por Miguel Urbano Rodrigues
Transcorridas
quase duas décadas sobre a desagregação da União Soviética, pouco se
escreve e fala sobre Gorbatchov. Os grandes media internacionais quase
esqueceram o político e o homem que guindaram a herói da humanidade
quando contribuía decisivamente, através da perestroika, para a
reimplantação do capitalismo na Rússia.
Paradoxalmente,
Trotsky continua a ser um tema que fascina muitos intelectuais da
burguesia, alguns progressistas, e dezenas de organizações trotskistas
na Europa e sobretudo na América Latina.
Sobre o homem
e a obra não foram nas últimas décadas publicados livros importantes
que acrescentem algo de significante aos produzidos pelos seus
biógrafos, nomeadamente a trilogia do Historiador polaco Isaac
Deutscher.
Nem um só dos
partidos e movimentos trotskistas conseguiu afirmar-se como força
politica com influência real no rumo de qualquer país.
Porquê então a
tenaz sobrevivência, não direi do trotskismo, mas do nome e de algumas
teses do seu criador no debate de ideias contemporâneo? Isso não
obstante ser hoje pouco frequente a reedição dos seus livros.
A contradição
encaminha para uma conclusão: uma percentagem ponderável dos modernos
trotskistas desconhece a obra teórica e a trajectória politica de
Trotsky.
Cabe chamar a
atenção para o facto de a maioria dos intelectuais burgueses das
grandes universidades do Ocidente que assumem a defesa e a apologia da
intervenção de Trotsky na História serem anticomunistas. O seu objectivo
precípuo é combater a URSS e o que a herança da Revolução de Outubro
significa para a humanidade. Trotsky e Stáline são utilizados por esse
tipo de "sovietólogos" como instrumentos na tarefa de combater e
desacreditar o comunismo.
Nos
movimentos trotskistas confluem jovens com motivações e comportamentos
sociais muito diferentes. À maioria ajusta-se a definição que Lenine deu
a certos esquerdistas: "pequeno burgueses enraivecidos". Frustrados,
expressam a sua recusa do capitalismo na adesão a projectos radicais de
transformação rápida da história.
Quase todos, –
como aconteceu aos líderes do Maio de 68 parisiense – voltam a
integrar-se no sistema após uma breve militância pseudo-revolucionária.
A mitificação de Trotsky
As campanhas
anti-Trotsky promovidas pelos partidos comunistas na época de Stáline
produziram globalmente um efeito contrário ao visado. Facilitaram o
aparecimento em muitos países de organizações trotskistas e criaram
condições favoráveis à mitificação de Trotsky.
Intelectuais
burgueses e exilados russos, muitos deles ex-comunistas, deram uma
importante contribuição para criar e difundir a imagem de um Trotsky
imaginário. Os grandes diários do Ocidente, do The New York Times ao
Guardian, abriram as suas colunas a essas iniciativas. Compreenderam que
a transformação de Trotsky no herói revolucionário puro, vítima da
engrenagem trituradora de um sistema monstruoso, daria maior
credibilidade às campanhas contra a União Soviética.
A
glorificação de Trotsky é um fenómeno tão lamentável, por falsificar a
História, como a diabolização da União Soviética, inseparável da visão
da época de Stáline como um tempo de horrores.
Cabe aos
epígonos de Stáline – repito – uma grande responsabilidade pelo êxito no
Ocidente da tentativa de utilizar a vitimização de Trotsky como arma do
anticomunismo.
A
historiografia soviética não se limitou a negar a Trotsky um papel
minimamente importante na preparação da Revolução de Outubro e na sua
defesa. Nos Processos de Moscovo Trotsky é acusado em alguns depoimentos
de agente de Hitler que teria levado a sua traição ao ponto de preparar
com o III Reich nazi o desmembramento da jovem república soviética.
Esse tipo de
calúnias é tão absurdo, como expressão de um ódio irracional, como o
esforço realizado por escritores anticomunistas e alguns governos para
criminalizarem o comunismo como sistema comparável ao fascismo. A
falsificação das estatísticas foi levada tão longe que alguns autores
acusam Stáline de ter exterminado ou enviado para campos siberianos mais
de cem milhões de pessoas [1] . A atribuição do Nobel de Literatura a
um escritor reaccionário tresloucado como Solzenitzyn (que se orgulhava
de odiar a Revolução Francesa) traduziu bem a necessidade que a
burguesia sentia no Ocidente de satanizar a União Soviética, negando a
herança progressista e humanista da Revolução de Outubro.
É nesse contexto que se insere o reverso da medalha, isto é a reinvenção de Trotsky.
Duas obras do
próprio Trotsky e a trilogia de Deutscher – o Profeta Armado, o Profeta
Desarmado e o Profeta Banido – funcionaram também como estímulos na
fabricação do mito [2] .
Trotsky, em
"A Minha Vida" [3] , a sua autobiografia, não atribui grande significado
às divergências entre ele e Lenine durante os anos que precederam a
Revolução de Fevereiro de 17. E na sua "História da Revolução Russa" [4]
valoriza muito as convergências desde o início da Revolução de Outubro e
são escassas as referencias a questões fundamentais em que assumiram
posições diferentes, por vezes antagónicas. Somente nos ensaios editados
sob o título de "A Revolução Permanente" [5] , ao responder a criticas
de Karl Radek e Stáline, reconhece que Lenine o criticou por divergirem
no tocante ao papel dos sindicatos e ao Gosplan, mas subestima a
importância dessas discordâncias. Simultaneamente, ao identificar em
Lenine o grande líder da Revolução e expressar profunda admiração pelo
ideólogo, o estratego e o estadista, encaminha, com habilidade, o leitor
para a conclusão de que, no tocante aos problemas fundamentais da
construção de uma sociedade socialista na Rússia revolucionária, existiu
entre ambos nos últimos anos da vida de Lenine uma confiança mútua e
uma grande harmonia no trabalho.
Tal conclusão deforma a História.
Deutscher,
que se assume como um admirador entusiástico de Trotsky e confessa odiar
Stáline, projecta uma imagem distorcida do biografado. Não esconde as
divergências dele com Lenine, mas, procurando ser objectivo no relato
dos factos, esforça-se por persuadir os leitores de que, nos últimos
meses da sua vida, pressentindo a proximidade da morte, Lenine via em
Trotsky o membro do Politburo mais indicado para lhe suceder na chefia
do Estado Soviético.
A conclusão carece de fundamento, é puramente subjectiva.
O próprio
Deutscher sublinha que a velha guarda bolchevique, embora reconhecendo o
talento de Trotsky como estadista, nunca viu nele um homem do Partido. O
seu passado, como menchevique, não fora esquecido. O carácter de
Trotsky, a sua vaidade, o estilo autoritário, a sua tendência para a
crítica demolidora quando discordava de companheiros de luta inspiravam
desconfiança e até rancor.
É
significativo que logo após a morte de Lenine, Olminski, muito ligado a
Stáline, tenha proposto a publicação de uma carta datada de 1912,
encontrada nos arquivos da Policia Czarista, na qual Trotsky,
dirigindo-se a Tchkeidzé, um destacado contra-revolucionário, descrevia
Lenine como "um intrigante" um "desorganizador" e um "explorador do
atraso russo". [6]
A sugestão
não foi então atendida, mas na campanha contra Trotsky a recordação do
seu passado anti-bolchevique tornou-se permanente e desempenhou um papel
importante.
A carta de Lenine ao Congresso
Na fase final
da sua doença, Lenine aproximou-se de Trotsky, mas não por ter
reformulado a opinião que formara sobre ele. Quando Stáline na primavera
de 1922 foi eleito secretário-geral do jovem Partido Comunista da União
Soviética, Lenine, para lhe contrabalançar a influência, propôs a
nomeação de quatro vice-presidentes para o Conselho dos Comissários do
Povo, ou seja o governo. Trotsky foi um deles, Rikov, Tsurupa e Kamenev
os outros.
Trotsky
recusou. A simples ideia de partilhar o cargo de vice de Lenine com três
camaradas – dois dos quais já o exerciam – feriu o seu desmesurado
orgulho. Lenine sentiu decepção, mas por duas vezes insistiu sem êxito.
Quando ele recusou novamente, Stáline levou o Politburo a aprovar, em
Setembro de 22, uma resolução censurando Trotsky por indiferença perante
o cumprimento do dever.
Lenine,
defensor tenaz do papel dirigente do PCUS, era partidário de uma
separação de tarefas entre o Partido e o Estado para evitar problemas
graves que principiavam a esboçar-se.
Inválido,
sentindo a proximidade da morte, ditou entre 23 e 31 de Dezembro de 1922
uma Carta ao XIII Congresso do Partido Comunista. Nessa importante
mensagem transmitiu opiniões que iriam suscitar muita polémica, ao
esboçar o perfil dos cinco camaradas que, com ele integravam o
Politburo: Zinoviev, Kamenev, Stáline, Bukharine e Tomski (Kalinine e
Piatakov eram suplentes e Molotov assessor).
Esse
explosivo documento foi lido aos delegados ao Congresso, realizado em
Maio de 1924, pela companheira de Lenine, Krupskaya, quatro meses após a
sua morte.
Mas, por
iniciativa de Stáline aprovada pelo Politburo, a Carta não foi
publicada. O povo soviético somente tomou conhecimento do seu conteúdo
após o XX Congresso.
Lenine
expressava muita preocupação pelo tenso relacionamento entre Stáline e
Trotsky por identificar nele um perigo para a estabilidade do partido.
"O camarada
Stáline – afirmava – tendo-se tornado secretário-geral, concentrou nas
suas mãos um poder imenso, e não estou certo de que saiba sempre
utilizar este poder com suficiente prudência. Por outro lado, o camarada
Trotsky, como o demonstrou já a sua luta contra o CC a propósito da
questão do Comissariado do Povo das Vias de Comunicação, não se
distingue apenas pela sua destacada capacidade. Pessoalmente é talvez o
homem mais capaz do actual CC, mas peca por excessiva confiança em si
próprio e deixa-se arrastar excessivamente pelo aspecto puramente
administrativo das coisas". [7]
Numa adenda à
carta de 24 de Dezembro, datada de 4 de Janeiro de 1923, Lenine lamenta
que Stáline seja demasiado rude e acrescenta: "este defeito, plenamente
tolerável no nosso meio e nas relações entre nós, comunistas, torna-se
intolerável no cargo de secretário-geral. Por isso proponho aos
camaradas que pensem na forma de transferir deste lugar e de nomear para
este lugar outro homem que em todos os outros aspectos se diferencie do
camarada Stáline apenas por uma vantagem, a saber: que seja mais
tolerante, mais leal, mais cortês e mais atento para com os camaradas,
menos caprichoso, etc."
Mas não sugeriu qualquer nome para a substituição de Stáline.
Quando
Trotsky conversou com ele pela última vez, Lenine, cuja doença evoluiu
rapidamente para o desfecho que todos temiam, pediu-lhe que colaborasse
numa acção conjunta contra a burocratização do Partido e do Estado e de
condenação da política repressiva que Stáline e Ordjonikidze tinham
executado na Geórgia.
Mas são do domínio da fantasia as afirmações que atribuem a Lenine o desejo de ver Trotsky à frente do Partido ou do Estado.
Tal ideia – contra o que sugere Deutscher – nunca lhe terá aflorado o pensamento.
Via nele o mais dotado intelectualmente dos líderes do Partido, mas incapaz de controlar "uma autoconfiança excessiva".
O Choque humano e ideológico
Durante
muitos anos, desde o início do século até à Revolução de Fevereiro,
Lenine criticou Trotsky com dureza e este retribuiu sempre.
Lenine,
admirando o seu talento, identificava nele um oportunista e um
conciliador. A sua relação com os mencheviques, partido a que pertenceu,
inspirava-lhe profunda desconfiança. Não lhe apreciava o carácter,
marcado por uma impulsividade e uma arrogância que o levavam a assumir
posições imprevisíveis e com frequência contraditórias em bruscas
reviravoltas.
A troca de acusações exprimiu-se em determinados períodos por uma veemência verbal pouco comum.
Após a
expulsão de Trotsky do Partido, essas opiniões de Lenine, emitidas em
reuniões do Partido Bolchevique, em documentos, e cartas pessoais, foram
tornadas publicas na URSS e amplamente divulgadas em países
estrangeiros.
Trotsky, como
já recordei, tenta nos livros publicados no exílio ocultar ou
desvalorizar o significado das suas divergências com Lenine, pondo toda a
ênfase na colaboração entre ambos a partir da Revolução de Fevereiro de
1917.
Os seus
biógrafos afirmam que após a Conferência de Zimmerwald, que condenou a
guerra imperialista, as suas posições quase coincidiram com as assumidas
pela fracção bolchevique do Partido Operário Social-Democrata da
Rússia-POSDR. Não é essa a opinião de Lenine. Numa carta a Boris
Souvarine, datada de Dezembro de 1916, Lenine lembra que Trotsky acusara
os bolcheviques de "divisionistas". "Em Zimmerwald – sublinha – recusou
incorporar-se na esquerda local e juntamente com a camarada Roland
Horst (uma holandesa) representou o "centro" [8]
Trotsky,
vindo do Canadá, regressou à Rússia antes de Lenine. Numa carta à sua
intima amiga Ines Armand, datada de 19 de Fevereiro de 1917, Vladimir
Ilitch incluiu o seguinte desabafo: "Chegou Trotsky e este canalha
entendeu-se imediatamente com a ala direita do “Novi Mir” contra os
zimmerwaldistas de esquerda. Tal como lhe digo! Assim é Trotsky! Sempre
fiel a si mesmo, revolve-se, trafulha, finge de esquerdista e ajuda a
direita quando pode." [9]
Escritores
trotskistas como Alfred Rosmer e Rosenthal omitem que meses depois da
sua adesão ao Partido Bolchevique, quando já exercia funções de grande
responsabilidade, como dirigente, Trotsky divergiu de Lenine em questões
de grande importância em momentos cruciais.
A
participação de Trotsky em Brest Litowski continua a ser tema polémico.
Então Comissário do Povo para as Relações Exteriores, chefiou a
delegação russa nas negociações de paz com os alemães.
Sobre o tema, dirigindo-se ao VII Congresso Extraordinário do Partido Bolchevique da Rússia, Lenine declarou:
"Devo
referir-me agora à posição do camarada Trotsky. Na sua actuação devemos
distinguir duas fases: quando iniciou as negociações de Brest,
utilizando-as excelentemente para a agitação, todos estivemos de acordo
com ele. Trotsky citou parte de uma conversa comigo, mas devo
acrescentar que concordamos manter-nos firmes até ao ultimato dos
alemães, mas cederíamos após ele. Os alemães intrujaram-nos porque de
sete dias roubaram-nos cinco. A táctica de Trotsky foi correcta enquanto
se destinou a ganhar tempo; tornou-se equívoca quando se declarou o fim
do estado de guerra, mas não se assinou a paz. Eu tinha proposto com
toda a clareza que se assinasse a paz de Brest". [10]
A transcrição
(parte de uma intervenção extensa) é esclarecedora porque a posição
assumida por Trotsky ("nem paz nem guerra"), ignorando as instruções de
Lenine, levou os alemães a romper a trégua e desencadear uma ofensiva de
consequências desastrosas, ocupando enormes extensões do país. Quando o
Tratado de Paz foi finalmente assinado, as condições impostas foram
muito mais severas do que as inicialmente apresentadas pelo Império
Alemão.
Lenine criticou então duramente Trotsky. Mas não era rancoroso.
Transferiu-o
do Comissariado das Relações Exteriores para o das Questões Militares.
Conhecia as qualidades de organizador de Trotsky e este na sua nova
tarefa teve um papel fundamental na organização do Exército Vermelho, na
condução vitoriosa da Guerra Civil e na derrota da intervenção militar
das potências da Entente.
Mas logo em
1920, Trotsky e Lenine divergiram profundamente durante o debate sobre
os Sindicatos e a sua função na Rússia soviética, e no tocante ao
monopólio do Comércio.
Trotsky
publicara um folheto intitulado "O papel e as tarefas dos sindicatos".
Lenine submeteu as teses por ele defendidas e a posição que sobre o
assunto assumira no Comité Central a uma critica duríssima [9] .
Manifestou espanto perante "quantidade de erros teóricos e de evidentes
inexactidões", estranhando que no âmbito de uma discussão tão importante
no partido Trotsky tivesse produzido "algo tão lamentável em vez de uma
exposição cuidadosamente meditada". Nessa critica alertou para
divergências de fundo de ambos quanto aos "métodos de abordar as massas,
de ganhar as massas, de nos vincularmos às massas".
Concluindo,
Lenine, que criticou simultaneamente, com idêntica veemência as posições
assumidas por Bukharine, afirmou: "As teses do camarada Trotsky são
politicamente prejudiciais. A base da sua politica é a pressão
burocrática sobre os sindicatos. Estou certo de que o Congresso do nosso
Partido a condenará e repudiará" [11] .
Assim aconteceu.
Julgo útil
chamar a atenção para o facto de que Lenine manteve a sua confiança em
Trotsky como principal responsável pelas operações em que o Exército
Vermelho estava então envolvido em múltiplas frentes.
A contradição
aparente facilita a compreensão do carácter profundamente democrático
da ditadura do proletariado na Rússia soviética nos anos posteriores à
Revolução de Outubro.
As Revoluções
Russas, a partir de 1905, forjaram gerações de revolucionários
profissionais com um talento, uma criatividade, uma coragem e uma
tenacidade que assombraram os Historiadores. Dificilmente se encontra um
precedente para essas gerações que, aliás, tiveram continuidade na que
se bateu contra o Reich nazi e o destruiu, salvando a humanidade de uma
tragédia.
O
estabelecimento de consensos na época revolucionária foi sempre difícil.
Sem o imenso prestigio e o génio de Lenine – é a palavra adequada para o
definir – eles não teriam sido possíveis, como ficou transparente nas
jornadas de Brest Litowski.
Deutscher, um
trotskista assumido, recorda que a estabilidade no Politburo e no CC
nascia da "autoridade incontestável de Lenine e da sua capacidade de
persuasão e habilidade táctica que, em geral, lhe permitiam conseguir a
maioria de votos para as propostas que apresentava à medida que surgiam
os problemas". [12]
Tinha o dom
raríssimo, quando transmitia um projecto polémico a camaradas, de os
levar a admitir que haviam sido eles e não ele, Lenine, que o haviam
concebido.
Nos cinco
anos gloriosos posteriores à vitória da Revolução, Lenine foi colocado
algumas vezes em minoria, perdendo na discussão de questões importantes.
Submeteu-se nessas ocasiões à maioria. Assim funcionava então o
centralismo democrático. Mas quase sempre os seus camaradas acabavam por
reconhecer que ele estava certo.
Chamo a
atenção para a importância da excepcionalidade de Lenine porque ela lhe
permitiu uma colaboração harmoniosa com um feixe de revolucionários tão
heterogéneo como o da sua época. Ele conseguiu que formassem uma equipa –
não os poupando a severas criticas quando necessário – dirigentes como
Stáline, Trotsky, Bukharine, Kamenev, Zinoviev, Preobrazhensky,
Alexandra Kolontai, Dzerzhinski, Rikov, Piatakov, Tomski, Sverdlov,
Lunacharski, Molotov, Kalinine, Vorochilov, Budiony, Kirov, Rakovski,
Rabkrin, etc.
Essa unidade
na acção e no pensamento, mesmo entre os membros da velha guarda
bolchevique, desapareceu quando Lenine morreu. Sem ele, era impossível.
---///---
Não se pode
escrever algo sobre Trotsky sem citar Stáline. Incluo-me entre os
comunistas, poucos, que recusam simultaneamente a glorificação ou a
satanizarão de ambos.
A burguesia
persiste em projectar de Stáline somente a imagem negativa, porque ao
apresentá-lo como um ditador satânico facilita a criminalização da União
Soviética e do comunismo como ideologia monstruosa.
Terei sido
dos primeiros comunistas portugueses a criticar o dogmatismo
subjectivista de Stáline num livro apreendido pela ditadura brasileira
em 1968 [13] . Mas a minha discordância da sua postura perante o
marxismo e a condenação dos seus métodos e crimes não me impedem de
reconhecer que Stáline foi um revolucionário cuja contribuição para a
transição do capitalismo para o socialismo na União Soviética foi
decisiva. Sem a sua acção à frente do Partido e do Estado, a URSS não
teria sobrevivido à agressão bárbara do Reich nazi, sem ela a pátria de
Lenine não se teria transformado em poucas décadas na segunda potencia
mundial, impulsionando um internacionalismo que apressou a
descolonização, incentivou e defendeu revoluções no Terceiro Mundo e
estimulou poderosamente a luta dos trabalhadores nos países
desenvolvidos do Ocidente.
No lado oposto do quadrante, recuso também a mitificação de Trotsky.
A sua transformação em herói revolucionário, tal como a sua satanizarão como contra-revolucionário, deformam a História.
São
caluniosas as acusações (nomeadamente nos Processos de Moscovo) que o
apresentam como cúmplice dos projectos de Hitler para destruição da
URSS.
Dotado de um
talento incomum, brilhante escritor e polemista, distinguiu-se desde a
juventude por uma oratória que empolgava as massas e o levou aos 25 anos
à presidência do Soviete de Petrogrado durante a Revolução de 1905.
A sua adesão
ao Partido Bolchevique, pouco antes da Revolução de Outubro, assinalou o
início de uma viragem na sua trajectória politica e humana. Foi com o
pleno apoio de Lenine que nas jornadas que precederam a insurreição de
Outubro voltou a presidir ao Soviete de Petrogrado e posteriormente
cumpriu tarefas da maior responsabilidade como Comissário para as
Relações Exteriores e Comissário para as Questões Militares, missão que
na prática fez dele o chefe do Exército Vermelho.
Mas a
tentativa dos seus epígonos e de Historiadores burgueses de o guindar a
"companheiro de Lenine", colocando-o ao nível do líder da Revolução,
falseia grosseiramente a História.
Trotsky não
foi nem o revolucionário puro que os trotskistas veneram como herói da
humanidade, nem o traidor fabricado por Stáline.
Mas com o rodar dos anos o mito nascido da sua vitimização tomou forma, resistiu e sobrevive.
Enquanto
Gorbatchov, que abriu caminho como secretário-geral do PCUS à destruição
da URRS, tende – repito – a ser esquecido, o mito Trotsky permanece.
Poucos lêem hoje os livros em que condensou o seu pensamento e escreve
sobre a sua participação na História. Mas a atitude dos milhares de
pessoas que anualmente visitam a casa de Coyoacan, na capital do México,
onde viveu e foi assassinado, ilumina bem o enraizamento desse mito.
Não é fácil
compreender o fenómeno, porque o trotskismo, como ideologia e
instrumento de acção revolucionária, fracassou, não correspondendo
minimamente às aspirações do seu criador. [14]
Admito que
Trotsky não se reveria em qualquer das dezenas de partidos trotskistas
que hoje em muitos países o tomam por inspirador e guia.
Serpa e Vila Nova de Gaia, Novembro de 2008
NOTAS:
1. Jean Salem, Lenine e a Revoluçao, Ed. Avante, Lisboa, 2007
2. Isaac Deutscher, Trotsky, Ed. Civlizaçao Brasileira,1968, São Paulo.
3. Leon Trotsky, Histoire de la Revolution Russe, Ed Seuil, Paris, 1950.
4. Leon Trotsky, My Life, Ed. Penguin, London, 1988
5. Leon Trotsky, La Revolución Permanente, Ed Yunque, 2ª edición, Buenos Aires, 1977
6. Isaac Deutscher, O Profeta Desarmado, Obra citada, pág 44
7. Existem
traduções em diferentes línguas da Carta de Lenine ao XIII Congresso do
PCUS. As diferenças entre os textos que conheço são formais, mínimas.
Utilizei nas citações feitas, a tradução de Edições Avante, 1979.
8. V.I.Lenine, Textos extraídos das Obras Completas de Lenine, Ed. Estampa, Lisboa 1977, pág 260
9. Obra citada, pág 269
10. Obra citada, pág 270/271
11. Obra citada, pág 300
12. Isaac Deutscher, Obra citada, pág 88
13. Miguel Urbano Rodrigues, Opções da Revolução na América Latina, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1968
14. Ver Leon Trotsky, Revolução e Contra-revolução, Ed. Laemmert, Rio de Janeiro, 1968.
Neste livro,
que enfeixa ensaios redigidos em 1930 e1931, em Prinkipo, na Turquia,
onde estava exilado, Trotsky, numa atitude de esquerdismo profético,
identifica na crise iniciada em 1929 o prólogo de uma era de revoluções
cujo desfecho seria o socialismo.
Transcrevo dessa obra algumas passagens expressivas de uma teimosa fidelidade à sua concepção da "revolução permanente":
a) "É muito
provável que o desenvolvimento progressivo da revolução espanhola dure
por um período de tempo mais ou menos longo. E, por aí, o processo
histórico abre, de algum modo, um novo crédito ao comunismo espanhol".
(pág.20)
b) "A
situação na Inglaterra pode também não, e não sem justas razões, ser
considerada como pré-revolucionária, se se admitir com rigor, que entre
uma situação pré-revolucionária e uma situação imediatamente
revolucionária pode mediar um prazo de vários anos, período em que se
produzirão fluxos e refluxos". (pág 20)
c) "É
inevitável e relativamente próxima uma mudança na consciência
revolucionária do proletariado americano, a qual já não será mais “um
fogo de palha” que se apaga facilmente, mas o inicio de um verdadeiro e
grande incêndio revolucionário. (pág 24)
d) A aventura
iniciada pelo czar na Manchúria provocou a guerra russo-japonesa; a
guerra provocou a Revolução de 1905. A aventura japonesa actual na
Manchúria pode acarretar uma revolução no Japão. (pág 24)
A evolução da História nesses quatro países desmentiu quase imediatamente as previsões de Trotsky.
O original encontra-se em http://www.alentejopopular.pt/pagina.asp?id=685
e em http://www.odiario.info/articulo.php?p=973&more=1&c=1
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
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