sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Como obter um certificado de democracia 12/02/2016


por Daniel Vaz de Carvalho

1 – O exame

O exame é mediático. Comecemos pela pergunta eliminatória. O examinador (jornalista apresentador) coloca um ar traquina, estilo "com esta é que te vou tramar", e pergunta: "Acha que a Coreia do Norte é uma democracia?".

Não se pode mostrar que se tem dúvidas sobre a ditadura instalada no país. Se responder – como o ex-candidato do PCP, Edgar Silva – que se preocupa com os direitos humanos na Coreia do Norte, como nos EUA, na Arábia Saudita ou em qualquer outra parte do mundo, está eliminado. No dia seguinte, o que quer que tenha enunciado sobre as suas ideias e propostas, sobre as crescentes desigualdades e pobreza no país devido à política de direita, os destaques na comunicação social são que "… tem dúvidas que a Coreia do Norte não seja uma democracia". O que servirá depois para gáudio dos comentadores.

Se na altura do "exame" houver outro participante este deve aproveitar – mesmo que a pergunta não lhe tenha sido feita – para declarar o seu repúdio pelo "regime comunista" da Coreia do Norte e do seu ditador. Pode melhorar a nota mencionando também Cuba, por exemplo. Assim, mesmo que se apresente como "esquerda" ou mesmo "esquerda radical", os mediáticos examinadores dar-lhe-ão os mínimos para ser considerado(a) confiável, ou seja, mais ou menos inofensivo para o que se pretende na educação das massas.

Porém, para passar no exame não basta ser bom aluno, é preciso cair nas boas graças dos examinadores. Assim, para adquirir o certificado e a sua periódica revalidação é tão importante o que se diz como o que se não diz.

O facto de o poder em Kiev estar nas mãos de neonazis apoiados pela NATO não deve ser mencionado. Putin deverá sempre ser referido como ditador e a Crimeia como invadida e anexada. Ter havido um referendo não conta. No Kosovo, sim, contou, tanto mais que os EUA lá instalaram uma base militar, mas é melhor não falar nisso. É também importante achar que para resolver a questão Síria, Bashar-al-Assad deve ser afastado e o poder entregue à oposição "moderada".

Outra pergunta eliminatória consiste em saber se "é a favor da saída do euro". Se disser que o país deve proceder ao estudo e preparar-se para essa situação, reprova. Escusa de insistir ou procurar mostrar-se simpático, prepare-se: as entrevistas vão ser como que interrogatórios e cada resposta contestada.

Dizer que Portugal deve permanecer no euro embora a sua "arquitetura" tenha de ser modificada, permite passar as eliminatórias, obter simpatia mediática e lugar como figurante na farsa do pluralismo vigente desempenhando o seu papel sem pôr em causa o que é fundamental para o sistema.

Contudo para lhe darem este papel, não caia na asneira de defender o controlo público ou a nacionalização dos sectores estratégicos e muito menos de se considerar marxista-leninista, isto é, ter o materialismo-dialético como referência para analisar a realidade, a passada e a presente, bem como as perspectivas de futuro. Se o fizer, será reprovado e qualificado como "estalinista"

2 – Aprofundamento de alguns pontos importantes

É importante repetir como verdade absoluta o que dizem os media de referência. Sendo estrangeiros confere grande autoridade a quem os menciona. Nenhum apresentador se atreverá a discutir o que diz o Financial Times ou o Wall Street Journal. Citar relatórios do FMI ou da CE mostra que se está a lidar com alguém superiormente equipado intelectualmente, mesmo que previsões daquelas entidades tenham estado invariavelmente erradas e as medidas impostas se mostrem contraproducentes.

Mas não se pense que no mundo mediático não há espaço para ser de esquerda ou mesmo "esquerda radical". Portanto, não se desista à partida. Pode ficar-se bem cotado na bolsa mediática se se tiver atenção a algumas questões já aqui citadas. Salientemos duas muito importantes. A Coreia do Norte e o "estalinismo". Para não cometer erros nestas matérias convém ignorar e, se for o caso, repudiar tudo o que se segue.

É a Coreia do Norte uma democracia? A pergunta não faz sentido por duas razões. Primeiro, o interlocutor só aceita como democracia um sistema capitalista parlamentar que não conteste a hegemonia dos EUA; segundo, a pergunta induz à partida que a Coreia do Norte seria o único ou dos únicos países do mundo referenciados como ditadura.

Mas acresce uma outra razão: a Coreia do Norte é um Estado que permanece em guerra com os EUA e a coligação que chefiaram. Apesar das tentativas e propostas da Coreia do Norte para ser assinado um tratado de paz com os EUA que poria fim ao seu programa nuclear, foi sempre recusado. Existe apenas um armistício com os EUA, que portanto se mantém como adversário, dispondo de bases militares e importantes efetivos terrestres, marítimos e aéreos na proximidade das fronteiras da Coreia do Norte.

Nenhum país em estado de guerra é uma democracia e nem é preciso chegar a este ponto. Nos EUA e na UE verificamos que cada vez mais as liberdades democráticas são seriamente cerceadas seja por razões de "segurança" [NR] , seja pelo forçado endividamento e a "austeridade".

Relatos de visitantes e reportagens sobre a Coreia do Norte contrariam o que se propala sobre aquele país. Apesar da hostilidade de que se vê rodeado, os testemunhos dão conta de um governo que se esforça por melhorar a vida dos cidadãos partilhando o seu labor. Cada um ajuíze por si segundo reportagens que com diversas visões contrariam a "narrativa" institucionalizada. [1]

A atual liderança promove uma abertura ao exterior e um grande esforço de desenvolvimento económico, científico e tecnológico, evidente nos seus avanços nas tecnologias aeroespaciais. Uma reportagem dá conta das condições de vida oferecidas a um cientista, curiosamente não ligado à produção militar, mas à biologia.

Existe um líder carismático e é inegável a existência de um culto da personalidade pouco condizente para a mentalidade ocidental – o facto é que no ocidente submetidos às oligarquias não existem líderes dignos deste nome….

A direção política norte-coreana considera que o seu sistema é a forma de manter a soberania do país e não cair nos erros que as cedências ao ocidente produziram na Líbia, no Iraque, na Rússia de Ieltsin, ou a algo como o que ocorre na Síria.

Não desejamos nem propomos nas margens do Tejo um sistema de organização política como o norte-coreano. Porém a Coreia do Norte merece a nossa amizade, solidariedade e admiração pela luta do seu povo na construção pacífica de um Estado plenamente desenvolvido. Assim deixasse de existir o imperialismo e as suas ingerências.

Quanto ao chamado "estalinismo" – o que quer que isto queira dizer aqui e agora – é um conceito inventado pelo antimarxismo para condicionar e desacreditar as teses e a ação dos partidos e movimentos que lutam pela superação da sociedade capitalista e a construção do socialismo. "Estalinista" passou a ser um termo de carácter pavloviano (desencadeamento de reflexos condicionados) muito útil no processo de alienação vigente.

Estaline foi responsável por grandes êxitos do socialismo, mas também erros e abusos que desvirtuaram a democracia socialista. Contudo, comprovadas falsidades sobre aquele período histórico são ampliadas e repetidamente divulgadas. Os crimes do imperialismo e do colonialismo são escamoteados; as situações de repressão motivadas pela cruel guerra de agressão das potências ocidentais 1918 -1921 (dita "guerra civil"), conspiração, sabotagem e terrorismo posteriores, invasão nazi-fascista, são integralmente atribuídas ao socialismo e caluniadas como "estalinismo".

É grosseira violação da verdade histórica ignorar os êxitos da URSS no desenvolvimento económico e social, na construção do socialismo, na luta pela emancipação dos povos e contra o fascismo, durante o período designado "estalinista".

O termo "estalinista é utilizado atualmente pela direita, pela social-democracia, e também por certa esquerda como calúnia contra as teses básicas do marxismo-leninismo, teses que como nenhumas outras defendem e lutam pela paz, pela democracia económica e social e pelas relações de igualdade e não ingerência nas relações entre os povos. O capitalismo mostrou que nada disto é possível no seu sistema, daí ser usado como condicionamento intelectual e comportamental o "estalinismo" – termo sem qualquer relação com a realidade do nosso tempo e do nosso país.

3 – Alguns conselhos adicionais

Quando há factos que se tornam evidentes e mesmo escândalo público, como as alegadas fraudes bancárias no BPN, BPP, BES, BANIF, as acusações devem ser dirigidas a pessoas (administradores, gestores, etc.) nunca denunciando a natureza predatória do sistema capitalista, que esmaga os povos com impostos em benefício de uma minoria que vive da usura, da especulação, da exploração e da austeridade.

A forma escandalosa como foram feitas privatizações e PPPs com prejuízo para o interesse público foi denunciada em relatórios do Tribunal de Contas. O tema foi evitado nos media e abafado pelos múltiplos ruídos em que é fértil. Nestes casos o que se pode criticar não é a intenção de privatizar, mas o Estado e os "políticos", defendendo sempre "menos Estado".

Para obter um certificado com distinção é necessário defender que a "economia de mercado" é a única viável e de sucesso, que o privado é eficiente, que o Estado é mau gestor. Claro que é mau gestor, ao colocar-se ao serviço dos interesses privados (a "economia de mercado") e não dos interesses coletivos e sociais, mas isto não se deve dizer.

Um comentário útil neste processo é exibir "ativo repúdio" pelo "modelo soviético", o que quer que isto seja, e o que tenha a ver com qualquer discussão sobre a situação atual.

Criticar os media e seus comentadores dá direito a reprovação. Se o fizer será sempre tratado como "testemunha hostil". É preciso ser bem comportado(a) e respeitador do seu poder, nunca esquecendo quem os controla. Para não haver descuidos nesta matéria vejamos o que diz quem sabe.

Segundo William Colby, ex-diretor da CIA, "a CIA controla todos os que têm importância nos principais media". "Comprar um jornalista custa mais barato do que uma boa garota, quase duzentos dólares por mês", afirmou um agente da CIA em discussão com Philip Graham, do Washington Post, sobre a possibilidade de encontrar jornalistas dispostos a trabalhar para a CIA.

Serge Halimi, diretor de Le Monde Diplomatique, afirmou que "a informação tornou-se um produto como qualquer outro. Um jornalista dispõe sobre a informação de pouco mais poder que uma empregada de supermercado sobre a estratégia comercial da empresa".

De facto, "a essência dos media não é informação: é o poder" diz John Pilger, acrescentando: "Nos EUA seis mega empresas: GE-(NBC), News Corp (FOX), Dysney, Viacom, Time Warner (CNN), CBS, controlam 90% do que vemos, ouvimos ou lemos; 232 executivos da comunicação social prescrevem a dieta informativa dos norte-americanos. A faturação destes seis grupos em 2010 foi de 275,9 mil milhões de dólares."

O fundador da Seara Nova, Raul Proença, escrevia em 1928: "Chama-se liberdade de imprensa, o direito exclusivo que têm certos potentados ou certos malfeitores, graças à sua fortuna ou às suas chantagens de influir na opinião do país."

Muito assertivo, Paul Craig Roberts classifica os media como os "presstitutos" e resume esta questão: "Nos dias de Marx, a religião era o ópio das massas. Hoje são os media." Dizia Marx em carta para o seu amigo Ludwig Kugelmann: "E para que outra coisa são pagos os tagarelas sicofantas que não sabem jogar nenhum outro trunfo científico a não ser que, em suma, na economia política não é permitido pensar?"

Nos media proliferam os "comentadores". A designação é consequente. De facto, na Idade Média, na escolástica, não havia investigadores, apenas "comentadores" de textos assimilados como dogmas. E ai daqueles que os contestassem…

Atualmente os "comentadores" de serviço ao sistema são a clerezia do neoliberalismo e suas instituições, FMI, BCE, CE: a troika dos interesses oligárquicos. Podem passar horas em monocórdicas charlas sobre a submissão às inquestionadas "regras da UE" e a conformidade com a dogmática neoliberal.

Queixam-se que a "reestruturação" não foi feita, mas as causas que originam e agravam as crises não são averiguadas: tudo o que sai fora do nihil obstat neoliberal é dado como não existente, blasfemo ou herético... Aqui se chegou. [1] www.rt.com/shows/documentary/203135-north-korea-kim-jongun/
www.rt.com/news/329192-north-korea-peace-demands/
eoriasdarevolucao.blogspot.pt/2014/11/152-imagens-que-provam-que-coreia-do.html
www.rt.com/news/329192-north-korea-peace-demands/

[NR] Em França, o parlamento acaba de inserir o "estado de urgência" na Constituição, cerceando direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Utilizaram como pretexto atentados recentes, de acordo com a receita americana: a implosão de edifícios do World Trade Center em 11/Set/2001 permitiu aprovar de imediato a legislação repressiva que fora previamente elaborada.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/



http://resistir.info/v_carvalho/como_obter_um_certificado_de_democracia.html

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