21/3/2012, Coordination des Intermittents et Précaires 
de Île de France
Introdução a “La fabrique de l’homme endetté, essai sur la 
condition néolibérale”, Maurizio Lazzarato*
Traduzido pelo 
pessoal da Vila Vudu
“O 
endividamento do Estado é, bem ao contrário, de interesse direto da fração da 
burguesia que governa e legifera nos Parlamentos. O déficit do Estado era, 
precisamente, o objetivo ao qual visavam às especulações e principal base do 
enriquecimento daquela fração. Ao final de cada ano, um novo déficit [1]. Ao cabo de quatro ou cinco anos, 
novo empréstimo. Ora, cada novo empréstimo dava à aristocracia nova ocasião para 
cobrar resgate para “salvar” o Estado, o qual, mantido artificialmente à beira 
da bancarrota, era forçado a negociar com os banqueiros sob condições as mais 
desfavoráveis. Cada novo empréstimo era nova ocasião para roubar o público que 
aplica seus capitais em papéis do Estado...” 
(MARX, Karl. Les luttes de classes en France 
[jan.-nov./1850]**).
“As 
saídas da crise estão fora dos caminhos traçados pelo FMI. Essa instituição 
propõe sempre o mesmo tipo de contrato de ajuste fiscal, que consiste em 
diminuir o dinheiro entregue às pessoas – salários, aposentadorias, pensões, 
auxílios públicos, mas também às grandes obras públicas que geram empregos – 
para consagrar ao pagamento dos credores todo o dinheiro economizado. É absurdo. 
Depois de quatro anos de crise, não se pode continuar a entregar o dinheiro 
sempre aos mesmos. Ora, é exatamente o que, hoje, querem impor à Grécia! 
Diminuir tudo, para entregar aos bancos. O FMI está se transformado em 
instituição encarregada de proteger, exclusivamente, os próprios interesses 
financeiros. Quando se está numa situação desesperada, como estávamos na 
Argentina, em 2001, é preciso mudar de rota.” 
(LAVAGNA, Roberto. 
Ministro da Economia da Argentina entre 2002 e 2005).
Menos 
de 20 anos depois da “vitória definitiva contra o comunismo” e 15 anos depois do 
“fim da história”, o capitalismo está num impasse. Desde 2007, vive de injeções 
de somas astronômicas de dinheiro público. Apesar disso, gira no vazio. No 
máximo, reproduz-se ele mesmo, destruindo, com raiva, todas as conquistas 
sociais dos dois últimos séculos. 
Depois 
da “crise das dívidas soberanas”, o capitalismo exibe um espetáculo às vezes 
hilariante do próprio funcionamento. As normas econômicas de “racionalidade” que 
os “mercados”, as agências de risco e os especialistas impõem aos Estados para 
sair da crise da dívida pública são as mesmas que levaram à crise da dívida 
privada (que está na origem da dívida pública). 
Os 
bancos, os fundos de pensão e os investidores institucionais exigem que os 
Estados ponham em ordem os orçamentos públicos, dado que os bancos ainda têm em 
carteira milhões de títulos podres, frutos de sua política de substituição de 
salários por dívidas [2]. 
Depois 
de dar nota AAA a títulos que hoje valem nada, as agências de risco trabalham 
para, contra todas as evidências, impedir a boa avaliação e as boas medidas 
econômicas [3]. 
Os 
especialistas (professores de economia, consultores, banqueiros, serventes do 
Estado e outros) – nos quais a cegueira sobre os estragos que a autorregulação 
dos mercados e da livre concorrência provocam na sociedade e no planeta é 
proporcional ao servilismo intelectual – foram catapultados para postos 
“técnicos” de governo que lembram irresistivelmente “os comitês de comércio da 
burguesia”. Trata-se mais de novas “técnicas de governo” – autoritárias e 
repressivas, em ruptura com o “liberalismo” clássico –, que de “governos 
técnicos”. 
O 
prêmio do ridículo máximo cabe à imprensa, a chamada “mídia”, os veículos, mais 
que os “meios”. A “informação” distribuída por noticiários de televisão e 
entrevistas [talk shows] explica que “a crise é culpa de vocês [público 
audiente, telespectador e leitor pagante], que se aposentam cedo demais, que 
consultam médicos sem necessidade, que trabalham pouco e por pouco tempo e 
querem trabalhar cada vez menos e por menos tempo que o necessário; vocês não 
são flexíveis e desgastam-se depressa demais. Vocês, afinal de contas, são 
culpados por consumir pouco e viver abaixo dos próprios meios”. 
Por 
sua vez, a publicidade – diferente dos discursos em que se culpam os 
economistas, os especialistas, os jornalistas e os políticos – diz exatamente o 
contrário ao público telespectador, audiente e leitor: “Você é imaculadamente 
inocente. Você não tem responsabilidade alguma! Não há mácula, nem vestígio de 
sentimento de culpa ou de responsabilidade, na sua alma pura. Você merece tudo, 
sem exceção, sem interrupção, tudo de todos os paraísos das nossas mercadorias. 
De fato, é dever seu consumir, consumir, consumir compulsivamente”. 
Farejam-se 
de longe as “ordens” [os imperativos: “faça”, “compre”, “procure” etc.] e 
injunções dos significantes semióticos da culpa/ culpabilização/ culpabilidade [4] e das semióticas icônicas e 
simbólicas da inocência. Por um lado, a moral ascética do trabalho e da dívida; 
por outro, a moral hedonista do consumo de massa. E ambas se contradizem 
abertamente, sem alcançar qualquer composição. 
Mais 
do que sugerir alguma saída da crise, essa agitação assemelha-se mais a um 
círculo vicioso no qual o capitalismo parece emparedado. A visão de nossas 
elites jamais ultrapassa o próprio bolso e deve-se esperar o pior. A ferocidade 
com que os governos ditos “técnicos” e os outros lutam para obterem pagamentos 
do que emprestaram e para defenderem a propriedade não recuam ante nada e 
ninguém. 
Segundo 
o New-York Times, representantes dos bancos e fundos credores da dívida 
grega tentaram apresentar queixa à Corte Europeia dos Direitos do Homem. O 
estado grego teria violado direitos fundamentais, porque “property rights are human rights” 
[direitos de propriedade são direitos humanos]. Até a recessão e a depressão na 
Grécia são pequenos males, ante a não quitação do dinheiro devido. 
Em 
entrevista recente, o presidente do Banco Central Europeu recomenda, com cinismo 
thatcheriano, receitas, para 
reembolsar os credores, que, não só causaram a crise, mas que ainda podem 
agravá-la: baixar impostos para enriquecer os ricos e reduzir despesas sociais 
para empobrecer os pobres. 
Os 
políticos nada são além de contadores e office-boys do capital. Sarkozy 
propôs que as receitas para pagar “os juros da dívida grega seja depositados 
numa conta bloqueada, que garantiria que as dívidas de nossos amigos gregos 
serão honradas”. Favorável a essa ideia, Angela Merkel acredita que a medida 
permitirá “ter certeza de que esse dinheiro permanecerá disponível por longo 
tempo”. 
Se 
há constante no capitalismo, é o estado de guerra ao qual o liberalismo sempre 
leva, de modo quase “automático”. A guerra intercapitalista parece hoje menos 
intensa que a guerra que cada capital nacional combate contra seu “inimigo 
interno”. Sem acordo sobre como dividir o bolo da exploração global, os 
diferentes capitalismos convergem, no que tenha a ver com maneiras de 
intensificar a exploração no plano de cada Estado. 
Para 
sair da crise, é hora pois de “reformas estruturais”: regular a finança? 
Redistribuir a riqueza? Reduzir as desigualdades, a precariedade, o desemprego? 
Fim da “assistência” escandalosa garantida pelo Estado-providência, quer dizer, 
dos presentes (isenções) fiscais aos ricos e às empresas? As “reformas 
estruturais” das quais se cogita e fazem-se são de dois tipos: restruturação 
drástica do mercado de emprego, acompanhada de redução de salários e cortes 
vigorosos nos gastos sociais, como sempre, a começar, sempre, pelo 
seguro-desemprego [5]. O modelo de 
referência é o modelo alemão. 
Em 
recente entrevista à televisão, Sarkozy [6] citou 
nove vezes o exemplo alemão; e o governo “técnico” de Mario Monti foi 
enfeitiçado pela neodama-de-ferro, da qual recebe “conselhos” (ordens) com 
frequência. 
O 
modelo alemão 
Há 
dez anos, a Alemanha persevera em políticas de flexibilização e de precarização 
do mercado de trabalho, e de cortes nos Welfare State. No parlamento 
europeu, Daniel Cohn-Bendit interpelou Angela Merkel : “Como é possível que um 
país rico, como a Alemanha, tenha 20% de pobres?” [7]. O ex sessenta-e-oitista é tolo, ou 
amnésico? Ainda mais hipócrita e cínico, porque é o governo “vermelho-e-verde” 
de Schröder o qual, entre 2000 e 2005, introduziu todo o conjunto básico de leis 
que estão na origem da situação que hoje se vê: quando de “pleno emprego 
precário”, que converteu desempregados e “inativos” numa impressionante massa de 
“trabalhadores pobres”. 
Um 
pouco de história e alguns dados são indispensáveis para trazer à luz o modelo 
alemão que a Troika (Europa, FMI e BCE) empenha-se hoje para impor a 
todos os países europeus. 
Entre 
1999 e 2005, o governo “vermelho-verde”, apoiado no “Fördern und fordern” 
[promover e exigir], promoveu quatro reformas no seguro-desemprego e no mercado 
de trabalho (as quatro Leis Harzt), cada uma delas especialmente catastrófica. 
Em 
janeiro de 2003, 
a Lei Harzt II introduziu os contratos “Mini-job” 
[mini-tarefa], que são uma espécie de trabalho escravo legal (a lei dispensa os 
empregadores das contribuições sociais e não garante nem aposentadoria nem 
salário-desemprego aos trabalhadores) e “Midi-job” [midi-tarefa], com 
salários entre 400 e 800 euros/mês, para “estimular” todos a converterem-se em 
“empresários” da própria miséria. 
Em 
janeiro de 2004, 
a Lei Hartz III reestruturou as agências nacionais e 
federais de emprego, para ampliar o controle e acompanhar a vida e o 
comportamento dos trabalhadores pobres. Construídos esses dispositivos de 
governo impostos aos trabalhadores pobres, o governo “vermelho-verde” aprovou 
várias leis para “produzir” número cada vez maior de pobres. 
Entrada em vigor 
dia 1/1/2005, a Lei Hartz IV prevê:
1. - Redução da duração 
dos benefícios, de três anos, para no máximo um ano; endurecimento das condições 
de admissão ao trabalho e dever de aceitar emprego proposto. Para ter direito ao 
seguro-desemprego, exige-se um mínimo de 12 meses de trabalho nos dois anos 
anteriores à perda do emprego. Depois de um ano recebendo o seguro-desemprego, o 
desempregado recebe uma ajuda social de 374 euros. Relatório da Agência Federal 
de Empregos indica que um, dentre quatro trabalhadores que perdem o emprego 
passam a receber diretamente só a ajuda social (Arbeitslosengeld 
II, 
ALG 
II) e nem chegam a 
passar pelo seguro-desemprego (ALG I). Motivo disso é o tipo de emprego 
que o trabalhador perdeu: precário ou mal pago. 
2. - Redução dos 
benefícios pagos aos desempregados de longa duração que se recusem a aceitar 
empregos abaixo da própria qualificação. 
3. - Os desempregados 
têm de aceitar postos que paguem salário de 1€/hora (superior ao 
seguro-desemprego que recebem). 
4. - Passa a ser 
possível reduzir o benefício de desempregados que tenham contas-poupança; para 
essa “investigação”, criou-se lei que assegura acesso às contas bancárias dos 
“assistidos”; passa a ser possível também que o estado decida o tipo de 
apartamento onde cada “assistido” tem direito de morar; sendo o caso, o estado 
pode exigir que o “assistido” mude-se.
Estima-se 
que 6,6 milhões de pessoas – entre as quais 1,7 milhões de crianças – sejam 
beneficiários do auxílio social formatado pela Lei Hartz IV. Os 4,9 milhões de 
adultos são, de fato, trabalhadores pobres, empregados durante menos de 15 
horas/semana. Em maio de 2011, as estatísticas mostravam que havia 5 milhões de 
Mini-jobs, com aumento de 47,7%, depois de um boom 
Midi-jobs que alcançou 134%. 
Essas formas de 
contrato são também muito numerosas entre os aposentados: 660 mil aposentados 
combinam a aposentadoria e um Mini-job [8]. Parte importante da população, 
21,7%, trabalhou só em meio-período, em 2010. 
A 
agência alemã Destatis (equivalente ao Instituto Nacional de Estatísticas e 
Estudos Econômicos, INSEE francês) mediu o aumento da precariedade na 
Alemanha e das formas que ela recobre: entre 1999 e 2009, todas as formas 
atípicas de trabalho aumentaram, no mínimo, 20% [9] . Os dois grupos mais atingidos são 
as famílias monoparentais (com mulheres como chefe-de-família) e os velhos. Sob 
condições do atual pleno emprego precário, a taxa oficial de desemprego, 
divulgada como ‘prova’ do “milagre econômico alemão” pouco significa! 
Em 
rápida expansão, esse exército de trabalhadores pobres não é composto 
exclusivamente de empregados a título precário, mas também de trabalhadores sob 
Contrato por Tempo Determinado e de jornada integral. Em agosto de 2010, 
relatório do Instituto do Trabalho da Universidade de Duisbourg-Essen 
estabelecia que, na Alemanha, mais de 6,55 milhões de pessoas recebem menos de 
10 euros brutos/hora – mais de 2,26 milhões de trabalhadores a mais, que há dez 
anos. São, na maioria, desempregados há mais tempo, que o sistema Hartz 
conseguiu “ativar”: de menos de 25 anos, estrangeiros e mulheres (69% do 
total).Além disso, em Outre-Rhin, 2 milhões de empregados recebem menos de 6 
euros/hora; e na ex-RDA, muitos são os que sobrevivem com menos de 4 euros/hora, 
quer dizer, menos de 720 euros/mês, para jornada de tempo integral. Resultado: 
os trabalhadores pobres são cerca de 20% dos empregados alemães. 
Durante 
a crise financeira, o governo recorreu massivamente ao desemprego parcial, que 
permite que as empresas paguem apenas 60% da remuneração normal aos assalariados 
e fiquem dispensadas de pagar metade das contribuições sociais. 
Outra 
consequência das políticas de Schröder, desde 2002: o total de salários caiu 
para menos de 5% do PIB. 
As 
mudanças introduzidas pelos “vermelho-verdes” são qualitativas: depois de anos 
de desenvolvimento caótico e selvagem da precariedade, dos subempregados e dos 
subassalariados, chegou a hora de introduzir alguma regulação e alguma 
racionalização da miséria e da precariedade. Constituindo um “verdadeiro” e 
“coerente” mercado de emprego dos “mendigos”, empurram agora também os mais bem 
empregados na direção da “flexibilidade” e da razão economicista. Todo o 
universo da população, precários, trabalhadores pobres, trabalhadores 
qualificados, todos tornam-se flutuantes, prontos a serem flexibilizados para 
sempre. Os diferentes vetores que compõem a “força de trabalho” social já não 
passam de simples variável de ajustamento da conjuntura econômica. 
O 
programa “vermelho-verde” faz por merecer o nome. Segundo a Agenda 2010 [10], 10 anos depois da primeira Lei 
Hartz os resultados são mortais. E não se trata de simples metáfora! A esperança 
de vida para os mais pobres – menos de 2/3 da renda média – recuou, na Alemanha: 
para os de baixa renda, caiu, de 77,5 anos em 2001, para 75,5 anos em 2011, 
segundo estatísticas oficiais; nos Lander do leste do país, a situação é 
ainda pior: a esperança de vida caiu, de 77,9 anos, para 74,1 anos. 
A 
Alemanha é o primeiro país europeu a seguir os EUA na via do progresso liberal. 
Mais duas décadas de esforços para “salvar o regime de aposentadorias” e a morte 
coincidirá exatamente com a idade da aposentadoria [11]. A guerra interna também tem seus 
“ataques cirúrgicos” disfarçados. Mantidas as demais condições, na antiga 
Alemanha Ocidental, a expectativa de vida logo chegará aos 66 anos, e a morte 
chegará bem a tempo de tornar desnecessária a aposentadoria. Mors tua, vita 
meã (tua morte é minha vida). E que importa, se a economia está “saudável”, 
as agências de risco dão-lhe boas notas, os credores vão bem de saúde e a 
expectativa de vida dos mais ricos não para de aumentar. 
É preciso saber um pouco sobre 
Peter Hartz [A], que está na 
origem das leis do seguro-desemprego e da ajuda social. O “caso Hartz” é exemplo 
da “corrupção” co-substancial ao modelo neoliberal. Peter Hartz, ex-diretor de 
Recursos Humanos da Volkswagen e moralizador-chefe dos Anspruchdenker 
[“os que se aproveitam do sistema”]. Descoberto e acusado, confessou haver pago 
propinas a Klaus Volkert, ex-presidente da Comissão de Empresas da Construção 
Automobilística, em troca de prostitutas e viagens exóticas. [Em 2005] Foi 
condenado a dois anos de prisão com direito a sursis e multa de 576 mil 
euros. Klaus Volkert, por sua vez, foi levado aos tribunais por incitação ao 
abuso de confiança; Klaus-Joachim Gebauer, diretor de pessoal da Volkswagen, foi 
acusado de cumplicidade nos mesmos crimes. 
Fazer 
da propriedade e da precarização uma variável estratégica da ‘flexibilização’ do 
mercado de trabalho: eis a política implantada na Itália, em Portugal, na 
Grécia, na Espanha [12], na 
Inglaterra e na Irlanda. 
A 
“reforma” do mercado de trabalho que o governo “técnico” italiano está hoje 
trabalhando para implantar é diretamente inspirada no modelo alemão. 
A ministra do 
Trabalho e Bem-estar da Itália, Elza Fornero, já o disse claramente ao jornal 
Stampa, dia 4 de março. A leitura da realidade dramática vivida pela 
maioria dos assalariados e da população alemã, expressa na novilíngua usada pela 
“governança”, é obra-prima de hipocrisia e cinismo:
“O exemplo mais próximo de uma 
reforma geral do mercado de trabalho e de proteção social – deixando-se de lado 
o processo em curso na 
Espanha – é o que tivemos na Alemanha, há dez anos, quando o 
país era considerado “o doente da Europa”, incapaz de crescer e superar o trauma 
da reunificação. As reformas alemãs atingiram todos os aspectos do mercado de 
trabalho e bem-estar: aprimoramento dos instrumentos de formação profissional, 
apoio aos menos favorecidos para que participem do mercado de trabalho e 
emprego, mesmo parcialmente; ligação mais forte entre o direito de gozar 
tratamento privado e a efetividade da ação de requalificação e de busca de 
trabalho; desenvolvimento da atividade de centros para o emprego; introdução de 
mais flexibilidade também mediante novos tipos de contratos, que independem de 
negociação entre empresa e empregado.” [B]
Sob a chantagem da dívida, o 
Estado quer completar a mudança iniciada nos anos 1980s: do bem-estar social 
(direitos e serviços sociais), da legislação para a força de trabalho 
(subordinar as políticas sociais à disponibilidade e a flexibilidade máximas de 
um “pleno emprego precário”). A virada autoritária do neoliberalismo está em 
vias de pôr fim ao “modelo social europeu”, porque, como diz o inenarrável Mario 
Draghi, não é admissível sustentar “gente que não trabalha”. [C] 
A 
Renda de Solidariedade Ativa (RSA) francesa, produzir o “trabalhador assistido” 
A 
França também está engajada nesse terreno, embora os resultados não sejam tão 
visíveis como na Alemanha. Graças mais uma vez a homem de centro-esquerda, 
Martin Hirsch, empregado, dessa vez, por presidente de direita, estamos vendo a 
experiência de converter um magro direito a alguma renda, a Renda Mínima de 
Inserção, 417 euros por pessoa, em máquina de produzir trabalhadores pobres. A 
Renda Mínima de Inserção (RMI) foi convertida em RSA: Renda de Solidariedade Ativa. 
Mediante 
essas técnicas para governar pobres fazem-se testes dos dispositivos de poder e 
controle que, em seguida, são estendidos para o conjunto da sociedade. Tudo 
isso, contudo, parece deixar indiferentes a esquerda e os sindicatos. 
A 
instauração da Renda de Solidariedade Ativa (RSA) prolonga e amplia a superação 
dos dualismos fordistas, em operação já há 30 anos. As dualidades 
desemprego/emprego, salário/benefícios, direito ao trabalho/direito à segurança 
social, lei/contrato já não se aplicam; a Renda de Solidariedade Ativa organiza 
a imbricação de todas essas dualidades e o agenciamento delas, na figura do 
trabalhador pobre. 
Basta 
considerar o crescimento espantoso do número de “desempregados, ativos em meio 
período” (cerca de 40% dos desempregados que receberam seguro-desemprego, por 
exemplo), quer dizer, inscritos como desempregados, indenizados por um ou outro 
dispositivo, por serem desempregados, e empregados por uma ou outra empresa. O 
deslocamento do dualismo emprego/desemprego e de suas fronteiras, já estava 
muito claramente visíveis. 
Por 
sua vez, a Renda de Solidariedade Ativa institui o novo estatuto perene do 
trabalhador assistido, ou acumulam-se salários de atividade e uma fração da 
renda chamada “de solidariedade”. Na sequência dessa diluição dos limites entre 
as figuras do “assalariado” e do “assistido”, que tornam caducas as fronteiras 
entre emprego, desemprego e ajuda social, ou entre Direito do Trabalho e Direito 
da Securidade Social, a Renda de Solidariedade Ativa condiciona um enésimo 
segmento do mercado de trabalho, uma nova norma para o subemprego e para o 
subsalário. A adoção desse dispositivo indica, implicitamente, o abandono 
oficial da meta de pleno emprego e sua troca por uma política da “plena 
atividade” – concebida como atividade para todos, independentemente da duração e 
da qualidade do emprego. 
Com 
a Renda da Solidariedade Assistida, passa-se para uma lógica estatutária e 
institucional que, na época da Renda Mínima de Inserção – apesar da diversas 
exceções, da exclusão de estrangeiros, dos menores de 25 anos, e do cálculo 
econométrico da renda por habitação – mesmo assim ainda era a lógica dos 
direitos iguais para todos; passa-se aí para uma lógica contratual e 
discricionário, em cujos termos cada locatário tem de assinar um contrato que 
impõe condições à conservação dos Direitos e que considera cada solução 
particular. A Renda de Solidariedade Ativa aprofunda o que é típico de todas as 
políticas sociais neoliberais: a individualização. 
O 
contrato de inserção é um híbrido de “lei” e “contrato” que, segundo Alain 
Supiot, não significa igualdade e autonomia dos contratantes, mas afirma uma 
assimetria de poder: “O objeto do contrato de inserção não é trocar bens 
determinados, nem selar alguma aliança entre iguais; é legitimar o exercício do 
poder”, que o contratante é obrigado a aceitar, para conseguir o benefício. 
Passa-se de uma lógica de direitos, a outra lógica, que institui um “direito a” 
um dispositivo que condiciona o benefício a um envolvimento subjetivo, cuja 
primeira imposição é cada um fazer um “trabalho sobre si mesmo”, necessário para 
“estar disponível” para os subempregos e os subsalários. A Renda da 
Solidariedade Ativa opera uma inversão da lógica do auxílio social, quer dizer 
–opera uma inversão da “dívida”. A RSA preenche a brecha que a RMI abriu 
no direito à seguridade social: é benefício independente do “emprego” e sem 
“contrapartida” direta. 
De modo ambíguo, a 
Renda Mínima de Inserção (RMI) afirmava uma dívida “da nação” para com “os 
cidadãos menos favorecidos”:
“Ao término dos 
debates parlamentares [sobre a Renda Mínima de Inserção, RMI], apesar da 
persistência de posições opostas quanto ao sentido do contrato e da adoção de um 
texto de compromisso, o desejo do legislador, de romper com a demanda de 
contrapartida na prestação do benefício nada tinha de ambíguo: a inserção era um 
direito, e fazê-lo valer comprometia a instituição em relação a ela mesma. Do 
ponto de vista do beneficiário, a inserção era um objetivo e não uma condição à 
prestação do benefício” (Nicolas 
Duvoux).
A Renda de Solidariedade Assistida 
(RSA), ao contrário, tem o objetivo de indexar a prestação a um subemprego, à 
disponibilidade para a empregabilidade e para um contrato de inserção. Ela não 
institui apenas o “trabalhador” pobre, mas, também, sua culpabilidade, pois o 
trabalhador pobre é tido, implícita ou explicitamente, segundo o caso, como 
responsável por sua condição e como estando, o trabalhador pobre, em dívida em 
relação à sociedade e ao Estado. [D]
Em 
todas as mudanças das fases econômico-políticas, encontram-se sempre o Estado e 
seus governos, no comando das operações. Assim como iniciou e favoreceu 
políticas neoliberais de crédito nos anos 80 e 90, o Estado outra vez intervém 
para organizar a continuidade das mudanças sob as novas formas autoritárias e 
repressivas do reembolso da dívida e da figura do homem endividado [13]. 
Cai 
por terra mais outra ilusão da esquerda: a da eficácia política de opor, à 
lógica da propriedade privada do mercado, uma esfera estatal pública. Não 
existem nem a autonomia do político, nem a neutralidade do Estado. Os agentes da 
administração do governo agem em profundidade sobre a economia, a sociedade e as 
subjetividades – como o demonstra, paradigmaticamente, a construção do mercado 
de emprego e sua permanente reestruturação. 
Crise 
da finança ou crise do capitalismo? 
Trata-se, 
portanto, menos de mostrar a potência do capitalismo, que de apontar sua 
fragilidade, no médio e no longo prazo. Se as contrarreformas estruturais vão 
atingir dramaticamente uma grande parte da população, nem por isso indicam 
qualquer via para sair da crise. 
Porque 
nem os experts, nem os mercados, as agências de avaliação de risco ou os 
políticos sabem para onde correr para aprofundar as políticas neoliberais de 
produção e de intensificação das diferenças de classe – que são, essas, a 
verdadeira origem da crise. 
A 
máquina capitalista está correndo desembestada, não porque esteja bem regulada, 
não porque tenha havido excessos, não porque os financistas são gananciosos, 
etc. (essas não passam de ilusões da “esquerda” regulatória!). Tudo isso é 
verdade, mas não chega á origem da crise atual, que não começou com a 
quebradeira das finanças. A quebradeira é, antes, o resultado do fracasso do 
programa neoliberal (fazer da empresa o modelo para todas as relações sociais) e 
da resistência que a figura subjetiva que aquele programa tentava impor (o 
capital humano, o “empresário de si mesmo” [14]) enfrentou. 
Essa 
resistência, mesmo passiva, ao entravar a realização do programa neoliberal... 
converteu o crédito, em dívida. 
Se 
o crédito e o dinheiro manifestam a natureza comum de ambos ao aparecerem como 
“dívidas”, é porque a acumulação está bloqueada; assim bloqueada, a acumulação 
já não garante novas rentabilidades e já não produz novas formas de servidão. 
Nos 
EUA, entre 2001 e 2004, só foi possível um crescimento de 10% do PIB, porque se 
implantaram medidas para relançar a atividade; injetaram-se na economia 15,5 
pontos do PIB; reduziram-se impostos equivalentes a 2,5 pontos do PIB; o crédito 
imobiliário passou, de 450 
a 960 milhões (1.300, antes da crise de 2007); os gastos 
públicos aumentaram cerca de 500 milhões. 
Na 
alvorada do século 21, 
a Alemanha estava em situação semelhante. 
Entre 2000 e 2006, o PIB alemão cresceu 354 milhões de euros. 
Mas, se se comparam esse crescimento e os números da dívida no mesmo período 
(342 milhões), constata-se facilmente que esse é um quadro de “crescimento real 
zero”! 
O 
Japão que, depois da explosão da bolha imobiliária nos anos 90, e depois que a 
dívida, para reinflar o sistema bancário, também explodiu, foi o primeiro a 
entrar em “crescimento real zero” (e, em 2012, já está entrando em recessão). O 
Japão mostra, melhor que outros países, a natureza da crise 
contemporânea. 
Não 
se deve buscar as causas do impasse do modelo neoliberal só nas contradições 
econômicas, por mais reais que sejam. É preciso buscá-las também – e sobretudo 
–, no que Guattari chama de “uma crise da produção de subjetividade” [15]. 
O 
“milagre japonês” foi capaz de forjar uma força de trabalho coletivo e uma força 
social “muito integrada ao maquinismo” (Guattari), mas parece girar no vazio, 
apanhados também o Japão e o milagre japonês, nas malhas da dívida e de seus 
modos de subjetivação. O modelo subjetivo “fordista” (emprego vitalício, tempo 
dedicado unicamente ao emprego, o papel da família e a divisão patriarcal dos 
papéis, etc.) está esgotado e ninguém sabe o que por no seu lugar. 
A 
crise da dívida não é loucura da especulação, mas tentativa de manter vivo um 
capitalismo já doente. O “milagre econômico” alemão é resposta regressiva e 
autoritária aos impasses que já se manifestavam desde antes de 2007. 
Por 
essa razão, a Alemanha e a Europa mostram-se tão ferozes e inflexíveis com a 
Grécia. Não só por causa do “exijo meu dinheiro de volta” (o dinheiro dos 
credores), mas, também e sobretudo, porque a crise financeira inaugura nova fase 
política, na qual o capital já não pode mais depender de alguma “promessa de 
riqueza futura” para todos, como nos anos 1980s. O capital já não tem à sua 
disposição as armadilhas de ‘luz’ da “liberdade” e da “independência” do capital 
humano, nem as arapucas da sociedade da informação do “capitalismo cognitivo”. 
Para 
dizer como Marx, o capital só pode contar ainda, hoje, com um maior 
aprofundamento da “mais-valia absoluta” [16], quer dizer, com um prolongamento 
do tempo de trabalho, com um aumento do trabalho não remunerado, com salários 
muito baixos, com cortes em todos os serviços, com condições precárias de vida e 
de emprego e com a redução da expectativa de vida. 
A 
“austeridad”’, os sacrifícios, a fabricação da figura subjetiva do “endividado”, 
não são má hora para passar, de algum “novo crescimento”, para técnicas de 
poder. Assim se chega a um autoritarismo que já nada tem de “liberal”, mas é o 
único que talvez garanta a reprodução das relações de poder. O governo do pleno 
emprego precário e a “salvação” [o “resgate”] do pagamento da dívida exigem que 
vastas porções do programa da extrema direita sejam incorporados ao sistema 
político democrático. 
A 
resistência passiva, que não foi integrada ao programa neoliberal, engajou-se 
por outras vias depois de 2007. E é hoje a única esperança de escapar às 
técnicas de poder dos governos, acionadas pela dívida. 
Apesar 
da feira de horrores que se veem, nos planos da “austeridade” imposta à Grécia, 
todos devem hoje de admitir que, seja de um modo seja de outro, de te fabula 
narratur [a história está falando de ti]! 
Notas 
de rodapé (do autor)
[1] É o que se vê 
também hoje, para diversas caixas “sociais”, como, por exemplo, Unedic, os 
celulares do crime. 
[3] Um banco estudou 
uma amostra de 2.679 títulos; dos 17 mil títulos endossados para empréstimos 
imobiliários anotados por S&P., 99% tinham nota AAA ao serem emitidos, mas 
90% têm, hoje, notas desestimulantes para qualquer investidor 
[“non-investment grade”]. 
[4] Para remissão do 
pecado original: Stratégie de 
Recherche d’emploi (STR), l’usinage sémiotique des chômeurs par Pôle emploi et 
ses prestataires. 
[5] Refundação social 
patronal: Le Pare, une 
entreprise travailliste à la française. 
[6] Sarkofagia 
trabalhista abjeta: Le travail, c’est la 
liberté, le plein emploi est possible. 
[7] Estatísticas falam 
de 14,5% de pobres, o que já seria notável. Impressionante, mesmo, é que os 
números da miséria não diminuem, mas aumentam, com o “crescimento”. Isso diz 
muito sobre a real natureza do “crescimento”. 
[8] Se não representam 
mais que 3% do conjunto dos de mais de 65 anos em termos de estoque, o fluzo 
emprego/desemprego está em constante aumento, o número de contratos 
de Mini-job aumentou mais de 58% em dez anos. Em 2007, o governo 
alemão elevou a idade legal de aposentadoria, de 65 para 67 anos; quando a idade 
efetiva de aposentar-se é de 62,1 (H) e 61 (M). Assim se provoca precarização 
crescente e redução efetiva do nível dos benefícios. 
[9] Em 11/1/2012, 
Destatis publicou “Ombres et lumière sur le marché du travail” [Sombras e luz 
sobre o mercado de trabalho], onde se lê: “o número de empregos ditos atípicos 
(de tempo parcial de menos de 20 horas/semana, incluindo atividades marginais, 
empregos temporários e substituições) aumentou em 3,5 milhões, de 
1991 a 
2010; e o número de ativos com emprego regular diminuiu em cerca de 3,8 
milhões”. 
[10] A 
social-democracia alemã, depois de converter-se a economia social de mercado (o 
ordo-liberalismo) e no pós-guerra, converteu-se ao neoliberalismo da maioria do 
Congresso de 1/6/2003, quando 80% dos delegados aprovaram essa Agenda 2010. Dia 
15/6/2003, o Congresso dos Verdes adotou, com maioria de quase 90% dos 
delegados, um programa que prevê, também os ‘verdes’, a aposentadoria por 
capitalização, a privatização dos serviços públicos, etc. 
[11] Ideia difundida 
durante a mobilização contra a reforma das aposentadorias em 2010 
Retraite: aos 95 anos, perderei o adicional trimestral; pode-se ler também 
Les grèves de 
l’automne 2010. Réémergence et perspectives de recomposition d’un antagonisme de 
classe.  
[12] A Europa 
encaminha-se, em marcha forçada, na direção do modelo norte-americano de livre 
demissão. O governo espanhol aprovou, dia 10/2/2012, leis que seguem a mesma 
lógica: facilitação das demissões, redução das indenizações/desemprego e redução 
de salários. As indenizações/desemprego (45 a 33 dias, por ano trabalhado) passam 
a um máximo de 42 
a 24 meses. As demissões por causa econômica (em que as 
indenizações chegavam a 20 dias por ano trabalhado) foram facilitadas, limitadas 
a um máximo de 12 mensalidades: basta que a empresa tenha vendas em queda por 
três meses consecutivos, mesmo que continue a ter lucro. As empresas podem impor 
reduções unilaterais de salário, depois de três meses de vendas em queda. 
Rejeitar salários reduzidos nesses casos é justa causa para demissão. 
[13] Sobre isso, 
pode-se ouvir Sonore: La fabrique 
de l’homme endetté, essai sur la condition néolibérale.  
[15] Ver De la 
production de subjectivité, de Félix Guattari. 
[16] Ver O 
Capital, Livro I, Desenvolvimento da Produção Capitalista, Seção 
III: a produção da mais-valia absoluta, K. Marx. 
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Notas 
dos tradutores  
*Em italiano, em: “La svolta autoritaria del neoliberismo. Debito e austerità: il modello tedesco del pieno impiego precário”- Introdução de LAZZARATO, Maurizio, La fabrique de l’homme endetté, essai sur la condition néolibérale, Paris: Amsterdam, 2011. O livro pode ser baixado, em francês, clicando no título.
** Pode ser lido, em português, em: 
“As 
Lutas de Classes em França de 1848 a 1850”.
[A] 
Foi conselheiro do 
ex-chanceler alemão, Gerhard 
Schröder (1998-2005), do Partido 
Social-Democrata, o “PSDB” alemão.
[B] 20/3/2012, “Sobre 
a reforma do mercado de trabalho”, 
La Stampa, Itália.
[C] No Brasil dos 
anos do tucanato, em movimento daquele governo do PSDB neoliberal – em anos que 
felizmente são passados!Vade retro! – mas movimento em tudo IDÊNTICO ao 
de Mario Draghi na Itália, hoje, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do 
PSDB-SP chamou de “vagabundos”, os aposentados que considerava “jovens” em: “FHC chama aposentados 
jovens de vagabundos”.  
[D] Essa 
culpabilização do empregado pobre está, TOTAL E VISIVELMENTE presente no 
“vagabundos” do ex-FHC (vide nota C).


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