14/3/2014, [*] Andrew Levine, Counterpunch
“A Dangerous Ploy: Putin’s Demonizers”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
“O que fez Putin, que seja pior, de um ponto de vista liberal, que pôr todo o planeta sob regime de vigilância 24 horas/dia, sete dias por semana?
Putin ordenou assassinatos sem qualquer sequer remota semelhança com algum devido processo legal, como fez Obama?
Putin deportou cerca de dois milhões de pessoas?
Putin garantiu proteção a sequestradores e torturadores?”
Vladimir Putin, por Maurício Porto
Democratas e Republicanos passam praticamente todo o tempo uns com as unhas na garganta do outros. Razões há muitas. Mas entre elas não se incluem diferenças filosóficas ou ideológicas fundamentais. Não.
Mas essa não é a concepção dominante. A sabedoria convencional reza que haveria filosofias diferentes a separá-los – os Democratas são liberais e os Republicanos, conservadores. Talvez antigamente, num tempo remoto, as coisas tenham sido mais ou menos assim. Hoje, a briga é outra.
A concepção dominante, por um lado, dá a Democratas e Republicanos excessivo crédito. Por outro lado, insulta o liberalismo e o conservadorismo.
Ultimamente, a ideia de que Vladimir Putin é da turma dos “bandidos” passou a integrar a sabedoria convencional; nisso, Democratas e Republicanos concordam. É notável – não só porque ultimamente o hábito deles todos é discordar, mas também porque há pouco tempo tratava-se exatamente do contrário.
George W. Bush olhou olho-no-olho de Vladimir Putin, perscrutou-lhe a alma, achou boa. Só imorredouros Guerreiros da Guerra Fria à antiga espinafravam Putin. Hoje, Hillary Clinton, fazendo eco ao consenso em toda a imprensa-empresa, diz de Putin que é um Hitler. Como todas as criancinhas de jardim de infância sabem, é o mesmo que dizer que Putin é o mal encarnado.
Quanto a isso, ela fala por todo o establishment político.
Vladimir Putin e George W. Bush, olho-no-olho
Mas liberais e conservadores verdadeiros não têm motivo algum para demonizar o presidente russo. Os liberais deveriam dar-lhes boas-vindas sob o mesmo amplíssimo guarda-chuva. Os conservadores deveriam beijá-lo.
Pois mesmo assim, Democratas e Republicanos só fazem demonizar Putin.
Dado que nenhuma diferença filosófica explica a coisa, tem de haver outra razão. Talvez... porque Putin é presidente da Rússia?
Nem norte-americanos nem europeus são geneticamente anti-russos, nem tendem a denegrir a cultura russa. Mas as respectivas elites políticas e econômicas são sensíveis a todas e quaisquer sugestões de que o sistema econômico do qual extraem tantos benefícios já não seria, como antes foi, uma bênção para todas as nações.
Isso faz da Rússia um problema para aquelas elites, na medida que, como hoje, a sabedoria convencional reza que a relação entre Rússia e o capitalismo é problemática.
Ironicamente, a relação entre o capitalismo e o conservadorismo também é (problemática). Entre capitalismo e liberalismo, não.
De fato, o liberalismo uniu-se ao capitalismo desde o Dia Um.
Houve intimidades entre ambos na Holanda e na Inglaterra já no século 16, e os dois desenvolveram-se no mesmo compasso – unidos, há muito tempo, pelos centros capitalistas na Europa do Norte e na América do Norte.
O capitalismo inicial foi, de fato, a teoria de justificação do capitalismo.
Os filósofos políticos sempre propuseram ideias sobre o que é o liberalismo, e a política liberal assumiu ampla variedade de formas.
Mesmo assim, apesar das muitas variantes, há um núcleo comum entre capitalismo e liberalismo. Como o nome sugere, tem a ver com liberdade ou libertarismo [orig. liberty or freedom]. Mais precisamente, tem a ver com visões liberais marcadamente diferentes desse valor núcleo.
A concepção de liberdade à qual mais se agarram os liberais, historicamente e conceitualmente, é individualista e negativa; os indivíduos são livres na medida em que são livres de interferências coercitivas.
Esse entendimento às vezes fundiu-se em concepções mais positivas, segundo as quais os indivíduos são livres na medida em que são capazes para fazer o que queiram fazer, e isso se uniu recentemente a compreensões menos individualistas derivadas da teoria política republicana (“r” minúsculo) do século 18.
A ideia serviu também a uma vasta faixa de elaborações filosóficas que se baseiam em noções de igualdade e justiça e em outros problemas profundos da filosofia moral.
Mas como doutrina política, a ênfase subjacente do liberalismo continuou bastante estável ao longo dos anos: o foco sempre foi e continua a ser minimizar as interferências coercitivas do estado.
O liberalismo é, pois, uma teoria do governo limitado. Nos primeiros tempos, opôs-se a teorias absolutistas segundo as quais o poder do soberano é em princípio ilimitado. E venceu essa batalha, há muito tempo.
É, pois, justo dizer que, exceto por um punhado de devotos não reconstruídos de teorias não liberais defuntas, todo mundo, hoje, é liberal. Os conservadores também são liberais.
Em termos comuns, não liberalismo e “ditadura” às vezes confundem-se. É compreensível, mas também pode desencaminhar o pensamento.
Há regimes em estados fracos ou falhados que têm características ditatoriais, e há líderes políticos que às vezes agem “ditatorialmente”.
É como a nossa empresa-imprensa norte-americana retrata Vladimir Putin. E é como alguns partidários do Tea Party, os mais excepcionalmente delirantes, retratam Barack Obama.
Como a imprensa-empresa dos EUA (e ocidental, em geral) retrata Vladimir Putin
Mas, independente do mérito desses qualificativos, o fato permanece: onde o poder soberano seja limitado por leis cogentes, só resta o liberalismo. Vale para os EUA e vale também para a Rússia.
Os primeiros liberais estavam principalmente interessados no comércio; o objetivo deles era substituir a mão invisível do mercado, pelo estado; e substituir as relações feudais de propriedade, por um regime de propriedade privada.
Agora, já se foram os velhos inimigos mercantis e feudais do liberalismo, mas seus compromissos doutrinais permanecem.
Os “libertaristas” [orig. Libertarians”] continuam a ecoar posições assumidas pelos primeiros liberais; a fé que tinham nos livres mercados e na propriedade privada continua inabalada. A sabedoria convencional os põe no campo conservador, mas, na realidade, são o mais liberal que é possível ser.
Liberais dominantes são menos doutrinários, ou, como reza a sabedoria convencional, são mais “pragmáticos”.
Essa palavra também tem raízes filosóficas que mantêm só vaga relação com o modo como é usada em nossa cultura política. Aí, “pragmático” significa apenas “de mente aberta” ou “flexível”.
Nesse sentido, os liberais dominantes são, em geral, pragmáticos. Nos amplos limites demarcados pelo compromisso deles com os princípios liberais, dão-se bem com qualquer coisa que funcione.
Em parte por essa razão, eles não têm qualquer interesse em promover as doutrinas econômicas liberais clássicas. Uma razão mais importante é que as principais preocupações deles não são, de modo algum, econômicas.
São advogados da tolerância e tudo que ela implica.
Esse foco nada tem de novo. Vem de antes das Revoluções Francesa e Americana.
Muitos fatores combinaram-se para converter o liberalismo numa filosofia da tolerância. A devastação trazida pelas guerras religiosas que se seguiram à Reforma Protestante foi talvez o mais importante.
A mudança na ênfase foi tão profunda e suas consequências, de tão longo alcance, que dificilmente alguém hoje, fora dos círculos libertaristas, ainda pensa que as liberdades econômicas e políticas constituem rede inconsútil.
De fato, liberais dominantes em geral apoiam mercados regulados e restrições aos direitos de propriedade. Mas, para eles, essas são preocupações apenas secundárias. O principal interesse deles está em defender tais direitos e liberdades como são elaborados, digamos, na Carta de Direitos (Bill of Rights) da Constituição Norte-Americana e na Declaração dos Direitos do Homem (The Declaration of the Rights of Man).
Ainda que só para facilitar a vida deles, funcionários políticos são constantemente tentados a atropelar e pisotear essas proteções. Mas onde se mantenha o império da lei, há limites a até onde podem ir. Isso é verdade na Rússia, é verdade na União Europeia e é verdade também nos EUA.
Putin seria qualitativamente pior que líderes comuns de estados liberais? É pior que Obama? A resposta é “claro que é” ou, pelo menos, é o que nos dizem.
Afinal, como poderia alguém formado pela Faculdade de Direito de Harvard e professor de Direito Constitucional da Universidade de Chicago ser menos liberal que um ex-agente da KGB?
Mas quando se fazem as contas finais, a resposta óbvia pode já não parecer assim tão óbvia.
O que fez Putin, que seja pior, de um ponto de vista liberal, que pôr todo o planeta sob regime de vigilância 24 horas/dia, sete dias por semana? Putin ordenou assassinatos sem qualquer sequer remota semelhança com algum devido processo legal, como fez Obama? Putin deportou cerca de dois milhões de pessoas? Putin garantiu proteção a sequestradores e a torturadores?
Agradecimentos a Edward Snowden
E há a questão de Edward Snowden, na qual as ideias de Obama et alii sobre transparência e liberdade de expressão ficaram bem claras, e na qual Putin alistou-se ao lado dos anjos.
É quase um axioma que a liberdade de expressão está mais bem protegida nos EUA de Obama, que na Rússia, hoje. Mas... é verdade? Compare a imprensa - empresa norte-americana e a rede de televisão RT (Russia Today), que hoje é desqualificada como rede de propaganda de Putin.
O padrão dos comentários e comentaristas e das análises e analistas de RT é, de longe, muito superior, e há ali muito maior diversidade de pontos de vista. Se isso é rede de propaganda, então... temos de importá-la.
Diz-se que Putin teria violado a lei internacional na Crimeia. É ponto contra seu liberalismo, porque apoiar o império da lei é central para as políticas liberais.
Mas também nisso, seria Putin pior que Obama? Putin, pelo menos, não é invasor agressor serial.
Claro, é notório que os Democratas não têm espinha dorsal, e que também relutam em defender valores liberais quando um deles está na Casa Branca. Então, quando recebem ordem para demonizar, eles demonizam. Aí, não há surpresa alguma.
Mas se fossem melhores liberais, eles com certeza resistiriam à ordem. Podem não estar ao lado de Putin na Crimeia, mas teriam de considerá-lo, no mínimo, como um dos seus; um deles, que se desencaminhou. E considerariam assim, também Obama.
E há então os conservadores.
Em seu nível mais fundamental, o conservadorismo é uma forma mental que dá grande importância a conservar as coisas como sejam. Praticamente, como os liberais dão o lugar de honra à ausência de interferência do estado, assim os conservadores valorizam a estabilidade e a ordem acima de tudo.
São, portanto, avessos a mudanças, com especial atenção à conservação dos arranjos institucionais fundamentais. Mudanças são disruptivas; quanto mais radical a mudança, mais tende a ser disruptiva.
Barack Obama e Vladimir Putin
Não há dúvidas de que esse temperamento está mais disseminado nas fileiras Republicanas, que nas Democratas.
Mas como filosofia política plena, o conservadorismo praticamente não existe na cultura política dos EUA. Como poderia existir, quando o que há para conservar é inerentemente desestabilizador!
Desde o alvorecer da era cristã, os pensadores conservadores no mundo cristão apoiaram-se em noções teológicas, como a doutrina do Pecado Original, que implica apoio a instituições que mantêm a ordem mediante coerção política e moral.
Porque muitos dos primeiros colonizadores na América do Norte britânica eram refugiados religiosos, esse destaque para o pensamento conservador esteve presente na cena nos EUA desde a chegada dos primeiros europeus. Mas a situação modificou-se, e evanesceram os modos de pensar de antes do Iluminismo.
De fato, a república estabelecida depois de nossa Guerra da Independência era liberal de berço, e seus princípios fundadores foram os do Iluminismo.
Essa é a razão pela qual linhas de pensamento que tivessem implicações antiliberais demoraram a fixar-se. Outra, é que não temos passado feudal e, portanto, nenhuma memória de modos não capitalistas de viver que prestigiam a estabilidade e a ordem.
O capitalismo, afinal de contas, é sistema econômico revolucionário; derruba e reconstrói tudo que encontra. Como proclamou, em proclamação famosa, oManifesto Comunista, sob o poder do capitalismo “tudo que é sólido desmancha-se no ar”.
Hoje os conservadores, os verdadeiros conservadores, vivem em sociedades capitalistas e, portanto, se acomodam às suas consequências desestabilizantes. Mas a tensão não pode nunca ser totalmente superada.
Essa é a razão pela qual os conservadores norte-americanos são, no máximo, fac-símiles cômicos do artigo genuíno.
Apesar disso, quase todos os Republicanos e alarmantemente muitos Democratas se dizem “conservadores”.
Não estão completamente errados, porque há pelo menos uma característica do conservadorismo autêntico que eles partilham com os conservadores genuínos.
Robert Nozick
Os conservadores contemporâneos são liberais; todos são. Mas liberais da banda autoidentificada do consenso liberal, os que levam a tolerância mais a sério do que só para o que o filósofo libertarista Robert Nozick chamou de “atos de capitalismo entre adultos que consentem”, esses liberais querem, tipicamente, que o estado seja o mais neutro possível – não só no que tenha a ver com religiões em competição e com modos de viver, mas, também, no que tenha a ver com todas as concepções do bem que estejam, seja como for, em disputa.
Para eles, o papel do estado não é promover concepções específicas do bem, mas, sim, tratar com equidade todas as concepções que estejam em confronto.
E os conservadores, por sua vez, os conservadores genuínos, são ainda fiéis, ou tão fiéis quanto ainda são nas modernas sociedades pluralistas, a concepções particulares do bem; as concepções, que estejam de acordo com seus compromissos filosóficos subjacentes.
Os liberais, é claro, também têm concepções do bem; mas as veem como questões, exclusivamente, de consciência individual. Os conservadores tendem a usar o poder do estado para promover as concepções que eles prestigiem.
Nesse aspecto, os automodelados conservadores norte-americanos são parecidos com os liberais.
Mas... Putin não está sendo acusado precisamente desse “crime”, pelos que o chamam de ditador? E, quanto a isso, as concepções de bem que Putin é acusado de promover não são basicamente as mesmas defendidas pelos que o demonizam?
Robert NozickSe se ouve o que dizem Republicanos e Democratas nos EUA, Putin estaria comandando o espetáculo a serviço dos clérigos russos reacionários – seja por razões oportunistas ou porque crê na conversa enrolada deles ou pelos dois motivos. Mas por que isso é problema para políticos norte-americanos, especialmente, dentre esses, para os automodelados conservadores? Exceto por platitudes teológicas sem relevância política, que variam, nossos teocratas nativos fazem sempre exatamente a mesma coisa.
Conservadores verdadeiros deveriam, pois, abraçar Putin, não demonizá-lo; abraçá-lo, e não só por suas declaradas simpatias pré-Iluminismo.
Sempre pessimistas quanto à natureza humana, os verdadeiros conservadores tendem a favorecer estilos políticos autoritários e diplomacia dura, realista. Gostam de líderes fortes, e desprezam moralizadores que falam à toa, sem rumo – como os que hoje fazem a política externa dos EUA.
Num ponto, acertam: internacionalistas liberais – sobretudo do tipo “interventor humanitário” – são mais perigosos.
Mas, assim sendo, por que demonizar Putin, por ser o exato tipo de líder que os verdadeiros conservadores admiram?
É eloquente que um dos menos ridículos, vaidosos, ocos e presunçosos participantes da recentemente concluída Conferência da Ação Política Conservadora [orig. Conservative Political Action Conference (CPAC)] em Washington, de fato, embora entre grunhidos de protestos, concordou com isso.
Rudolph Giuliani
Rudolph Giuliani aproveitou a cena para desancar Obama, elogiando a liderança de Putin. Em vez de vagar sem rumo de uma situação para outra, como Obama, Putin, disse Giuliani, sabe exatamente para onde anda.
Como outros grandes líderes conservadores do passado – o primeiro nome que vem à mente é Charles de Gaulle – Putin aborda a política e a diplomacia como um jogo de xadrez, considerando toda a situação mais ampla e antecipando o movimento correto, já com várias jogadas de vantagem.
E assim, quando interessa ao seu objetivo, Putin salva Obama, como fez quando Obama se autoencurralou de tal modo que, sem a intervenção de Putin, teria metido os EUA na guerra da Síria – com prejuízo para todos os demais envolvidos.
Ou, quando é o que melhor atende seus próprios interesses, Putin pode impor-se como superior até ao presidente dos EUA, inobstante o fato de que os EUA tenham a carta mais alta.
Sob a tenda conservadora, há ainda lugar, evidentemente, para um tipo de grandeza que falta completamente na ala liberal do grupo liberal maior.
Grandeza, mas não bondade. Quanto a isso, como em praticamente tudo mais, George W. Bush errou. Hillary Clinton erra também.
Putin é hoje o mais perto que há dos grandes líderes conservadores do passado. Os conservadores deveriam louvá-lo por isso. Mas a ravina que separa os verdadeiros conservadores e os automodelados conservadores que há hoje por aí é vastíssima; é como se fossem espécies diferentes.
Mas, apesar disso, a pergunta permanece: por que Putin está sendo demonizado?
Atrevo-me a sugerir que o fato de Putin ser presidente da Rússia tem muito, não apenas pouco, a ver com isso.
Gore Vidal
Mesmo no país que Gore Vidal chamou de Estados Unidos da Amnésia, ainda há registros de que, há um século, os russos fizeram a história andar avante; e aquela avançada levou-os a se libertarem do sistema capitalista.
Os comunistas que lideraram a Revolução Russa passaram então a organizar e supervisionar a construção de uma ordem ostensivamente socialista, sem precedentes na história. Foi esforço de valentes – num país economicamente atrasado e contra a mais incansável oposição de inimigos imensamente mais fortes.
Tragicamente, o que aqueles comunistas fizeram converteu-se no que não era. Sete décadas depois, ruiu.
Mas o comunismo – na Rússia e, depois, na Europa Oriental e na China – foi presença viva durante grande parte do século 20; seus efeitos na política e seus reflexos na política foram profundos.
Mesmo num país e num tempo em que estados e regiões com tendência aos Republicanos são chamados de “vermelhos”, a memória do comunismo persiste, em algum nível.
Putin não é menos pró-capitalista que qualquer outro liberal, e é o melhor e mais fino líder conservador que há no mundo de hoje. (...) Mas a memória do comunismo persiste em nossa consciência coletiva.
Assim, quando um presidente da Rússia torna-se obstáculo na trilha norte-americana, o império contra-ataca. O primeiro passo é demonizar o presidente russo. E se há coisa que o establishment da política externa e a servil imprensa-empresa nos EUA fazem bem feito é demonizar gente.
Demonizar Putin pode ser útil, no curto prazo, para os tacanhos servidores do ‘bipartidarismo’ imperial.
Mas estão enfrentando alguém muito mais competente e aplicado que eles, e já estão chegando a região em que a água lhes cobre a cabeça. É uma trama cínica e perigosa, da qual pode advir dano incalculável.
______________________
[*] Andrew Levine é professor sênior do Institute for Policy Studies, e autor de THE AMERICAN IDEOLOGY (Routledge) e POLITICAL KEY WORDS (Blackwell), bem como de muitos outros livros e artigos em filosofia política. Seu livro mais recente é In Bad Faith: What’s Wrong With the Opium of the People. Foi professor de Filosofia) na University of Wisconsin-Madison e professor pesquisador (filosofia) na University of Maryland-College Park. Foi também co-autor de Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion (AK Press).
POSTADO POR CASTOR FILHO
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/03/trama-perigosa-os-demonizadores-de-putin.html
Esse foco nada tem de novo. Vem de antes das Revoluções Francesa e Americana.
Muitos fatores combinaram-se para converter o liberalismo numa filosofia da tolerância. A devastação trazida pelas guerras religiosas que se seguiram à Reforma Protestante foi talvez o mais importante.
A mudança na ênfase foi tão profunda e suas consequências, de tão longo alcance, que dificilmente alguém hoje, fora dos círculos libertaristas, ainda pensa que as liberdades econômicas e políticas constituem rede inconsútil.
De fato, liberais dominantes em geral apoiam mercados regulados e restrições aos direitos de propriedade. Mas, para eles, essas são preocupações apenas secundárias. O principal interesse deles está em defender tais direitos e liberdades como são elaborados, digamos, na Carta de Direitos (Bill of Rights) da Constituição Norte-Americana e na Declaração dos Direitos do Homem (The Declaration of the Rights of Man).
Ainda que só para facilitar a vida deles, funcionários políticos são constantemente tentados a atropelar e pisotear essas proteções. Mas onde se mantenha o império da lei, há limites a até onde podem ir. Isso é verdade na Rússia, é verdade na União Europeia e é verdade também nos EUA.
Putin seria qualitativamente pior que líderes comuns de estados liberais? É pior que Obama? A resposta é “claro que é” ou, pelo menos, é o que nos dizem.
Afinal, como poderia alguém formado pela Faculdade de Direito de Harvard e professor de Direito Constitucional da Universidade de Chicago ser menos liberal que um ex-agente da KGB?
Mas quando se fazem as contas finais, a resposta óbvia pode já não parecer assim tão óbvia.
O que fez Putin, que seja pior, de um ponto de vista liberal, que pôr todo o planeta sob regime de vigilância 24 horas/dia, sete dias por semana? Putin ordenou assassinatos sem qualquer sequer remota semelhança com algum devido processo legal, como fez Obama? Putin deportou cerca de dois milhões de pessoas? Putin garantiu proteção a sequestradores e a torturadores?
Agradecimentos a Edward Snowden
E há a questão de Edward Snowden, na qual as ideias de Obama et alii sobre transparência e liberdade de expressão ficaram bem claras, e na qual Putin alistou-se ao lado dos anjos.
É quase um axioma que a liberdade de expressão está mais bem protegida nos EUA de Obama, que na Rússia, hoje. Mas... é verdade? Compare a imprensa - empresa norte-americana e a rede de televisão RT (Russia Today), que hoje é desqualificada como rede de propaganda de Putin.
O padrão dos comentários e comentaristas e das análises e analistas de RT é, de longe, muito superior, e há ali muito maior diversidade de pontos de vista. Se isso é rede de propaganda, então... temos de importá-la.
Diz-se que Putin teria violado a lei internacional na Crimeia. É ponto contra seu liberalismo, porque apoiar o império da lei é central para as políticas liberais.
Mas também nisso, seria Putin pior que Obama? Putin, pelo menos, não é invasor agressor serial.
Claro, é notório que os Democratas não têm espinha dorsal, e que também relutam em defender valores liberais quando um deles está na Casa Branca. Então, quando recebem ordem para demonizar, eles demonizam. Aí, não há surpresa alguma.
Mas se fossem melhores liberais, eles com certeza resistiriam à ordem. Podem não estar ao lado de Putin na Crimeia, mas teriam de considerá-lo, no mínimo, como um dos seus; um deles, que se desencaminhou. E considerariam assim, também Obama.
E há então os conservadores.
Em seu nível mais fundamental, o conservadorismo é uma forma mental que dá grande importância a conservar as coisas como sejam. Praticamente, como os liberais dão o lugar de honra à ausência de interferência do estado, assim os conservadores valorizam a estabilidade e a ordem acima de tudo.
São, portanto, avessos a mudanças, com especial atenção à conservação dos arranjos institucionais fundamentais. Mudanças são disruptivas; quanto mais radical a mudança, mais tende a ser disruptiva.
Barack Obama e Vladimir Putin
Não há dúvidas de que esse temperamento está mais disseminado nas fileiras Republicanas, que nas Democratas.
Mas como filosofia política plena, o conservadorismo praticamente não existe na cultura política dos EUA. Como poderia existir, quando o que há para conservar é inerentemente desestabilizador!
Desde o alvorecer da era cristã, os pensadores conservadores no mundo cristão apoiaram-se em noções teológicas, como a doutrina do Pecado Original, que implica apoio a instituições que mantêm a ordem mediante coerção política e moral.
Porque muitos dos primeiros colonizadores na América do Norte britânica eram refugiados religiosos, esse destaque para o pensamento conservador esteve presente na cena nos EUA desde a chegada dos primeiros europeus. Mas a situação modificou-se, e evanesceram os modos de pensar de antes do Iluminismo.
De fato, a república estabelecida depois de nossa Guerra da Independência era liberal de berço, e seus princípios fundadores foram os do Iluminismo.
Essa é a razão pela qual linhas de pensamento que tivessem implicações antiliberais demoraram a fixar-se. Outra, é que não temos passado feudal e, portanto, nenhuma memória de modos não capitalistas de viver que prestigiam a estabilidade e a ordem.
O capitalismo, afinal de contas, é sistema econômico revolucionário; derruba e reconstrói tudo que encontra. Como proclamou, em proclamação famosa, oManifesto Comunista, sob o poder do capitalismo “tudo que é sólido desmancha-se no ar”.
Hoje os conservadores, os verdadeiros conservadores, vivem em sociedades capitalistas e, portanto, se acomodam às suas consequências desestabilizantes. Mas a tensão não pode nunca ser totalmente superada.
Essa é a razão pela qual os conservadores norte-americanos são, no máximo, fac-símiles cômicos do artigo genuíno.
Apesar disso, quase todos os Republicanos e alarmantemente muitos Democratas se dizem “conservadores”.
Não estão completamente errados, porque há pelo menos uma característica do conservadorismo autêntico que eles partilham com os conservadores genuínos.
Robert Nozick
Os conservadores contemporâneos são liberais; todos são. Mas liberais da banda autoidentificada do consenso liberal, os que levam a tolerância mais a sério do que só para o que o filósofo libertarista Robert Nozick chamou de “atos de capitalismo entre adultos que consentem”, esses liberais querem, tipicamente, que o estado seja o mais neutro possível – não só no que tenha a ver com religiões em competição e com modos de viver, mas, também, no que tenha a ver com todas as concepções do bem que estejam, seja como for, em disputa.
Para eles, o papel do estado não é promover concepções específicas do bem, mas, sim, tratar com equidade todas as concepções que estejam em confronto.
E os conservadores, por sua vez, os conservadores genuínos, são ainda fiéis, ou tão fiéis quanto ainda são nas modernas sociedades pluralistas, a concepções particulares do bem; as concepções, que estejam de acordo com seus compromissos filosóficos subjacentes.
Os liberais, é claro, também têm concepções do bem; mas as veem como questões, exclusivamente, de consciência individual. Os conservadores tendem a usar o poder do estado para promover as concepções que eles prestigiem.
Nesse aspecto, os automodelados conservadores norte-americanos são parecidos com os liberais.
Mas... Putin não está sendo acusado precisamente desse “crime”, pelos que o chamam de ditador? E, quanto a isso, as concepções de bem que Putin é acusado de promover não são basicamente as mesmas defendidas pelos que o demonizam?
Robert NozickSe se ouve o que dizem Republicanos e Democratas nos EUA, Putin estaria comandando o espetáculo a serviço dos clérigos russos reacionários – seja por razões oportunistas ou porque crê na conversa enrolada deles ou pelos dois motivos. Mas por que isso é problema para políticos norte-americanos, especialmente, dentre esses, para os automodelados conservadores? Exceto por platitudes teológicas sem relevância política, que variam, nossos teocratas nativos fazem sempre exatamente a mesma coisa.
Conservadores verdadeiros deveriam, pois, abraçar Putin, não demonizá-lo; abraçá-lo, e não só por suas declaradas simpatias pré-Iluminismo.
Sempre pessimistas quanto à natureza humana, os verdadeiros conservadores tendem a favorecer estilos políticos autoritários e diplomacia dura, realista. Gostam de líderes fortes, e desprezam moralizadores que falam à toa, sem rumo – como os que hoje fazem a política externa dos EUA.
Num ponto, acertam: internacionalistas liberais – sobretudo do tipo “interventor humanitário” – são mais perigosos.
Mas, assim sendo, por que demonizar Putin, por ser o exato tipo de líder que os verdadeiros conservadores admiram?
É eloquente que um dos menos ridículos, vaidosos, ocos e presunçosos participantes da recentemente concluída Conferência da Ação Política Conservadora [orig. Conservative Political Action Conference (CPAC)] em Washington, de fato, embora entre grunhidos de protestos, concordou com isso.
Rudolph Giuliani
Rudolph Giuliani aproveitou a cena para desancar Obama, elogiando a liderança de Putin. Em vez de vagar sem rumo de uma situação para outra, como Obama, Putin, disse Giuliani, sabe exatamente para onde anda.
Como outros grandes líderes conservadores do passado – o primeiro nome que vem à mente é Charles de Gaulle – Putin aborda a política e a diplomacia como um jogo de xadrez, considerando toda a situação mais ampla e antecipando o movimento correto, já com várias jogadas de vantagem.
E assim, quando interessa ao seu objetivo, Putin salva Obama, como fez quando Obama se autoencurralou de tal modo que, sem a intervenção de Putin, teria metido os EUA na guerra da Síria – com prejuízo para todos os demais envolvidos.
Ou, quando é o que melhor atende seus próprios interesses, Putin pode impor-se como superior até ao presidente dos EUA, inobstante o fato de que os EUA tenham a carta mais alta.
Sob a tenda conservadora, há ainda lugar, evidentemente, para um tipo de grandeza que falta completamente na ala liberal do grupo liberal maior.
Grandeza, mas não bondade. Quanto a isso, como em praticamente tudo mais, George W. Bush errou. Hillary Clinton erra também.
Putin é hoje o mais perto que há dos grandes líderes conservadores do passado. Os conservadores deveriam louvá-lo por isso. Mas a ravina que separa os verdadeiros conservadores e os automodelados conservadores que há hoje por aí é vastíssima; é como se fossem espécies diferentes.
Mas, apesar disso, a pergunta permanece: por que Putin está sendo demonizado?
Atrevo-me a sugerir que o fato de Putin ser presidente da Rússia tem muito, não apenas pouco, a ver com isso.
Gore Vidal
Mesmo no país que Gore Vidal chamou de Estados Unidos da Amnésia, ainda há registros de que, há um século, os russos fizeram a história andar avante; e aquela avançada levou-os a se libertarem do sistema capitalista.
Os comunistas que lideraram a Revolução Russa passaram então a organizar e supervisionar a construção de uma ordem ostensivamente socialista, sem precedentes na história. Foi esforço de valentes – num país economicamente atrasado e contra a mais incansável oposição de inimigos imensamente mais fortes.
Tragicamente, o que aqueles comunistas fizeram converteu-se no que não era. Sete décadas depois, ruiu.
Mas o comunismo – na Rússia e, depois, na Europa Oriental e na China – foi presença viva durante grande parte do século 20; seus efeitos na política e seus reflexos na política foram profundos.
Mesmo num país e num tempo em que estados e regiões com tendência aos Republicanos são chamados de “vermelhos”, a memória do comunismo persiste, em algum nível.
Putin não é menos pró-capitalista que qualquer outro liberal, e é o melhor e mais fino líder conservador que há no mundo de hoje. (...) Mas a memória do comunismo persiste em nossa consciência coletiva.
Assim, quando um presidente da Rússia torna-se obstáculo na trilha norte-americana, o império contra-ataca. O primeiro passo é demonizar o presidente russo. E se há coisa que o establishment da política externa e a servil imprensa-empresa nos EUA fazem bem feito é demonizar gente.
Demonizar Putin pode ser útil, no curto prazo, para os tacanhos servidores do ‘bipartidarismo’ imperial.
Mas estão enfrentando alguém muito mais competente e aplicado que eles, e já estão chegando a região em que a água lhes cobre a cabeça. É uma trama cínica e perigosa, da qual pode advir dano incalculável.
______________________
[*] Andrew Levine é professor sênior do Institute for Policy Studies, e autor de THE AMERICAN IDEOLOGY (Routledge) e POLITICAL KEY WORDS (Blackwell), bem como de muitos outros livros e artigos em filosofia política. Seu livro mais recente é In Bad Faith: What’s Wrong With the Opium of the People. Foi professor de Filosofia) na University of Wisconsin-Madison e professor pesquisador (filosofia) na University of Maryland-College Park. Foi também co-autor de Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion (AK Press).
POSTADO POR CASTOR FILHO
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/03/trama-perigosa-os-demonizadores-de-putin.html
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