Da Moto Adventure
UMA VOLTA NO TEMPO
Rodar de moto por Cuba é descobrir um mundo surpreendente ( e apaixonante )
por Marcelo Leite
Publicado na edição 146 da revista Moto Adventure
Quando cheguei a Portugal, depois de ter cumprido meu percurso pelos 
cinco continentes, precisava definir uma rota para voltar para casa. 
Voltar pelo lado oeste da América do Sul se mostrou uma alternativa 
interessante, afinal, eu passaria por Cuba, um velho sonho meu – e esta 
seria minha conexão entre Europa e América do Sul.
Comecei a acionar vários contatos e entidades para definir como eu 
poderia entrar, rodar com minha moto e, depois, sair de Cuba. As 
barreiras e dificuldades pareciam confirmar os conselhos que recebi para
 desistir dessa idéia. Chegaram a me dizer que seria “impossível”, que 
ninguém teria levado sua própria moto para lá e que eu estaria em “busca
 de problemas”. Mas a vontade de realizar meu sonho colocou minha moto 
encaixotada no Terminal de Cargas do Aeroporto de Havana.
NA TERRA DE FIDEL
Começaram, então, minhas peripécias com a Alfândega e o Departamento 
de Trânsito. Não havia um caso similar e tampouco um procedimento 
formalmente estabelecido para tratar do meu caso. Foi estipulado, então,
 um novo procedimento para garantir que eu entrasse e saísse com minha 
moto. Recebi uma placa provisória e uma autorização temporária de 
circulação pela ilha. Vale lembrar que, com oficiais me ajudando em um 
ambiente de colaboração e brincadeiras, percebi que em Cuba tudo seria 
diferente ( para o bem e para o mal ).
MOTOS
Em 
Cuba há muitas motos, principalmente, side-cars. A frota reflete a 
história do país. A influência norte-americana dos anos 1950 deixou 
muitas Harley-Davidson por lá. Elas estão impecavelmente conservadas e 
rodam por Havana. Do mesmo período são algumas raras e lindas motos 
europeias, como BMW R69, Triumph, Norton e até Matchless. O período 
pós-revolução e de influência soviética deixou um parque de modelos da 
Ural, CZs e Jawas, a maioria, em versão side-car. As indestrutíveis 
motos alemãs orientais MZ também são dessa época.
FOCO DAS ATENÇÕES
Imagine,
 então, como é rodar por lá com uma BMW GS, toda equipada e “cheia de 
botõezinhos”? A atração é garantida, no sinal, nas ruas ou estradas. E, 
como a BMW GS é um dos melhores produtos que a “sociedade de consumo” já
 produziu, imagine o reflexo disso. Rodando em plena Cuba socialista, 
poderia ser quase uma provocação, mas, ao final, torna-se um excelente 
pretexto para longas conversas com os cubanos, que são inteligentes e 
vivem intensamente a própria história.
GENTE BOA
Os
 primeiros dias em Havana me foram estranhos. Tudo funciona 
diferentemente do que conhecemos. E não havia como não tentar entender a
 vida daquele povo. As relações são fáceis e se estabelecem rapidamente.
 Não demorou para eu estar com o pessoal em um moto clube local. 
Reunimo-nos, montamos uma rota para as semanas seguintes e as pessoas 
das principais cidades foram acionadas. como se não bastasse, veicularam
 uma reportagem sobre o assunto no rádio. Algumas vezes, quando chegava a
 um local, alguém se lembrava da notícia, o que facilitava os contatos. 
Sempre fiquei hospedado em casas de cubanos. Às vezes pagando, às vezes 
como convidado.
BELAS PARAGENS
Em meio a tudo 
isso, rumei para Cienfuegos, na costa sul. O lugar tem um charme todo 
especial pela influência dos colonos franceses do século passado. ali, a
 arquitetura está preservada, seja nas casas coloniais ( com colunas e 
varandas no centro ) ou nas antigas mansões à beira-mar. Já na pequena 
Trinidad, surge o velho estilo colonial espanhol e as ruas estreitas são
 divididas por turistas estrangeiros e camponeses. À noite, música da 
melhor qualidade ecoa por todos os lados.
MAIS ESTRADA!
Retomei
 a estrada em direção ao extremo oriente da ilha. Cheguei a Santiago de 
Cuba apenas dez dias após o furacão Sandy ter passado por ali. Ventos de
 até 300km/h arrasaram a área rural, acabando com as plantações e 
derrubando mais de 10 mil árvores. Obviamente, o abastecimento da cidade
 foi afetado nos primeiros dias, mas tudo voltou à normalidade. A rede 
elétrica já fora restabelecida nas casas, mas as ruas ainda estavam às 
escuras.
TRADIÇÃO MUSICAL
Santiago tem uma 
pulsação forte e diferente de Havana. É o berço dos maiores mitos da 
música tradicional cubana. Em pleno dia, na praça da catedral, a 
Orquestra Municipal faz seu show no mais alto nível técnico, empolgando a
 todos.
PERCALÇOS
Geralmente, as estradas cubanas
 são boas e tranquilas. Nas cidades, algumas ruas são esburacadas e as 
faixas centrais concentram uma incrível quantidade de óleo, devido aos 
carros e caminhões velhos em circulação. Há gasolina e borracharias por 
todos os cantos. Os mecânicos cubanos são ótimos e criativos. Minha GS, 
que nunca teve vazamentos em seus 80.000km, apresentou este problema no 
motor e no cardã, ao mesmo tempo. O vazamento do motor foi fácil 
arrumar, mas o do cardã foi na base do “jeitinho”, até que eu chegasse à
 América do Sul para um reparo definitivo. A polícia cubana me parou 
várias vezes, mas nunca me pediu os documentos. Sempre foi para saber se
 precisava de alguma coisa ou para fazer perguntas sobre a moto. Ali, 
basta respeitar as regras essenciais e andar de luz apagada durante o 
dia.
CAMAGUEY
Também passei alguns dias em 
Camaguey e tive uma experiência especial. É uma cidade de porte médio, 
bem conservada e com um padrão aparentemente acima da média do país. 
Apesar do agito do comércio local, as pessoas parecem levar a vida sem 
estresse. No final da tarde, as mesinhas das docerias, bares e casas de 
xadrez ficam cheias. São famílias ou grupos de amigos jogando conversa 
fora e apreciando o fim do dia.
PAIXÕES
Além do 
xadrez e do baseball, outra paixão cubana é tomar um sorvete na 
Coppelia, ótima sorveteria estatal, com filiais por quase todas as 
cidades do país. As crianças saem da escola e fazem uma farra gostosa 
pelas ruas. Uma turminha me provocou para que eu levasse a moto, à 
noite, na praça, quando todos já teriam jantado e trocado de roupa. E 
assim o fiz, travando conversas gostosas com a criançada e com alguns de
 seus pais. Ainda em Camaguey, conheci Peter, um canadense. Este velho 
motociclista mudou-se para Camaguey, onde comprou uma bela casa. 
Orgulhoso de sua opção, ele me explicou: “Apesar de não ter acesso aos 
produtos que costumava comprar em Vancouver, vivo sem nenhuma 
preocupação, com segurança.”
NOVOS CAMINHOS
No 
caminho de volta para Havana, parei alguns dias em Remédios, uma pequena
 cidade no litoral norte, de onde é possível ir até a famosa Ilha Cayo 
Sta.Maria. rodei quase 3 mil km por Cuba, coheci lugares de beleza 
ímpar, ouvi música excelente e fui a praias dignas de cartão postal… Mas
 o melhor de Cuba são os cubanos. Ou, melhor dizendo, a experiência de 
viver entre eles. Cuba é um país onde as pessoas não sabem o que são 
problemas de segurança, drogas ou miséria. Deixei Cuba para trás, 
sabendo que era hora de embarcar para a Colômbia e, de lá, descer a 
América do Sul, até voltar para casa.
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