Aos 79 anos, o sociólogo suíço Jean Ziegler viajou o mundo inteiro e conheceu de perto a vida de quem sofre de fome. Professor da Universidade de Genebra e da Sorbone, Ziegler foi relator para o direito à alimentação das Nações Unidas entre 2000 e 2008 e membro do Comitê Consultivo do Conselho de Direitos Humanos da ONU entre 2008 e 2012.
Em entrevista ao jornal O Globo, o autor de "Destruição em massa: geopolítica da fome" (Cortez) argumenta que se a produção mundial de alimentos é suficiente para alimentar todo o mundo quem morre de fome é, portanto, assassinado. Sobre o Bolsa Família, acredita que o programa cumpriu o seu papel, mas agora é preciso investir em reformas e na agricultura familiar.
O Globo: No seu livro, o senhor afirma que há três etapas no "tratamento ideológico da fome" ao longo da História. Quais são elas?
Jean Ziegle: A primeira etapa foi dominada pelo teorema de Malthus, em que a fome é uma necessidade, trata-se de uma lei de Deus. Se não houver eliminação periódica de populações, uma seleção natural, todo planeta sofreria com a superpopulação. A natureza é responsável pela fome.
Esta teoria dura até a Segunda Guerra Mundial, porque servia magnificamente às classes dirigentes dos impérios coloniais britânicos e franceses, que produziam massacres nas colônias com a exploração do trabalho. Depois vem o nazismo e a Segunda Guerra.
Hitler usou a fome na Europa para seus projetos criminosos de reduzir matematicamente a parte eslava da população mundial e eliminar os judeus. Há uma ruptura epistemológica porque pela primeira vez os europeus sofrem com uma fome organizada e podem compreender que ela não é algo da natureza, mas um projeto criminoso do homem. Em 1946, é publicado "Geopolítica da fome", de Josué de Castro.
Este livro foi uma revelação para os europeus. O título indica que a fome é de origem política, e não da natureza. Castro, um gênio, foi o primeiro presidente da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e agricultura) e é esquecido no Brasil. Ele deveria ter um monumento em cada cidade do país, porque é um dos maiores pensadores do século XX.
E qual o tratamento que a questão da fome recebe hoje?
Hoje não existe falta de alimentos, o que existe é falta de acesso. As cifras são as seguintes: a cada 5 segundos, uma criança de menos de 10 anos morre de fome. No mundo, 56 mil pessoas morrem de fome por dia. E 1 bilhão de pessoas são permanentemente subalimentadas. O relatório da FAO mostra que o número de vítimas cresce, mas que a agricultura mundial poderia alimentar normalmente, com uma dieta de 2,2 mil calorias por dia, 12 bilhões de pessoas. Então, uma criança que morre de fome hoje é assassinada.
Fome não é mais morte natural. É massacre criminoso, organizado. O número de mortes no mundo, por ano, corresponde a 1% da população do planeta. Isso significa que no ano passado 70 milhões de pessoas morreram. Desses 70 milhões, 18,2 milhões morreram de fome ou de suas consequências imediatas. A fome é de longe a causa de mortalidade mais importante e o mundo transborda de riquezas!
Se a produção de alimentos é mais do que suficiente para alimentar adequadamente a população mundial, por que tantas pessoas ainda morrem de fome?
São vários os mecanismos que matam. A primeira explicação é a especulação nas bolsas de commodities com alimentos como trigo, arroz e milho, que correspondem a 75% do consumo mundial de alimentos.
Após a crise financeira iniciada em 2008, com a quebra dos mercados de ações, os grandes bancos e os hedge funds (fundos de investimento de perfil muito agressivo) migraram para as bolsas de commodities, especialmente para as matérias-primas agrícolas. Aqui só é possível ganhar, porque todos somos obrigados a comprar alimentos.
Essa especulação, que infelizmente é legal, produz lucros astronômicos para os fundos e mortes nas favelas. Nos últimos dois anos, o preço do milho no mercado mundial aumentou 63%. A tonelada de trigo dobrou. E a tonelada de arroz das Filipinas subiu de U$ 110 para U$ 1,2 mil. Isso gera um lucro tremendo para derivativos oferecidos pelos bancos. Ao mesmo tempo, há 1,2 bilhão de pessoas no mundo que vivem em pobreza extrema, segundo o Banco Mundial.
Elas devem comprar comida com menos de U$ 1 por dia. Quando os preços explodem, os mais pobres não conseguem comprar os alimentos. No início do ano, estive numa favela em Lima, no Peru. Fiquei um dia no depósito onde se vendia arroz. Ninguém comprava um quilo de arroz.
Todos compravam um copo de arroz, era o máximo que podiam pagar e essa seria a refeição das crianças para o dia. Esses especuladores de alimentos devem ser colocados diante de um tribunal internacional por crime contra a Humanidade. São diretamente responsáveis pela morte de milhares de pessoas.
No livro, o senhor critica duramente a concentração do setor de alimentos em um pequeno grupo de multinacionais. Por que isso é um problema?
O setor de alimentos é o mais concentrado e cartelizado da economia mundial, mais até do que o petróleo. Há 10 grupos multinacionais que controlam 85% dos alimentos comercializados no mundo. Isso significa que eles têm o controle do transporte, dos silos, dos depósitos.
Têm também a definição do preço, porque dominam o mercado. Esses dez têm um poder sobre a Humanidade que ninguém no passado teve. Nenhum rei, imperador ou Papa. E escapam a todo o controle social. Eles decidem a cada dia, com a definição dos preços, quem vai comer e viver e quem vai ter fome e morrer. Os Estados não podem fazer nada, as Nações Unidas e organizações interestatais são impotentes. É um problema estrutural do neoliberalismo.
O neoliberalismo puxa a liberalização total de todos os circuitos de mercados, capitais, serviços, patentes, a privatização de todos os setores públicos, o desmantelamento do poder normativo do Estado. As multinacionais têm nas mãos um enorme poder político e financeiro e escapam a todo controle social. Do outro lado, há uma maioria que sofre fome, epidemias, ausência de direitos fundamentais.
Você poderia detalhar o dumping agrícola e as suas consequências?
Nos mercados de Dakar, no Senegal, ou Bamako, no Mali, você compra frutas, frangos e verduras importados pela metade ou um terço do preço do produto africano equivalente. O produto europeu é mais barato do que o africano por causa dos fortes subsídios e da falta de recursos da agricultura africana.
A hipocrisia dos comissários da União Europeia em Bruxelas é abissal. Enquanto a fome se espalha pela África, que tem 35,8% da população permanentemente subalimentada, os africanos que tentam fugir da fome em direção à Europa são deixados à deriva no mar.
A eleição do (brasileiro Roberto) Azevedo para a OMC (Organização Mundial do Comércio) é muito importante, porque pela primeira vez o diretor da instituição vem dos países que lutam contra o dumping agrícola, que querem a eliminação total dos subsídios agrícolas.
O senhor é um crítico dos biocombustíveis. Por quê?
O maior produtor mundial de biocombustíveis são os Estados Unidos, o segundo é o Brasil. Os EUA queimaram ano passado 138 milhões de toneladas de milho, o equivalente a 15% da safra mundial e 42% da safra americana, além de centenas de toneladas de trigo para fazer bioetanol e biodiesel.
O programa foi iniciado por Bush e continuou com Obama, com subsídios de 6 bilhões de dólares por ano. O presidente Obama tem dois argumentos válidos. O primeiro é o aquecimento global, e por isso devem substituir a energia fóssil por energia de origem vegetal.
O segundo argumento é que os EUA são de longe o produtor industrial mais importante do mundo, detêm 25% de toda produção. A matéria-prima dessa máquina impressionante é o petróleo. Eles utilizam 20 milhões de barris por dia, mas produzem internamente apenas 8 milhões.
Então importam a maior parte de lugares muito perigosos, como o delta do Níger, a Ásia Central e o Oriente Médio. Eu entendo os argumentos de um presidente americano, mas queimar centenas de milhões de alimentos para fazer bioetanol e biodiesel é um crime.
Como o senhor avalia a situação brasileira em relação aos biocombustíveis?
O Brasil é diferente, porque não queima alimentos. Produz a partir da cana-de-açúcar. Mas a produção de bioetanol tem uma consequência terrível. O oceano da cana desloca a fronteira agrícola do Brasil em direção ao cerrado e à Amazônia.
Em São Paulo, onde hoje há cana, já houve agricultura de subsistência e depois o gado, que foram sendo empurrados para Mato Grosso. Só uma pequena parte da produção de cana-de-açúcar é mecanizada, o resto é cortado à mão. A cana, historicamente, foi uma maldição para os escravos e é uma maldição para os trabalhadores hoje.
O Bolsa Família, principal programa do governo brasileiro de combate à fome, faz dez anos. Qual a sua avaliação e qual deve ser o próximo passo do Estado?
O Brasil tem hoje 13 milhões de subalimentados graves permanentes, o que é muito para uma grande potência. É verdade que em 20 anos o país fez progressos muito impressionantes, o número de vítimas de fome grave baixou de 23 milhões para 13 milhões. E se você toma a proporção da população, a diminuição é de 53%. Mas está estável nesses 13 milhões. Isso não pode ser resolvido pelo Bolsa Família.
O programa é uma criação formidável, um exemplo para o mundo. Porque, como disse Josué de Castro, quem tem fome, tem pressa. No entanto, o Bolsa Família tem um limite objetivo. Para resolver o problema destes 13 milhões, que já foram testemunhas de um progresso formidável feito dentro de um regime democrático, só com reformas estruturais, como a reforma agrária. É preciso dar também uma ajuda massiva à agricultura familiar, que é muito mais produtiva que a multinacional.
Ela é mais vantajosa porque não cria desemprego, utiliza conhecimentos tradicionais, há mais proteção da biodiversidade do solo porque usa menos pesticidas. Todas as pesquisas, não somente no Brasil, apontam que a agricultura familiar é a solução para a fome. Esses 13 milhões não vão desaparecer.
Fonte: O Globo
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