala muito interessante nos Grundrisse [três manuscritos económicos de 1857-1858] que é “para entender O Capital, você tem de entendê-lo como uma contribuição contraditória, com diferenças entre o volume 1 e o volume 2”. Ele diz que é preciso ver que isso é uma interação contínua, na qual a rota da crise, nos anos 1970, é a mesma que acontece hoje.
Diria que as coisas ficam mais ricas a partir da leitura de Marx, mas é preciso ler o volume 1 e o 2. E o volume 2 é um livro muito chato, difícil, mas se você quer compreender Marx tem de entender como essa parte se relaciona…
Fórum – Países como o Brasil e alguns outros se inspiraram um pouco ou muito em Keynes para definir as suas políticas anticíclicas. Mas existe hoje algum país que esteja a inspirar-se em Marx para formular as suas políticas económicas?
Harvey – Não, não vejo nenhum país hoje usando Marx como modelo. Na América Latina afora, houve uma rejeição geral ao neoliberalismo, então, há algumas experiências como a da Venezuela, do Equador, da Bolívia e, em algum nível, um movimento keynesiano no Brasil e na Argentina… Parece claro para mim que a América Latina está pronta para ir um pouco mais longe na direção de Marx, mas acho que isso deixa as pessoas bem nervosas, até mesmo [Hugo] Chávez, acho que ele não atacou realmente a questão das classes… Mas, você sabe, ele fez muitas coisas…
Enfim, não vejo nenhum país a fazer isso. Vejo experiências, por exemplo, como a de um estado indiano, Kerala, que é muito interessante, pois é plural, e ali há um dos melhores índices de saúde, de alfabetização, demonstrando o que um país pobre pode fazer quando tem um governo comunista que decide assumir os direitos das pessoas pobres, direitos educacionais e fazer alguma coisa que é radicalmente diferente.
Há lugares no mundo que experimentam, onde há coisas boas a acontecer, solidariedade e economias crescendo, grupos ambientalistas, alimentados em geral pelo anticapitalismo. Vejo muito disso pelo mundo, muitos anticapitalistas que não necessariamente leem Marx. É claro que há uma inclinação a adotá-lo, porque ele é associado a uma posição político-partidária, de centralismo democrático, estalinismo, mas na economia faz-se uma leitura diferente de Marx.
Fórum – Há alguns movimentos interessantes e distintos nos últimos anos, como o Occupy Wall Street; os Indignados, na Espanha; o Beppe Grillo na Itália. Hoje, os partidos não contemplam as possibilidades de transformação política e social? Os partidos estão sendo muito lentos…
Harvey – …para lidar com a raiva que existe nas ruas. Os partidos políticos são dominados pelo FMI, pelo Tesouro dos EUA, Bancos Centrais e por aí vai. Parecem não ter ideia sobre como aproveitar o descontentamento e usá-lo politicamente, mas acho também que há alguns problemas na natureza desse descontentamento, porque muito disso é um protesto contra algo, mas não se tem uma visão de como um alternativa real se mostraria na prática.
Claro, há exceções: por exemplo, esse novo partido que quase tomou o poder na Grécia esteve muito perto de se associar aos protestos da Praça Sintagma, do movimento dos Indignados. E acho que há sinais de políticos tendo que se mexer um pouco mais, se aproximar. Outros movimentos já se enfraqueceram, não são mais tão ativos, como aconteceu recentemente no Chipre. Acho que será muito interessante ver o que sairá dali.
É possível ver a mesma coisa pela América Latina afora, por exemplo, a tensão entre [Evo] Morales, na Bolívia, e os indígenas, uma tensão que apareceu com os indígenas cobrando: “Você não faz o que te demos o poder para fazer”, e ele: “Tenho de lidar com forças internacionais, como posso?” Acho que essa é uma dificuldade real, a política a ter de lidar com esse tipo de equilíbrio de forças.
Fórum – O senhor mencionou a situação no Chipre, como vê o futuro da zona do euro, nesse contexto?
Harvey – Teoricamente, penso o Estado como tendo dois poderes primários: o primeiro é o monopólio sobre os meios de “violência legítima”; o segundo é o monopólio da moeda. O que aconteceu com o euro foi que os Estados abriram mão de boa parte de seu poder, permitindo que esse poder fosse realocado em Bruxelas [sede do Banco Central Europeu], essencialmente dominada por países como a Alemanha e, em certo nível, a França. Então, se não tivessem aderido ao euro, não estariam nessa situação.
O governo não pode definir o valor da sua própria moeda, o padrão económico/financeiro está na mão de outro [território], em outra moeda. A Grécia foi isso: “Ok, haverá inflação… vão achar um jeito… Ah, mas eles não podem fazer isso”. Então, para o inferno com o padrão da inflação, o que os alemães querem, eles não podem inflar as suas dívidas, porque a maneira de se livrar da dívida é a inflação, pagar em dólar um valor que seria menor, que não corresponde à realidade.
Então, acho que a zona do euro está numa confusão, e não consigo vê-la a permanecer junta, a não ser que defina uma estrutura federativa, como a que existe nos Estados Unidos.
Fórum – Mas parece impossível, não é?
Harvey – Bem, vamos falar sobre isso. Em qualquer caso, a teoria que está a guiar a política na União Europeia é completamente ridícula. Seria muito melhor se colocassem um pouco de keynesianismo na situação, mas não estão preparados para isso, então, estamos a caminhar para a estagnação e também para um desenvolvimento geográfico desigual, com a Alemanha indo extremamente bem e outros países, como Itália e Espanha, não tão bem assim.
Alguns caminharam para o desastre, e não vejo dirigentes políticos a tomar decisões sensíveis sobre o que deveria ser feito, e não há nenhuma revolução em movimento que vá forçar grandes mudanças reais.
Fórum – Sobre a questão urbana: vemos aqui no Brasil, na nossa história recente, que as nossas cidades estão estruturadas de acordo com o capital privado. E as forças públicas apenas parecem agir para tornar mais fácil que o mercado imobiliário predomine, com um modelo urbano e arquitetónico cada vez mais propício à segregação, com menos espaços públicos. É fácil ver isso em São Paulo. O senhor esteve aqui no Brasil antes, e em São Paulo. Como geógrafo, antropólogo e, ainda, como estrangeiro, o que o senhor pode dizer sobre São Paulo e as cidades brasileiras?
Harvey – Bem, eu voltaria à página 1 de O Capital e diria: “Vamos olhar para o valor de uso e o valor de troca” e então perguntaria: “O que é o valor de uso de casas, condomínios e muitos dos prédios ao nosso redor e qual é o valor de troca nas vias de acesso?”. Você está buscando criar um valor de troca ou tentando garantir que todos tenham acesso à moradia? Bem, crescentemente – de novo, isso eu acho que é do século XIX, e digo globalmente agora, não só sobre o Brasil – o valor de uso se tornou cada vez mais insignificante, e a busca pelo valor de troca se tornou cada vez mais significativo.
Acho que se tornou mais importante a partir desse ponto de inflexão da situação dos trabalhadores, porque alguns conseguiram fazer economia para comprar as suas casas. Então, ao longo dos últimos 30 a 40 anos, as casas tornaram-se objeto de especulação financeira. O que se vê é uma evolução do que houve nos últimos 150 anos de construção das cidades, que têm sido erguidas para maximizar valor. E o que vemos nos EUA foi que o sistema quebrou, e algo entre 4 a 6 milhões de pessoas perderam os seus valores de uso. Agora, politicamente, pergunto: Em que tipo de sociedade você preferiria viver: uma sociedade que está a concentrar-se na produção de valores de uso para todas as pessoas ou uma sociedade guiada pelo valor de troca, maximizando o consumismo, já que temos de conceber a vida com um automóvel para viver na cidade? Manhatan está dominada hoje por gente muito rica, e há muita gente vivendo fora, na periferia, a quilómetros de distância, e que levam três horas para chegar ao seu trabalho de manhã e três horas para voltar à noite. Gostaria de ver as pessoas começando a pensar sobre formas de “fazer” cidades baseadas em oferecer coisas úteis, uma reforma dos estilos de vida, do que seria democrático para todos.
E, aqui em São Paulo, acho que a primeira vez que vim aqui eram os anos 1970, e toda vez que venho aqui vejo mais e mais vias rápidas, mais trânsito, demora mais para se chegar ao aeroporto do que na vez anterior e você se questiona: “Uau, por que alguém gostaria de viver assim?”.
Fórum – Sobre O Enigma do Capital, mais especificamente sobre as sete esferas do capital, o senhor acha que estas esferas podem criar resistência dentro do capitalismo? Por exemplo, movimentos como o Occupy ou a questão da consciência ecológica pode realmente mudar ao menos algumas coisas no capitalismo?
Harvey – Acho que a mudança política normalmente começa com pequenas coisas. Atualmente, há um trabalho interessante de pessoas tentando fazer os outros entenderem para que tipo de vida futura podemos estar a caminhar, que tipo de futuro económico e político podemos ter.
Por exemplo, está claro que um grande segmento da classe trabalhadora tem sido afastado por razões tecnológicas. Está muito claro que esses fatores tecnológicos vão tornar-se muito mais fortes, que hoje são feitas tarefas mecânicas, por meio da automação, mas logo mais isso chegará às tarefas intelectuais também. Estamos a falar até de diagnósticos médicos não sendo feitos por médicos, mas por máquinas automáticas, que podem ser muito precisas. E, claro, os médicos têm resistência a essa ideia, mas acho que o que isso significa é que muitos trabalhos vão desaparecer.
Olhando para a interação entre a esfera tecnológica e as relações sociais, podemos fazer perguntas como: “Se é para esse rumo que a tecnologia está indo, o que isso significa para as relações sociais, o que isso significa para a vida quotidiana?”. E, de várias maneiras, pode-se verificar nisso aspetos negativos, como as pessoas que ficarão desempregadas e não terão nada para fazer ou, quem sabe, pode ser um momento de criatividade, no qual as pessoas terão muito mais tempo livre e começarão a usá-lo de formas construtivas.
Esse é o tipo de coisa que, olhando para as esferas, você pode começar a ver algumas possibilidades. Havia uma pequena nota no New York Times outro dia, dizendo que um cara bem rico havia efetivamente se livrado de todas as coisas que tinha para viver uma vida bem mais simples, numa casa bem pequena. Uma das coisas que ele pontuava era: “O americano médio tem menos de mil pés para morar nos anos 1950, mas agora o americano médio tem 2,5 mil pés de espaço de moradia”. E então dizia: “Eu voltei para um espaço menor, me livrei da maior parte dos gadgets, que nunca funcionavam direito mesmo, e agora só tenho algumas coisas; tenho uma ótima vida social.” E ele descreveu uma existência muito feliz, de viver com muito pouco. Não com nada, mas com muito pouco.
Se muitas pessoas tivessem essa ideia, começaríamos a ver cidades bem diferentes e não desperdiçaríamos tantos recursos na construção de grandes casas em condomínios particulares afastados, com milhares de pés de construção, hectares de terras desperdiçadas com coisas descartáveis. As conceções sobre as coisas precisam mudar, assim como as relações sociais. Mas é claro que estamos a lutar contra uma indústria do marketing e um tipo de ideologia consumista que está a ser promovida.
Fórum – O senhor fala no seu livro, Condição pós-moderna, sobre a compressão da experiência tempo e espaço. Que futuro vê para a vida urbana nesse contexto, em que as experiências são mais virtuais e os espaços urbanos estão a ficar mais restritos, mais privados?
Harvey – Quando falo sobre essa compressão de espaço e tempo, na verdade estou a falar sobre como o capital está a operar. Isso não necessariamente se aplica para as pessoas que estão a viver as suas vidas numa comunidade em particular ou coisa assim, mas, claro, para as pessoas que têm de lidar com o que está a acontecer em relação ao movimento dos lucros, pois isso depende do que está a acontecer em Hong Kong, outros lugares, do que está a acontecer com o fluxo de capitais, por que estamos a ter uma desindustrialização de muitas cidades ao redor do mundo, porque a indústria vai daqui para ali, esse tipo de questões.
Mas acho que, paralelamente a isso, vem essa crescente privatização, que leva de volta ao projeto neoliberal, o que significa dizer que você não tem nenhum direito. Você é responsável por você mesmo, responsável pelos seus próprios cuidados médicos, a sua educação, a sua moradia, e não pode esperar o Estado cuidar de você. Existe essa noção de responsabilidade pessoal, que é algo que se tornou global.
Mesmo que você tenha passado toda a sua vida numa determinada comunidade em São Paulo, vai sentir os efeitos disso ao seu redor. E, novamente, as conceções mentais do mundo começam a confrontar o regime de propriedade privada, que está conectado a um Estado que não cuida do bem-estar dos cidadãos. Tudo o que faz é apoiar a propriedade privada, a agenda da propriedade privada e a agenda de classe da classe dominante.
Entrevista conduzida por Glauco Faria e Thiago Balbida Revista Fórum.

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