27/9/2011, Nicolás González Varela
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
“Eu próprio não
tenho uma compilação de meus trabalhos, que foram escritos em diferentes idiomas
e impressos em diferentes lugares. A maioria deles já não se encontram nas
livrarias”.
(Karl Marx a N. F. Danielson, 7/10/1868).
“Três chefes
comunistas alemães, entre os quais o conhecido Marx, estão preparando edição em
oito volumes sobre o Comunismo, doutrina, conexões e situação na Alemanha,
Suíça, França e Inglaterra. Tudo a partir de documentos. Os outros dois
colaboradores são Engels e Hess, comunistas conhecidos”. (Informe secreto da Polícia Prussiana,
Paris, 17/2/1846).
Boris
Nicolaïevski, grande biógrafo de Marx, reconhecia em 1937 que, de cada mil
socialistas, talvez só um tenha lido, de cabo a rabo, algum livro de Marx; e de
cada mil antissocialistas, nem um. E o pior, concluía, é que Marx já não estava
na moda. 40 anos antes, um grande teórico e militante, falo de Labriola, ao
participar não conhecido debate sobre o valor científico da obra de Marx em
1897, (a chamada “primeira crise do marxismo”, e cujos principais interlocutores
eram ninguém menos que George Sorel, Eduard Bernstein e Benedetto Croce) [1] perguntava-se ingenuamente se “os
escritos de Marx e Engels… foram lidos integralmente por alguém externo ao grupo
de amigos e adeptos próximos, isto é, dos seguidores e intérpretes diretos dos
próprios autores?... Acrescente-se a isso a raridade de muitos dos referidos
escritos, e até a impossibilidade de encontrar alguns deles.” E concluía
profético se “este ambiente literário”, esta situação hermenêutica adversa, não
seria um dos culpados pela má assimilação, a aparente decadência e crise do
pensamento de Marx. Com pessimismo, recapitulava, em frase profética: “Ler todos
os escritos dos fundadores do socialismo científico resultou, até agora, em
privilégio de iniciados”. [2]
Já o fundador do
anarcossindicalismo Georges Sorel, com quem Labriola troca ideias, havia chegado
a conclusões semelhantes em balanço parcial da penetração do marxismo sob as
condições materiais da Europa não início do século 20. Segundo Sorel e pelo
mesmo motivo: “as teses marxistas não foram, em geral, bem compreendidas na
França e na Inglaterra pelos escritores que se ocupam das questões sociais”. [3] Parafraseando Frossard, poder-se-ia
dizer que a maioria dos marxistas não conhecem os escritos de Marx melhor do que
os católicos conhecem a Summa de Santo Tomás de Aquino. Labriola
perguntava-se a propósito da “crise” ou decadência de Marx, “como nos pode
surpreender (...) que muitos e muitos escritores, sobretudo publicistas,
tenham-se sentido tentados a tomar críticas de adversários, ou citações
incidentais, ou inferências temerárias baseadas em trechos esparsos, ou vagas
lembranças, os elementos necessários para construírem um Marxismo que eles
mesmos inventavam a seu modo? (...) O Materialismo Histórico – que em certo
sentido é todo o Marxismo – passou (...) por uma infinidade de equívocos, más
interpretações, alterações grotescas, disfarces estranhos e invenções gratuitas
(...) que teriam de ser obstáculo para quem quisesse construir para si uma
cultura socialista”.
Nikolaïevski e
Labriola, mas não só eles, estavam convencidos de que Marx teria para sempre o
destino de má recepção, que começava na difusão e irradiação de seus escritos.
Labriola falava de outro obstáculo, ainda mais profundo e perigoso, do qual nos
ocupamos aqui: a raridade dos escritos de Marx e a impossibilidade de
encontrarem-se edições confiáveis. De fato, nem só edições confiáveis, mas, mais
simplesmente, obras publicadas!
O leitor responsável que se
interessasse por Marx sofreria, segundo Labriola, dificuldades mais extremas que
as enfrentadas por filólogos e historiadores que tenham de estudar documentos da
Antiguidade. E perguntava, por experiência própria: “Haverá muita gente não
mundo que tenha suficiente paciência para procurar, por anos a fio, um exemplar
de Miséria da Filosofia (...) ou desse livro singular que é A Sagrada
Família; gente disposta a suportar, para encontrar um exemplar da Nova
Gazeta Renana, mas fadigas que as que os filólogos e historiadores enfrentam
para ler e estudar documentos do Egito antigo?” [4]
Em resumo:
cumprindo a profecia de Labriola, acontece hoje não mundo, com Marx, o que
aconteceu com Byron em meados do século 20: só se encontram seus livros em
bibliotecas de leitores excêntricos, não especialistas ou antiquados. Para o
grande público, incluindo-se a Noblesse d’État do mandarinato acadêmico,
o nome de Karl Marx significa hoje bem pouco. Hoje, setembro de 2011, não se
encontram não mercado editorial de língua espanhola edições críticas de Marx e
Engels, a meritória edição dos Werke a cargo da equipe de Manuel
Sacristán ficou incompleta [5] e a
única exceção é a edição em andamento (embora hoje interrompida), de parte
das Werke, na editora Fondo de Cultura Económica, FCE, do México, graças
ao trabalho do falecido Wenceslao Roces. [6]
Mas é lícito
perguntar o que permanece vivo e o que morreu Marx, embora a pergunta possa ser
puramente retórica ou dispare automaticamente a vulgata do Dia-Mat. A
resposta seca e solene do pós-modernismo e da filosofia analítica é amplamente
conhecida: o marxismo está decididamente fora de época, é “inatual”, como
“grande narrativa” não consegue explicar-se sequer ele mesmo; e é obra
fatalmente datada. Não passa de uma filosofia a mais, das que nos deixou o
século 20 e, como tal, definitivamente marcada pelo próprio tempo. Sepultar Marx
com todas as honras é dever, nem tanto intelectual, mas arqueológico, trabalho
de antiquariato. Nada há que valha a pena resgatar nessas páginas infectadas de
hegelianismo e providencialismo, como insiste, pela milésima vez, o
neopositivista Mario Bunge. [7]
Labriola (e Sorel)
constatavam uma dificuldade fática que nasceu com o próprio marxismo, que a
carrega como estigma até nossos dias: as enormes dificuldades para estabelecer e
editar, com critérios científicos atualizados, as suas obras completas. Labriola
reclamava do SPD da época, detentor dos manuscritos (Nachlass), que
“seria dever do partido alemão dar edição completa e crítica a todos os escritos
de Marx e Engels; quero dizer, edição acompanhada em cada caso de prólogos
descritivos e declarativos, índices de referência, notas e remissões (...). E é
preciso acrescentar os escritos já publicados em livro ou opúsculos, artigos de
jornal, manifestos, circulares, programas e todas as cartas que, por serem de
interesse público e geral, tenham importância política ou científica”. E
concluía, taxativo: “Não se trata de selecionar: é preciso por ao alcance dos
leitores toda a obra científica e política, toda a produção literária dos dois
fundadores (...) inclusive os escritos de ocasião. E não se trata tampouco de
reunir um Corpus iuris, nem de redigir um Testamentum juxta canonem
receptum, mas de recolher os escritos com cuidado e para que os escritos
possam falar diretamente a quem tenha ganas de lê-los”. Trata-se simplesmente de
Marx poder falar diretamente...
Marx reconhecia
que a própria vida o havia impedido de escrever conforme o cânone da arte
de faire le livre, razão pela qual sua literatura eram fragmentos de uma
ciência e de uma política em eterno devir.
O marxismo, se há
algo que se possa chamar assim, era eminentemente um sistema aberto. Labriola
destacara com suficiente clareza não só os critérios editoriais de uma política
editorial, mas os problemas materiais objetivos que a difusão implicava, tanto
da obra exotérica como dos manuscritos de Marx (e Engels).
Um dos erros mais
significativos da difusão da obra marxiana e, portanto, de uma das causas que
ajudam a explicar os desvios de interpretação foi o deslocamento entre os níveis
diacrônicos e sincrônicos dos manuscritos, o que levou a uma desarticulação
entre os componentes biográficos, cronológicos e doxográficos, que constituem,
desde Teofrasto, o instrumental filológico mínimo necessário para que se alcance
compreensão satisfatória de uma obra. Labriola já havia reconhecido a
necessidade de, para que se entendam plenamente os textos, ser necessário
relacioná-los biograficamente (na biografia, encontrar-se-iam ao mesmo tempo “a
pegada e a trilha, o índice e o reflexo” da gênese de Marx). Mas no caso de
Marx, essa disrupção anômala entre os dois níveis deveu-se, na maior parte, nem
tanto ao seu estilo particular, mas, mais, à constante manipulação política que
sofreram seus escritos, por carrascos executores circunstanciais.
O percurso
tortuoso, entre errático e movido pelo acaso, que é a história editorial dos
escritos de Marx só é comparável à coleção de coincidências afortunadas,
fantásticas, triviais e quase inacreditáveis graças às quais se salvaram, para a
posteridade, muitos dos escritos de Aristóteles. Como no caso de Marx, seus
escritos sofreram as inclemências dos interesses políticos e os caprichos
culturais, em cada mudança na forma de atenção. E, como Aristóteles, os
manuscritos de Marx guardam uma peculiaridade muito especial: a maior parte são
anotações, esboços, notas e memoranda, produto de uma técnica de trabalho
intelectual limitada pela extrema pobreza e as repetidas emigrações políticas.
Mas no caso de
Marx acrescenta-se uma condição a mais: o próprio marxismo (melhor dizer, os
marxismos) nasceu, desenvolveu-se e profissionalizou-se em escola (e, em
seguida, em ideologia oficial e legitimadora de um estado) quando a obra de Marx
ainda não era toda ela acessível e, inclusive, quando partes importantes de
seu corpus eram inéditas (e ainda são) ou, mesmo, eram inencontráveis. O
êxito (?) do marxismo como ideologia de partido e ortodoxia de estado (como
ciência da legitimação do DiaMat) precedeu em décadas a divulgação
científica e exaustiva dos escritos completos dos fundadores.
Um dos casos mais extremos (embora
não seja o único) é o texto conhecido como Die Deutsche Ideologie, A
Ideologia alemã, escrito a três mãos por Friedrich Engels, Moritz Hess e
Karl Marx entre 1845 e 1846, e onde, para muitos especialistas, pela primeira
vez estabelece-se o que se poderia chamar de materialismo histórico coerente e
fundamentado. [8] E, embora a
marxologia mais prestigiosa geralmente admita a importância desse escrito,
inclusive a marxologia acadêmica (a começar por Althusser, Balibar etc.), é obra
muito pouco lida em toda sua extensão, mal editada e de péssima difusão. [9] Fora do âmbito da marxologia, reina
a indiferença, o desconhecimento total ou, diretamente, o desprezo que brota da
ignorância. [10] Como diziam os
antigos romanos: Pro captu lectoris habent sua fata libelli (o destino
dos livros acontece segundo as capacidades e possibilidades do leitor). Também
no caso de um pensador clássico, como Marx.
*****
Para dar-nos uma
medida da importância que o próprio autor atribuía a esse trabalho de 1845-1846,
é preciso fazer um pequeno desvio para atualizar a história pouco conhecida das
primeiras obras escolhidas editadas de Karl Marx. A difusão da obra de Marx já
era problema, ainda em vida do autor. As únicas edições em livro, de trabalhos
da mesma época em que escreveu A Ideologia alemã, a frutífera década dos
1840, são produto de uma tentativa frustrada de editar ‘obras escolhidas’
primitivas, chamadas pomposamente Gesammelte Aufsätze von Karl Marx,
resultado da exaltação editorial de um camarada, o médico e publicista Hermann
Heinrich Becker (que Marx apelidou de “Becker, o vermelho” [der rot
Becker]) [11] aparição
fantasmática ocorrida em abril e maio de 1851. [12]
Franz Erdmann
Mehring, o historiador e político que pouco adiante fundaria a Liga Espartaco,
com Rosa Luxemburg, relatava em seu trabalho biográfico clássico que “Marx
pôs-se em comunicação com Hermann Becker para a edição de suas obras completas
e, adiante, de uma revista trimestral a aparecer em Lieja; Becker fixara
residência em Colônia, onde gerenciava uma pequena empresa editorial”. [13] O projeto de edição, em dois
tomos, cada um com cerca de 400 páginas, em 25 cadernos costurados, tinha fundo
eminentemente político, ação ligada a uma tática de partido
(propagandistische Tätigkeit), ligada estreitamente à propaganda e
difusão das ideias da famosa Liga dos Comunistas [Der Bund des
Kommunisten], organização que se tratava de reconstruir na Alemanha.
Aquelas primitivas
obras escolhidas de Marx tinham o apoio institucional do Comitê Central da Liga
em Colônia [Kölner Zentralbehörde], que previa um sistema de
assinaturas antes da publicação. No mesmo projeto, Marx concebera o lançamento
de uma coleção popular de literatura socialista em pequenos fascículos (plano de
difusão de pensadores socialistas que já tentara por em prática em 1845), e
incluía obras de Babeuf, Buonarotti, Holbach, Fourier, Owen, Helvetius,
Saint-Simon, Cabet, Considérant e Proudhon. No folheto explicativo que
acompanhava essas obras escolhidas primitivas de Marx, nos pacotes distribuídos
para as livrarias, assinado pelo editor da compilação – o próprio Becker –,
lia-se que a obra de Karl Marx estava dispersa em folhetos, panfletos,
periódicos já desaparecidos e livros já não encontráveis nas livrarias, motivo
pelo qual a edição em livro era importante serviço, ao oferecer aos leitores a
produção escrita de Marx na última década: “o primeiro volume recolhe as
contribuições de Marx publicadas na revista Anekdota de Ruge, na
antiga Rheinische Zeitung (inclusive artigos sobre a liberdade de
imprensa, leis sobre roubo de madeira, a situação dos camponeses do Mosela,
etc.), nos Deutsch-französischen Jahrbüchern, no Westphaelische Dampfboot,
em Gesellschaftsspiegel, etc. e uma série de monografias publicadas antes
da revolução de março de 1848, mas por desgraça (sic!) ainda plenamente atuais”.
[14]
O único e primeiro
volume, que afinal ficou reduzido a 80 páginas, continha textos de Marx desde
dezembro de 1841, o primeiro era Bemerkungen über die neue
preußische Zensurinstruktion [Observações sobre as Novas Instruções
do Governo Prussiano acerca da Censura], publicado na revista Anekdota zur neuesten deutschen
Philosophie und Publicistik [15]
dos jovens hegelianos. A inclusão desse artigo é sintomática. Não é acaso que
Marx tenha escolhido, não primeira publicação impressa [16], mas seu primeiro escrito como
propagandista democrata-revolucionário defendendo a liberdade de imprensa
burguesa clássica, contra o reacionário estado prussiano.
Nesse artigo, já criticava o “aparente Liberalismo” (Scheinliberalismus) da forma-estado burguesa, com bagagem filosófica que remetia declaradamente a Spinoza, Kant e Fichte, desmascarando a ilusão política de crer que os defeitos institucionais objetivos (objektiven Fehler, como a tendência a restringir a informação crítica livre) do Estado, na realidade, sua essência, pudessem ser corrigidos apenas mudando os censores.
Nesse artigo, já criticava o “aparente Liberalismo” (Scheinliberalismus) da forma-estado burguesa, com bagagem filosófica que remetia declaradamente a Spinoza, Kant e Fichte, desmascarando a ilusão política de crer que os defeitos institucionais objetivos (objektiven Fehler, como a tendência a restringir a informação crítica livre) do Estado, na realidade, sua essência, pudessem ser corrigidos apenas mudando os censores.
Nenhuma “boa” lei,
nenhuma “boa” intenção subjetiva – diz Marx ali – pode alterar a essência de um
estado burguês. Além disso, num extraordinário parágrafo concentrado, Marx
descreve em linguajar popular o método dialético de investigação da Verdade
(Untersuchung der Wahrheit), que tem de ser, ele mesmo, verdadeiro: Zur Wahrheit gehört nicht nur das
Resultat, sondern auch der Weg, “não só o resultado constitui a Verdade,
também o caminho.” Destaca que o caráter do objeto (Charakter des
Gegenstandes) que se investiga, nesse caso o estado burguês, exerce
influência decisiva sobre a própria investigação. A investigação verdadeira “é”
a Verdade desmembrada, cujos membros dispersos agrupam-se e condensam o
resultado, nada mais, nada menos, que uma versão ainda tosca e primitiva do modo
de investigação, o Forschungswiese, como aparece explicado no prólogo
de O Capital.
O projeto editorial incluía, além
dos artigos jornalísticos da etapa radical-liberal nos Anekdota e no diário Rheinische Zeitung, alguns do
frustrado projeto parisiense dos Anuários Franco-Alemães; e artigos do “órgão da
Democracia” criado por Engels e Marx, a Neue Rheinisches Zeitung. Para o
segundo tomo, que não chegou a nascer, estava previsto publicar artigos da
revista política que Engels e Moritz Hess editaram, Espelho da Sociedade, [17] e pensou-se em traduzir para o
alemão algumas monografias de Marx, como o livro contra Proudhon, Misère de la philosophie [18], e o capítulo IV de A ideologia alemã. Crítica da mais
recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e
do socialismo alemão em seus diferentes profetas, intitulado “Karl Grün:
‘Die soziale Bewegung in Frankreich und Belgien’ (Darmstadt 1845) oder Die
Geschichtschreibung des wahren Sozialismus” ["Karl Grün: ‘O Movimento Social na
França e na Bélgica” (New York, 1845) ou a historiografia do socialismo
verdadeiro]. [19]
Embora a tiragem
pensada inicialmente fosse muito ambiciosa (15 mil exemplares), só se imprimiram
umas poucas cópias, a repressão contra os comunistas em Colônia, o próprio
Becker foi preso em maio de 1851, e o confisco de exemplares pela Polícia
fizeram com que poucos livros fossem distribuídos na cidade e arredores. Ainda
em meados de 1851, Marx pensava editar uma versão ampliada desses escritos,
incluindo um possível terceiro tomo, cada um com 75 páginas, tendo o dirigente
Ferdinand Lassalle operado na intermediação. [20]
Além da
importância filológica-documental, dada por ‘óbvia’ ou totalmente ignorada pela
marxologia tradicional, o projeto político-editorial amadurecido em dezembro de
1850, oferece pistas precisas sobre as ideias filosófico-práticas do Marx
maduro.
Em primeiro lugar, que, para as
tarefas políticas-revolucionárias pendentes na Alemanha pós-1848, o próprio Marx
identificou, de sua obra anterior, tanto teórica como de publicista, quais os
textos que eram e quais não eram pertinentes. Em segundo lugar, é evidente que
se o próprio Marx pretendia publicar, com o consenso da própria Liga dos
Comunistas, textos aparentemente “defasados” de sua etapa de liberal de
esquerda, aí está uma evidência de uma (talvez) profunda continuidade (apesar
das sucessivas rupturas teóricas) na autoconsciência de Marx entre seu
pensamento esquerdo-hegeliano (logo feuerbachiano) e o Comunismo reflexivo da
década dos 1850s. As ideias marxianas entre 1841 e 1844 continuavam atuais, e
continuavam plenamente operativas e funcionais associadas à nova dimensão
da Kritik. Não se deve esquecer
que, nessa altura, Marx já escrevera não só “Lohnarbeit und Kapital” [Trabalho
Assalariado e Capital] [21] no
diário democrático-revolucionario Neue Rheinisches Zeitung, mas também
já publicara, com Engels, o Manifesto Comunista. E, nessa
continuidade em sua filosofia prática, Marx reconhecia o valor autônomo e de
consolidação teórica de A Ideologia alemã de 1845-1846.
“Durante o verão (de 1845)” –
recorda Jenny Westphalen, esposa, corretora e copista de Marx – “Engels elaborou
com Karl uma crítica à filosofia alemã. O estímulo externo foi o surgimento
de Der Einzige und sein
Eigentum [aprox. “O ego e o seu
próprio” (NTs)] (de Max Stirner). Acabou sendo obra volumosa e seria publicada
na Westfalia”. [22] Numa
autointerpretação do Marx maduro, o famoso Vorwort à Zur Kritik der Politischen
Ökonomie [Prefácio à Crítica da
Economia Política] de 1859, fica clara a enorme importância atribuída ao passo
teórico dado entre 1844-1846 e em especial o papel que aí desempenhava A Ideologia Alemã:
“Comecei em Paris a investigação
[da anatomia da sociedade civil], prosseguindo em Bruxelas, para onde havia
emigrado como consequência da ordem de expulsão do Sr. Guizot. O resultado geral
que obtive e que, uma vez obtido, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode
ser assim formulado brevemente. Na produção social de sua existência, os homens
estabelecem determinadas relações, necessárias e independentes de sua vontade,
relações de produção (Produktionsverhältnisse) que correspondem a um
determinado estado evolutivo de suas forças (...). O modo de produção da vida
material determina (bedingen) o processo social, político e intelectual
da vida em geral. (...) Com Friedrich Engels, com quem tenho mantido constante
intercâmbio epistolar de ideias (...) e também quando se estabeleceu em Bruxelas
na primavera de 1845, resolvemos elaborar conjuntamente a oposição de nossos
pontos de vista contra o ponto de vista ideológico da filosofia alemã, ou, de
fato, acertar contas com nossa antiga consciência filosófica. Este propósito
levou-se a cabo na forma de uma crítica à filosofia pós-hegeliana. O manuscrito,
dois grossos volumes in-octavo,
já havia chegado havia muito tempo ao local onde devia ser editado, na
Westfalia, quando recebemos a notícia de que uma mudança de condições não
permitia a impressão. Deixamos o manuscrito entregue à roedora crítica dos
ratos, ainda de melhor grado porque já alcançáramos nosso objetivo principal:
compreendermos, nós mesmos (Selbstverständigung), a questão.” [23]
Resulta claro e evidente que esta
ruptura, esta nova Ansicht [visão], este revolucionário ponto de
vista, só pode ser entendido em sua magnitude, se compreendermos o significado
de A Ideologia alemã. Em suma:
si voltamos ao “futuro anterior” do próprio Marx. [Continua]
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Notas de
rodapé
[1] A conhecida como
“primeira crise do marxismo”, hoje quase completamente esquecida, foi iniciada
por um artigo do advogado G. Masaryk nos números 177-179 do jornal
vienense Die Zeit, no qual o
autor simplesmente constatava as diferenças teórico-práticas internas na
social-democracia alemã e austríaca, em especial entre os pais fundadores e seus
epígonos, concluindo que tais diferenças deviam-se ao caráter eclético do
próprio marxismo, sistema sincrético; e que Das Kapital não passava de mera transcrição, em termos
econômicos, do Fausto de Göethe. Da crise “no” marxismo da
social-democracia de língua alemã, reformistas como Bernstein et altri, sem mais nem menos,
extraíram uma crise “do” marxismo.
[2] LABRIOLA,
Antonio. Discorrendo di socialismo e
di filosofia, carta II (esp.) “Socialismo y Filosofía”, Madrid: Alianza
editorial, 1969, p. 41, com tradução e prólogo de Manuel Sacristán.
[3] SOREL, Georges.
“Préface” in LABRIOLA, Antonio. Essais sur la conception matérialiste de
l'histoire, Paris: V. Giard & E. Brière, libraires-éditeurs, 1897, pp.
1-20.
[4] LABRIOLA,
Antonio, ibidem, p. 41.
[5] Em 1975,
Sacristán projetou uma edição crítica em espanhol da obra escolhida de Marx e
Engels em 68 volumes, com o título de Obras completas de Marx e Engels (OME), sob o selo de Editorial Grijalbo.
Desse projeto, só 11 volumes viram a luz, dentre os quais as traduções de
Sacristán de O Capital, livros 1
e 2 e o Anti-Duhring. Sacristán
dizia com razão, sobre publicar o Marx desconhecido que “quando me encarregaram
de começar a traduzir as obras de Marx e Engels (que por certo foram suspensas,
porque já não há mercado suficiente) era justo que me pedissem um Capital, porque, se traduziam obras
completas, claro que também editariam O Capital. Mas o que, na minha
opinião, estava errado, era entenderem que a primeira coisa a publicar,
imediatamente, teria de ser O
Capital. Entendo que, antes, teriam de publicar a parte inédita, a saber, o
epistolário completo. Não me atrevo a dizer que eles, que são comerciantes, não
tenham razão, mas a situação é absurda.” (In ARNAL, López, S.; DE LA FUENTE, P. Acerca de Manuel Sacristán,
Barcelona: Destino, 1996, p. 168. Sobre a figura decisiva de Sacristán, ver
ARNAL, López, S., “Aristas esenciales de un pensador poliédrico (I). Manuel
Sacristán (1925-1985), a los 25 años de su fallecimiento”. In: Papeles de relaciones ecosociales e
cambio global, n. 109, 2010, pp. 23-44.
[6] Tradução de uma
seleção da edição de MARX, K.; ENGELS, F., Werke, editada por Dietz Verlag de
Berlin-DDR, segundo a versão de 1958; em palavras de Roces: “Esta edição, que
não é das obras completas (MEGA), mas das Obras Fundamentais (Werke),
constará de vinte e tantos volumes. Já se publicaram dois, da juventude de Marx
e de Engels; publicaram-se os três tomos das Teorias da Mais-valia. Agora
aparecerão O Capital e os escritos econômicos menores e também a
nova edição dos Grundrisse.”
Sobre a figura de Roces: RIVAYA, Benjamín, “Comunismo e compromiso intelectual:
Wenceslao Roces”. In Papeles de
la FIM, n. 14,
Fundación de Investigaciones Marxistas, Madrid, 2000. Roces foi pioneiro, ao
fundar e dirigir uma empresa de difusão marxista ainda na IIa. República
espanhola, a “Biblioteca Carlos Marx” da Editorial Cenit, da qual chegaram a
publicar-se dez volumes grandes, entre os quais o primeiro tomo de O Capital em dois volumes e o Anti-Dühring de Engels.
[7] Remetemos o
leitor à nossa crítica à centésima milésima tentativa de tratar Marx e Engels
como cachorro morto, do físico Mario Bunge: “O Dr. Bunge sobre Engels. Los escombros ideológicos do Neopositivismo”, on-line em Rebelión.
[8] ESSBACH,
Wolfgang. Die Bedeutung Max Stirners für die Genese des historischen
Materialismus (1978) , u.d.T. Gegenzüge, Materialis, Frankfurt am Main, 1982.
[9]
Balibar, por
exemplo, assinala, rápida e erradamente, que “em 1845, Marx, refugiado em
Bruxelas, trabalhava em colaboração com Engels na elaboração de uma concepção
filosófica materialista da istória, da qual quer fazer a base de um socialismo
proletário autônomo (“Tesis sobre Feuerbach, A Ideologia Alemana, manuscritos
publicados tras a muerte de Marx e Engels”)”. In: BALIBAR, Étienne. Cinco Ensayos de Materialismo
Histórico, Barcelona: Editorial Laia, 1976, p. 20. Malgré lui: não só se equivoca ao
considerá-las obra independentes, mas também no momento em que foram publicadas,
muito antes da morte de Engels e Marx. Em momento algum Engels ou Marx utilizan,
nesses anos, nem o termo “concepção filosófica materialista da História”, nem
“socialismo proletário autônomo”.
[10] O caso do célebre
filósofo liberal britânico Isaiah Berlin, o qual, em livro de encomenda sobre
Marx, escreve, sobre A Ideologia
Alemã, o seguinte: “Stirner é demoradamente discutido. Sob o título de ‘São
Max”, é perseguido ao longo de 500 páginas de sarcasmo grosseiro e insultos”.
In: Karl Marx: His Life
and Environment, Thornton Butterworth, London, 1939, Chapter VI, “Historical
Materialism”, p. 143. Berlin erra até no
ano da composição: “A exposição mais extensa da teoria acontece num trabalho que
compôs com Engels em 1846, intitulado Ideologia Alemã” (ibidem, p. 118).
[11] DOHM, Bernhard;
TAUBERT, Inge. “Engels über den roten Becker. Ein unbekannter Brief von Friedrich
Engels”, In: Beiträge zur Geschichte
der Arbeiterbewegung. 1973, Heft 5, pp. 807-814.
[12] MARX, Karl. Gesammelte Aufsatze von Karl Marx, herausgegeben von
Hermann Becker. I. Heft, Koln,
1851. O conteúdo dessa primeira edição de escritos de Marx encontra-se em MARX,
Karl; ENGELS, Friedrich, Werke,
Artikel, Entwrfe Juli 1849 bis Juni 1851, Abt. 1: Werke, Artikel, Entwürfe, Bd. 10,
Akademie Verlag, Berlin, 1977, pp. 493-497. Tratava-se do primeiro volume
projetado; o segundo nunca foi publicado, porque Becker foi preso dia 19/6/
1851, acusado de ser comunista e conspirar contra o estado; foi julgado no
famoso processo dos comunistas (Kölner Kommunistenprozess), em 1852, e
condenado a cinco anos de cárcere. Vide carta de Becker a Marx de dezembro de 1850.
In: AA.VV. Der Bund der
Kommunisten. Dokumente und Materialen. Band 2, Dietz Verlag, Berlin-DDR, 1982, Dokumente 570, pp. 357-358.
[13] MEHRING, E., Franz. Karl
Marx: Die Geschichte seines Lebens, 1918, p. 209. Esp. Carlos Marx. Historia de su Vida,
México: Editorial Grijalbo, 1957, p. 227-228.
[14] Textual: “Marx's
Arbeiten sind theils in besonderen Flugschriften, theils in periodischen
Schriften erschienen, jetzt aber meistens gar nicht mehr zu bekommen, wenigstens
im Buchhandel ganz vergriffen. Der Herausgeber glaubt deßhalb, dem Publikum
einen Dienst zu erweisen, wenn er mit Bewilligung des Verfassers diese Arbeiten,
welche gerade ein Decennium umfassen, zusammenstellt und wieder zugänglich
macht. [...] Der erste Band wird Marx's Beiträge zu den ‘Anekdota’ von Ruge, der
(alten) ‘Rheinischen Zeitung’ (namentlich über Preßfreiheit,
Holzdiebstahlsgesetz, Lage der Moselbauern usw.), den ‘deutsch-französischen
Jahrbüchern’, dem ‘Westf. Dampfboote’, dem ‘Gesellschaftsspiegel’ usw. und eine
Reihe von Monographien enthalten, die vor der Märzrevolution erschienen, aber
leider noch heute passen.” In: MARX, Karl;
ENGELS, Friedrich, ibidem, p. 496.
[15] É o segundo
artigo público conhecido de Marx, escrito entre janeiro e fevereiro de 1842,
aparecido anonimamente (“De um renano”) como artigo nos Anekdota…, tomo I, ano
1843. A
revista era órgão puro da esquerda hegeliana, sob a direção de Arnold Ruge.
Agora, em MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; Werke. Band 1; (Karl) Dietz Verlag,
Berlin-DDR, 1976. pp. 3-25. Esp. MARX,
Karl, Escritos de Juventud, FCE,
México, 1982, pp. 149-169.
[16] Quer dizer, o
artigo “Luther als Schiedsrichter zwischen Strauß und Feuerbach” (“Lutero,
árbitro entre Strauss e Feuerbach”), escrito em janeiro de 1842 e publicado
anonimamente (“Alguém que não é berlinense”) nos Anekdota…, tomo II, 1843.
Agora em en: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; Werke. Band 1; (Karl) Dietz Verlag,
Berlin-DDR, 1976, pp. 26-27. Esp. MARX,
Karl, Escritos de Juventud, FCE,
México, 1982, pp. 147-148.
[17]
Gesellschaftsspiegel.
Organ zur Vertretung der besitzlosen Volksklassen und zur Beleuchtung der
gesellschaftlichen Zustände der Gegenwart era revosta de
tendência (wahrsozialistischen) político-teórica de intervenção nas
classes trabalhadoras e de coinvestigação da questão social. Foi editada entre
1845-1846 na região natal de Engels, Elberfeld. Vide SILBERNER, Edmund, “Der
‘Kommunistenrabbi’ und der ‘Gesellschaftsspiegel’”. In Archiv für Sozialgeschichte, (1963),
Band 3, pp. 87-102. Marx contribuiu com um artigo sobre o suicídio no
capitalismo, em 1846: “Peuchet: Vom Selbstmord”. In Gesellschaftsspiegel; zweiter Band,
Heft VII, Elberfeld, Januar 1846, pp. 14-26. Agora em MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich. Marx-Engels
Gesamtausgabe, MEGA, I Abt., Band 3, Moskau-Berlin, 1932, pp. 391-407.
Em
esp.Marx, Karl; Sobre o Suicidio, ed. e tradução a cargo de Nicolás
González Varela, Montesinos, Mataró (no prelo). Sobre o artigo de Marx, nos
permitimos remeter o leitor a nosso artigo on-line: “Karl Marx en Bruselas (1845-1848): suicidio e cuestión femenina en o Capitalismo”
[18]
Escrito en francês
entre dezembro de 1846 e abril de 1847: Misère de la philosophie. Réponse à la
philosophie de la misère de M. Proudhon, C.G. Vogler, Brüssel-A. Frank,
Paris, 1847. (...) A melhor tradução ao espanhol ainda é Miseria de la Filosofía, Buenos Aires:
Editorial Signos, 1970.
[19] In: ENGELS, Friedrich; Werke. Band 1; (Karl) Dietz Verlag,
Berlin-DDR, 1976, pp. 5–530.
[20] Vide carta de Lassalle
a Marx de 26/6/1851 e suas conversas com o editor Scheller, de
Düsseldorf.
[21] ENGELS,
Friedrich; Werke. Band 1; (Karl) Dietz Verlag, Berlin-DDR, 1971, pp. 397-423. Esp. Trabajo Asalariado y
Capital, Barcelona: Ed. Nova Terra,
1970.
[22] Westhpalen, Jenny; “Kurze Umrisse eines bewegten Lebens”. In: AA.
VV. Mohr und General. Erinnerungen
an Marx und Engels, Dietz Verlag, Berlin-DDR, 1964, p. 192.
[23] ENGELS, Friedrich; Werke. Band 1; (Karl) Dietz Verlag,
Berlin-DDR, 1971, p. 8 e 10. Esp. MARX, Karl.
Contribución al a Crítica de la Economia Política,
México: Siglo XXI, 1980, p. 4 e 6.
*Em português do Brasil: MARX,
Karl; ENGELS, Friedrich, A ideologia alemã. Crítica da mais recente filosofia
alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo
alemão em seus diferentes profetas. [1845-1846] Trad.: Rubens Enderle, Nélio
Schneider e Luciano Cavini Martorano. Prefácio: Emir Sader. São Paulo: Boitempo
Editorial. 2007, 616 p.
**Nesse endereço, vê-se imagem do folheto para as livrarias
das primeiras obras completas de Karl Marx, redigido pelo editor Hermann Becker,
Colônia, 1851.
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