terça-feira, 7 de maio de 2019

A liberdade capitalista é só encenação, por Rob Larson


13/3/2019, Rob Larson,* Jacobin Magazine
Milton Friedman errou. O capitalismo não promove a liberdade. Só promove locais de trabalho que são autocracias e bilionários tirânicos [além de goiabeiras, Damares, pistoleiros e tarados elegíveis em geral (NTs)].
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Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga



Consideradas todas as mudanças dos últimos 50 anos, é surpreendente que os clássicos conservadores tenham mantido tão alto prestígio. Capitalismo e Liberdade, de Milton Friedman e A estrada da Servidão de Friedrich Hayek ainda são oferecidos na livraria online de Breitbart. Rush Limbaugh diz aos seus ouvintes que “Milton Friedman deve ser a Bíblia para os jovens e para todos que tentem entender o capitalismo e os livres mercados.” Charlie Kirk, fundador de Turning Point USA, celebra Hayek e Friedman em seu livro, e Ben Shapiro cultiva Friedman como ícone conservador na National Review.[1] 

Mas o que, então, são a liberdade e garantia de direitos [orig. liberty and freedom] que os conservadores celebram? E o capitalismo? Promove ou restringe tudo isso?

"Garantir direitos" é tido em alta conta, porque, de algum modo, cobre todos os prazeres da vida – é a capacidade para fazer o que se queira, dentro dos limites das condições materiais e no tempo que nos é dado viver. Mas o modo como você gosta de passar seu tempo, quem você ama ou com quem você trabalha, ou com quem você ri, tudo isso representa também o tremendo valor do gozo de direitos sociais.

Para John Stuart Mill, o princípio básico do gozo de direitos era que "o único objetivo para o qual o poder pode exercer-se corretamente sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a vontade dele, é impedir o dano a outros.” O filósofo Isaiah Berlin, adiante, descreveu essa ideia como "liberdade negativa" ou ser livre de coerção. Berlin também sugeriu uma "liberdade positiva" – liberdade para fazer coisas diferentes, não apenas "ser livre das escolhas de outros". Em vez de perguntar "Que centros de poder me controlam,” a liberdade positiva pergunta "O que sou livre para fazer com as oportunidades e recursos do mundo?”

A visão filosófica tradicional do capitalismo é que embora não ofereça "liberdade positiva" de acesso a uma porção justa da produção mundial de bens, o capitalismo oferece "liberdade negativa" da tirania econômica, deixando consumidores e trabalhadores livres para escolher entre vários itens. É a visão de Friedman e Hayek, e eles insistem em que esse seja o tipo certo de liberdade. Muitas gerações de defensores do capitalismo concordaram.

Mas qualquer revisão realista da economia de mercado mostra quadro muito diferente: o capitalismo limita os dois tipos de liberdade, a liberdade positiva e também a liberdade negativa. O capitalismo favorece uma acumulação monstro de poder privado, ao concentrar a riqueza individual e ao blindar completamente o controle que as empresas exercem sobre os mercados (além de destruir sem piedade os sistemas ambientais e, assim, qualquer possibilidade de liberdade para futuras gerações). O capitalismo não fracassa apenas ao não garantir "liberdade positiva" de acesso a fatia justa da economia; fracassa também ao não proteger a "liberdade negativa" contra os jogos de poder da propriedade corporativa do 1%.

Quando GM e Ford decidiram desertar de cidades como Detroit e Flint, mudando-se para cidades e países mais pobres, negaram à sua antiga força de trabalho qualquer liberdade positiva para gozar dos enormes ganhos da indústria — ganhos que os próprios trabalhadores geraram. 

Quando a indústria farmacêutica de Martin Shkreli aumentou o preço de uma droga patenteada necessária à manutenção da vida, de $13,50 para $750, efetivamente impedindo que pessoas acometidas daquela específica doença tivessem acesso à medicação, empurrou esses doentes para a miséria ou para a bancarrota –, o que configura assustadora restrição da liberdade negativa. 

Quando a empresa Amazon organizou um concurso para decidir que cidade dos EUA seria abençoada com a construção de sua nova sede, e prefeitos em todo o continente abriram mão de bilhões criando novas isenções de impostos e jogando fortunas aos pés da empresa, a empresa Amazon acumulou para si poder monstro sobre o destino de milhões de pessoas – o que expôs, perfeitamente a nu, o quanto as decisões capitalistas de investimentos podem limitar dramaticamente a liberdade humana.

Defensores do capitalismo insistem que, como Friedman e a esposa Rose escreveram em seu livro Livre para Escolher, “Quando você entra numa loja, ninguém o força a comprar. Você é livre para comprar ou sair da loja... Você é Livre para escolher.” Aplicaram o mesmo argumento aos trabalhadores: se você não gosta do seu trabalho ou carreira, ache outro.

Mas outras figuras viram de modo muito diferente a alegada liberdade negativa do mercado. Considere Frederick Douglass, o escravo fugido e intelectual autodidata. Douglass concluiu:

A experiência demonstra que pode haver uma escravidão de salários só um pouco menos cruel e devastadora em seus efeitos que escravidão de corpos, que escraviza pais e filhos e netos, e essa escravidão de salários é metida goela abaixo com a primeira (...). O homem que tenha o poder de dizer a outro homem "Você tem de trabalhar a terra para mim, em troca do salário que eu decidi pagar", tem um poder de escravizador sobre o outro igualmente real, se não tão completo, como o agente com poder para obrigar a trabalhar sob chicote. Tudo que um homem tenha, ele entregará para salvar a vida.

Aí Douglass sugeria que os mercados permitem o exercício do poder menos fiscalizável e menos fiscalizado – o poder inimigo da liberdade de usufruir de direitos. Mas como uma pessoa livre poderia ser "escravizada" aos salários, havendo tantas diferentes opções para comprar diferentes bens e encontrar diferentes carreiras?

Uma das respostas, como críticos do capitalismo têm dito ao longo de séculos, é que mercados concentram-se e muito frequentemente tendem ao monopólio. Desde os bem conhecidos monopólios da Idade do Ouro no petróleo e no aço, até as gigantes do Vale do Silício hoje, a dinâmica do capitalismo gera inacreditáveis concentrações de poder privado.[2] E se há leis antitrustes que visam a limitar esses monopólios, verdade é que, como disse o eminente economista Alfred Chandler, há muito tempo, comentando a Lei Sherman de 1890, no melhor dos casos essas leis tendem a "criar oligopólio onde antes houve monopólio e a dificultar que o oligopólio torne-se outra vez monopólio.” Grande concentração de poder não fiscalizável e não fiscalizado: desse estofo se faz o capitalismo maduro, não de mercados bondosos das fantasias dos Friedmans.

O ponto mais forte de Douglass, contudo, foi ver e declarar que as economias de mercado tratam as necessidades básicas como mercadorias a serem compradas e vendidas, inclusive comida e teto. O capitalismo empurra as pessoas a encontrar trabalho nos mercados de trabalho em termos tais, que a única coisa que podem fazer é deixar-se esmagar pelo poder tirânico de abusadores capitalistas autoinflados, dos Rockefellers aos Bezos.

Esses abusadores infringem radicalmente a liberdade negativa e a liberdade positiva. Para conseguir o rudimentos da sobrevivência, muita gente tem de se submeter à violenta ditadura das modernas das fábricas contemporâneas — aos horários sempre variados, à revista na sala onde as pessoas trocam de roupa, às restrições à liberdade de manifestar o próprio pensamento. Não surpreende que Douglass tenha acrescentado: “À medida em que o trabalhador tornar-se mais inteligente, desenvolverá o que o capital já tem – vale dizer: o poder de organizar-se e combinar-se para autoproteção.” A organização coletiva de trabalhadores – bicho-papão temido dos capitalistas violentos como Friedman — sempre foi a única garantia de liberdade para exercer direitos.

Mas... calma! Friedman & Co. dizem que têm um ás na manga: "Dado que a família sempre tem a alternativa de produzir diretamente para o auto-sustento" – escreveu em Capitalismo e Liberdade, “ninguém é obrigado a participar de nenhum tipo de troca, a menos que se beneficie da troca". O poder de “sair” controla(ria) o poder potencialmente coercitivo do mercado de trabalho.

Problema é que a 'família média' de Friedman é quadro tão róseo, que beira o delírio. E Friedman recusa-se a reconhecer que produzir bens inevitavelmente demanda capital, ferramentas e equipamentos.

E o capital é monstruosamente concentrado. Thomas Piketty, estudioso da desigualdade, descobriu que os 10% mais ricos dentre os lares nos EUA são donos de 70% de toda a riqueza nacional; 35% dessa riqueza está concentrada no 1% do topo da pirâmide. Importante não deixar passar sem ver é que empresas por ações, que respondem pela propriedade do capital produtivo necessário para que o povo consiga "produzir sozinho, para si mesmo" são igualmente super concentradamente poucas: as 5% famílias mais ricas concentram 67% de todas as ações que há nos EUA, segundo o Economic Policy Institute.

Sabe-se lá como, esse ganhador do Prêmio Nobel, professor da Chicago School, consegue não ver que o indivíduo médio – o indivíduo em torno do qual toda a filosofia dos Friedman supostamente se ergueria — é prisioneiro e refém dos desígnios dos donos da economia produtiva, que podem decidir o quanto desgraçada será nossa vida, e que cidades serão autorizadas a ter futuro econômico. Do tempo de descanso à ergonomia, à licença-maternidade e aos assuntos admitidos no local de trabalho, a camada superior manda e desmanda e zomba descaradamente da "liberdade capitalista".

A esquerda liberal [ing. "liberals], por sua vez, está sempre a postos para 'exigir' mais "liberdade positiva" sob a forma de direitos à assistência pública à saúde, à educação e a viver em ambiente saudável. Mas muito mais ganharia se exigisse controle democrático sobre investimentos e produção, modelo muito mais interessante e promissor de liberdade, porque o controle alcançado pelo empregado substituiria o motor 'lucro' do capitalismo, por solidariedade – essa, sim, impulso para cada um apoiar seu próximo e colaborar com ele, homens e mulheres.

Se o fizesse, estaria pondo fim ao poder das empresas gigantes para aleijar cidades inteiras, simplesmente por se mudar para outro país, ou para desgraçar a vida dos seus empregados, aumentando as cotas de produção ou super vigiando cada movimento dos empregados. Decisões tomadas por cooperativas de empregados, eleitos e sujeitos a serem trocados pelos colegas, poderiam ser uma matriz de solidariedade social, o que limitaria significativamente o poder destrutivo a que todos estamos acostumados, no mundo empresarial de hoje.

Nós, da esquerda-esquerda não podemos entregar à direita o discurso da liberdade para exercer direitos. Ter análise crítica da empresa capitalista é excelente, mas os socialistas temos também de promover o potencial transformador da liberdade socialista — seja para inspirar para o duro trabalho necessário para mudar o mundo, seja para dar um norte às nossas lutas.

Em  Caminho para a Servidão, Hayek resmunga, lamentando que "a promessa de maior liberdade tornou-se uma das armas mais efetivas da propaganda socialista". Só nós não sabemos?!*******


* Rob Larson é professor de Economia no Tacoma Community College e autor de Capitalism vs. Freedom: The Toll Road to Serfdom [Capitalismo x Liberdade: pedágio na estrada para a servidão].
[1] Hayek é leitura que Steve Bannon anda pela Europa a recomendar a Martine Le Pen e a Salvini. Ver "A fala de Steve Bannon que uns amam, outros odeiam e ninguém ouviu. Discurso de Steve Bannon ao Congresso da Refundação do Front National, de Marine LePen", 19/3/2018, vídeo, 35”54’, traduzido no blog O empastelador [NTs].
[2] Sobre um dos casos mais inacreditáveis de concentração de poder privado em toda a história do mundo, vide o que diz a professora Maria Lúcia Fattoreli  no Duplo Expresso de Domingo, 17/3/2019 (assistam todo o programa), sobre o poder dos bancos no Brasil do golpe, com destaque para a ação do Banco Central de Meirelles e Ilan Goldfayn, como 'esteio' do poder dos bancos privados tanto em tempos de 'democracia' como hoje, sob golpe [NTs]. 

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