CUBANO NÃO VÊ RESISTÊNCIA DE MÉDICOS BRASILEIROS
Há 50 dias atendendo em Navegantes (SC), Porfírio Duarte ainda não sentiu a oposição dos colegas ao Mais Médicos tão alardeada por conselhos de Medicina e parte da mídia; para ele, os 40% do salário que vão para o governo cubano servem para o Estado investir em prioridades (saúde e educação); o cubano ensina que a função de um médico numa comunidade carente se assemelha a um apostolado: "É como um pastor. Tem coisas que só com o médico se fala, que só ele entende o que está sendo contado. Somos vistos como deuses. Estamos aqui somente para ajudar as pessoas”
23 DE DEZEMBRO DE 2013 ÀS 14:27
247 - O médico cubano Porfírio Duarte, que há cerca de 50 dias presta atendimento à população pobre de Navegantes (SC), a 114 quilômetros de Florianópolis, ainda não viu a resistência de colegas brasileiros tão alardeada pelos conselhos de Medicina, pelos opositores e por parte da imprensa em relação ao programa Mais Médicos do Ministério da Saúde. Separado, deixou em Cuba uma filha de 12 anos e a mãe, que vive com um irmão mais novo. Chegou ao Brasil depois de passar por Trinidad e Tobago e Belize, duas ilhas caribenhas.
Em entrevista ao Diário Catarinense (íntegra aqui), o clínico geral diz que do salário de R$ 10 mil fica com perto da metade. O governo de Cuba fica com 40%, segundo ele, “para investir em prioridades". Questionado se enfrentou algum problema com os colegas brasileiros, Porfírio disse que na semana passada precisou encaminhar duas pessoas para o hospital e que, diferente do que se faz supor, recebeu bastante apoio dos colegas médicos: “Até agora não senti reação contrária.”
Porfírio reforça que encontrou nenhuma barreira. Fala lentamente para se fazer entender, que respeita o paciente e que a função de um médico entre pessoas pobres se assemelha a um apostolado: “O médico em uma comunidade pobre, carente, simples, é como um pastor. Tem coisas que só com o médico se fala, que só ele entende o que está sendo contado. Somos vistos como deuses. Estamos aqui somente para ajudar as pessoas.”
Abaixo, a íntegra da entrevista de Porfírio Duarte:
"O governo de Cuba fica com 40% do salário para investir em prioridades" diz estrangeiro que trabalha no programa Mais Médicos
Diário Catarinense _Como era a sua vida em Cuba?
Porfírio Duarte _ Levava uma vida simples na cidade de Santa Clara, a cerca de 280 quilômetros da capital Havana. Atendia adultos e crianças no consultório e fazia visita domiciliar.
DC _Como é sua família?
Porfírio _ Sou separado. Tenho uma filha de 12 anos, criada pela mãe. Minha mãe mora com um irmão mais novo.
DC _O que o motivou a vir para o Brasil?
Porfírio _ O motivo foi profissional, a exemplo do que me fez estar em dois países antes. Sonhava em conhecer o Brasil não apenas pelo povo, mas para saber sobre doenças típicas daqui, como o Mal de Chagas, e outras enfermidades que não existem em Cuba.
DC _Essas enfermidades não são tão comuns aqui em Santa Catarina. Mas existem outras doenças.
Porfírio _ Aqui especificamente em Navegantes tem uma alta incidência de doenças da tireoide, como hiper e hipotireoidismo. A maioria das pessoas usa sal iodado, então é de se perguntar o motivo. Tem que ser outra coisa, quem sabe algo relacionado ao clima, ao ambiente, à indústria. Quero estudar isso.
DC _O senhor consegue aplicar sua experiência e levará conhecimento quando retornar?
Porfírio _ Sim. O resto das doenças é igual às que têm os pacientes cubanos: hipertensão, diabetes, doenças pulmonares, Parkinson, depressão _ muito comum aqui _ a qual decorre da ansiedade.
DC_Como o senhor avalia as condições de trabalho, melhor do que lá?
Porfírio _ Temos aqui uma boa farmácia, policlínica e um hospital. Aqui em Navegantes não se tem do que reclamar. Em Cuba a gente atua na saúde preventiva da população.
DC _ A vinda de médicos estrangeiros, principalmente os cubanos, causou polêmica. O senhor enfrentou ou sente algum problema em relação a isso?
Porfírio _Faz 50 dias que estou aqui. Semana passada eu precisei encaminhar duas pessoas para o hospital e recebi bastante apoio dos colegas médicos. Até agora não senti reação contrária.
DC _ Sobre o idioma: o paciente entende o que o senhor fala?
Porfírio _Sim. Eu percebi que em Navegantes as pessoas falam muito rápido, então eu prefiro falar bem devagar para me fazer entender. Eu procuro dar muita segurança aos pacientes, pois só em estar em um consultório tende-se a ficar nervoso.
DC _ Essa respeito com o paciente deveria ser universal.
Porfírio _O médico tem que entender isso. Para a mim a língua não é uma barreira. O médico em uma comunidade pobre, carente, simples é como um pastor tem coisas que só com o médico se fala, que só ele entende o que está sendo contado. Somos vistos como deuses. Estamos aqui somente para ajudar as pessoas.
DC_O que o senhor sente que pode ser uma barreira aos médicos estrangeiros?
Porfírio_Até agora nada. As pessoas agradecem pela consulta, citam o Programa Mais Médicos como um bem a elas, ainda mais aqui onde o profissional que me antecedeu faleceu e ficou um tempo sem ninguém atendendo.
DC_Como foi o seu primeiro dia em Navegantes?
Porfírio_Foi uma boa experiência: um paciente com epilepsia e dois precisando de suturas, um no braço perfurado por um ferro e outra com uma orelha rasgada por um brinco. Fizemos tudo aqui, sem precisar encaminhar para o hospital.
DC_Como o senhor faz para receitar?
Porfírio_É simples. Temos um formulário nacional de medicamentos do Brasil, e com o que existe disponível na farmácia e na farmácia central. Se a pessoa tiver que comprar, eu troco, eu ajudo.
DC_O que o senhor faz quando não está trabalhando?
Porfírio_Levo uma vida muito simples. Divido a casa com uma médica, também cubana. Fazemos compras, vou na academia, faço esteira e quando fico em casa saio à rua para conversar com meus vizinhos.
DC_A vizinhança trata vocês bem?
Porfírio_Sim. Moramos em frente a uma pizzaria e quando souberam que não tínhamos internet deram a senha do wi-fi para nós. Graças a isso a gente consegue se comunicar com nossas famílias. Isso ajuda a matar um pouco da saudade que sentimos.
DC_A comunicação com Cuba é difícil?
Porfírio_Não temos webcam. Usamos apenas e-mail. Ninguém pode imaginar como se sente uma pessoa quando termina o trabalho e volta para a casa, sozinho. A gente lembra do que viveu, das alegrias passadas.
DC_Financeiramente como está?
Porfírio_Seguimos as regras do contrato com o governo federal. O salário é de R$ 10 mil. O município paga o aluguel, a alimentação e o transporte. Todo o mês recebemos aqui, no Brasil, em torno de R$ 1 mil para outras despesas. Com esse dinheiro já consegui comprar um telefone celular. O restante é depositado no banco popular, em Cuba, e nosso governo fica com 40%. Mas não é que se aproprie do valor: na verdade é aplicado em outras prioridades do país, como saúde e educação.
DC_Quanto do salário pago pelo Brasil fica com o governo cubano?
Porfírio_Depende. Não é tudo o que sobra do salário, é menos da metade do recebido.
DC_Dá para viver bem com esse salário e planejar algo mais?
Porfírio_Sim, isso livre das despesas básicas. Nós vamos trabalhar 11 meses e depois pegaremos férias, aí retornaremos.
DC_A medicina que o senhor pratica aqui é como em Cuba?
Porfírio_Sim. É mais de promoção e preventiva. Quando comecei era bem assim, visita domiciliar, ouvir as pessoas, uma etapa mais social, fazendo palestras. Atendo crianças, grávidas, idosas. Temos um pediatra, mas quando não é o dia dele a gente também atende.
DC - O senhor tinha alguma atuação política em Cuba?
Porfírio _Em Cuba temos um só partido, o Partido Socialista de Cuba. Para nosso governo, a saúde é muito importante e nós acreditamos nisso desde quando nos interessamos pela medicina. Por isso também eu e meus amigos médicos cubanos acreditamos e valorizamos tanto o Programa Mais Médicos, que não importa se seja desse ou daquele governo, mas é do Brasil.
DC_O senhor teve alguma proximidade com o ex-presidente Fidel Castro? Porfírio_Tenho uma foto junto dele, mas deixei lá. Para nós cubanos trata-se de um pai. Muito se acusa o governo cubano de ser fechado. Mas foram os Estados Unidos que decretaram o embargo. Não é verdade que os cubanos quiseram ficar fechados. As embaixadas, por amizade aos Estados Unidos, negavam receber nossos cidadãos.
DC_Mas as coisas parecem estar mudando. Recentemente, nas despedidas a Nelson Mandela, Barack Obama cumprimentou Raúl Castro.
Porfírio_Sim. Raúl Castro também é um bom presidente para o povo cubano. Assuntos como educação e saúde continuam sendo prioridades. Isso deixa o povo contente.
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