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sábado, 14 de novembro de 2015
Geógrafo investiga especificidades do SUS 14/11/2015
A tese de Luis Ribeiro lembra que o SUS realiza quase 100% dos transplantes; que os maiores especialistas têm sua formação com recursos públicos; que os melhores centros de pesquisa em saúde ainda são públicos, entre outras especificidades.
Por Luiz Sugimoto, do Jornal da Unicamp, via Jornal GGN
Cultivo de massa verde no Horto Florestal de Fortaleza, no Ceará Recorrendo a conceitos da geografia, tese de doutorado defendida no Instituto de Geociências (IG) demonstra que o território brasileiro é "SUS dependente" e que todas as pessoas aqui residentes, incluindo estrangeiros, utilizam e dependem do Sistema Único de Saúde de uma maneira ou de outra. Foi seu projeto de mestrado sobre um programa municipal de fitoterápicos em Campinas, depois validado como pesquisa de doutorado pela banca de qualificação, que permitiu ao geógrafo Luis Henrique Leandro Ribeiro fazer uma leitura do SUS como um macrossistema de saúde, assim caracterizado pela pluralidade de redes técnicas e políticas, de organizações e centros de comando, de escalas de ação e de fluxos, e pela capacidade de moldar e ser moldado pelas especificidades de cada lugar.
"A assistência médico-hospitalar é apenas um dos componentes deste macrossistema, mas o mais lembrado quando nos referimos a ele, o que leva à equação simplista de que 75% dos brasileiros são ‘SUS dependentes’ e 25% podem pagar planos de saúde; que o SUS é para pobres", observa Luis Ribeiro. "Isso é equivocado, pois a sua leitura como um macrossistema mostra que os procedimentos de alta complexidade, em sua maioria (quase 100% dos transplantes, por exemplo), são realizados pelo SUS; que mais da metade dos médicos trabalha no sistema; que os maiores especialistas têm sua formação com recursos públicos; que os melhores centros de pesquisa em saúde ainda são públicos; e que nas campanhas de imunização e na urgência e emergência o SUS atua hegemonicamente, assim como nas ações de prevenção e atenção primária."
Orientada pelo professor Márcio Cataia e financiada pela Fapesp, a tese intitulada "Território e macrossistema de saúde: os programas de fitoterapia no Sistema Único de Saúde (SUS)" pretende, nas palavras do autor, ler o SUS em suas visibilidades e invisibilidades, tanto no que possui de notável e extraordinário, quanto de corriqueiro e despercebido. "O mote da pesquisa foi compreender como o SUS integra à medicina tradicional diversas práticas de medicina complementar e alternativa – e como o território condiciona e é condicionado pela existência de programas de fitoterapia no sistema. Lembrei-me de um caso de queimadura num posto de Campinas, quando ao paciente foi receitado gel de babosa produzido por uma farmácia de manipulação municipal que serve à rede pública – um dos serviços pioneiros no país."
Com o objetivo de analisar, do ponto de vista da geografia, de que maneira o serviço municipal consegue promover a sinergia técnica entre um saber local e a estratégia política de produção e distribuição de fitoterápicos, Luis Ribeiro investigou 14 programas de fitoterapia e foi a campo em 24 municípios, totalizando 81 entrevistas nas quatro macrorregiões brasileiras. "Seguimos a definição dos ‘quatro Brasis’ de Milton Santos e Maria Laura Silveira, em referência à Região Concentrada (Sudeste e Sul), Centro-Oeste, Nordeste e Amazônica. Esta regionalização se baseia na difusão diferencial do meio técnico-científico-informacional pelo território – modernizações expressas tanto na formação do Sistema Único de Saúde quanto na valorização recente das plantas medicinais e fitoterápicos."
Histórico
Segundo Ribeiro, no bojo da Contracultura dos anos 1960 surgiu um movimento global de valorização do uso de plantas medicinais sob novas bases, intensificado pelo ideário ecologista (Conferência sobre Meio Ambiente de Estocolmo, em 1972), e depois pela Conferência sobre Cuidados Primários em Saúde (1978), que resultou na Declaração de Alma-Ata (Cazaquistão), em apoio à adoção de uma medicina de caráter mais preventivo em sistemas nacionais. No Brasil, as chamadas práticas de medicina complementar e alternativa começaram a ser difundidas nos anos 80, no contexto de redemocratização, quando alguns municípios começaram a adotá-las por conta própria.
Ainda conforme o pesquisador, nos anos 90, após a criação do SUS, registrou-se um aumento no número de programas de fitoterapia. "O programa de Campinas, por exemplo, surgiu das rodas de conversa de uma médica com usuários de posto de saúde, levantando as espécies mais utilizadas e para quais fins. A médica recorria ao CPQBA [Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas] da Unicamp, que fazia a identificação botânica e validava a eficácia e a segurança das plantas. De mais de 60 espécies inicialmente levantadas, cerca de dez obtiveram validação para entrar no sistema."
Luis Ribeiro aponta a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, instituída em 2006, como a grande disseminadora dos programas de fitoterápicos no SUS, que eram 21 em 1997 e saltaram para 346 em 2008 e 815 em 2012. "Um problema é que, na análise qualitativa, identificamos uma fase anterior e outra posterior à política do governo: antes havia cerca de 80% de farmácias municipais de manipulação e 20% de particulares – indicando um predomínio de programas horizontalizados, vinculados a práticas e saberes locais, mais próximos do ideário do movimento da Reforma Sanitária Brasileira que culminou na fundação do SUS."
O geógrafo constatou que na segunda fase esta relação se inverte: em 815 municípios, 80% recorriam a fitoterápicos industrializados e 20% a farmácias municipais, indicando programas mais insensíveis às práticas e heranças dos lugares. "Trata-se de um processo de cooptação desses programas pela racionalidade da biomedicina – aqui entendida não apenas por sua base técnica, científica, clínica e laboratorial, mas também por sua associação com uma corporação de profissionais (no caso, os médicos), grandes empresas (de equipamentos, insumos farmacêuticos e prestadores de serviços) e o Estado. É o que acabou predominando no subsistema de fitoterapia do SUS."
Constrangimentos
O autor da tese ressalta que o modelo para os programas do país é o Farmácia Viva, do Ceará, que se responsabiliza por todas as etapas de produção: cultivo da massa verde, beneficiamento, oficina ou farmácia de manipulação (para pomadas, géis, cápsulas, xaropes) e dispensação. "O professor Francisco Matos idealizou o Farmácia Viva em 1983, a partir do horto da Universidade Federal do Ceará. Ele ficou notório por suas andanças pelo Nordeste, levantando e identificando espécies nas comunidades: juntou a prática e saber local com a capacidade técnica-científica-informacional e as normas."
Entretanto, é raro um programa que consiga cumprir todas as etapas, conforme Luis Ribeiro, que elaborou um quadro sintetizando os "constrangimentos e fatores limitantes à existência do subsistema de fitoterapia no SUS", sendo os principais: descontinuidades e rupturas em função de mudanças no governo municipal e resistência dos gestores e também dos médicos; e falta de controle sobre a matéria-prima e dificuldades de compra e aquisição no mercado dos insumos, devido a fornecedores não capacitados e à qualidade dos produtos. "Dos programas que visitei, grande parte estava desativada pela Anvisa para adequar seus laboratórios às normas."
O geógrafo atenta que mesmo no Estado de São Paulo, que possui as variáveis da técnica, da ciência e da informação mais disseminadas e capilarizadas, enfrentam-se obstáculos para incluir fitoterápicos no sistema público. "É o estado da Região Concentrada onde mais se cria programas – e onde mais se extingue. São Paulo conta com o maior número de universidades e de profissionais formados para práticas complementares, mais de 80% da indústria de fitoterápicos (além de boa fatia da produção de extratos) e os três principais atacadistas de plantas medicinais. Mas se estas variáveis possibilitam uma política de incorporação dessas práticas, ao mesmo tempo verifica-se alta taxa de mortalidade, interrupção ou descontinuidade de experiências."
Invisibilidades
Durante a pesquisa, o autor da tese diz ter identificado dois campos de invisibilidades do SUS, enquanto principal força estruturante do macrossistema de saúde brasileiro. "Um dos campos é a produção deliberada de um SUS que ‘não se vê’, principalmente pelas grandes empresas de comunicação (impressa e televisiva), um certo ‘silenciamento’ da presença do SUS. Outro campo de invisibilidades reside na relativa incapacidade ou limitação do SUS em ler, registrar e incorporar práticas e saberes locais, silenciando sobre essas heranças culturais e institucionais."
O pesquisador observa que ambas as invisibilidades são expressões da dualidade do SUS: duas forças que o movem, sendo uma delas a sua força fundante na Assembleia Constituinte, visando um sistema público e universal de saúde. "O macrossistema de saúde brasileiro é dual, mas não dualista: realiza a saúde como um direito social e o sistema como espaço de transformação política, mas também dá espaço a uma força que realiza a saúde como mercadoria e lócus de acumulação de capital."
Para realizar suas ações foi necessária ao sistema uma base material, como as unidades de saúde, que passaram a existir de forma suficiente e mais integrada no território brasileiro a partir dos anos 1970. A questão é que boa parte desta materialidade está fora do controle direto da gestão única e pública do sistema. "A ditadura militar promoveu intensa transferência desta base hospitalar e ambulatorial para grandes grupos privados. A indústria farmacêutica, parte da materialidade necessária, já era de base privada, sendo que a chegada das multinacionais resultou na internacionalização da produção nos 1950. E os serviços de apoio diagnóstico e terapêutico, surgidos com mais intensidade a partir dos 80, também são majoritariamente privados ou corporativos."
Luis Ribeiro conclui que uma dificuldade do SUS, portanto, é ter parte da base material seguindo uma lógica mercantil, o que se acentuará com a abertura irrestrita da área de serviços e prestadores de saúde ao capital estrangeiro aprovada em janeiro de 2015. "Há uma força de inércia que dificulta a inserção no SUS de práticas não hegemônicas (entre elas a fitoterapia), bem como a sua realização mais plena como projeto de transformação política, o que se deve em grande medida à força hegemônica diretiva do macrossistema: a biomedicina enquanto associação entre corporação médica, grandes empresas e Estado".
Fonte: Saúde Popular
http://www.vermelho.org.br/noticia/272778-10
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