Outro 25 de Abril
Iuri MüllerComo se começa uma revolução? A dos Cravos, em Portugal, passou por mais de um caminho. Era 1974, abril, dia 25, poucos minutos depois da meia-noite. A ditadura de Antônio de Oliveira Salazar, que naquele momento já era de Marcelo Caetano, caía pelo seu próprio peso, depois de mais de quarenta anos de isolamento político, censura e autoritarismo. O Estado Novo se desmanchava sem tiros, numa revolução que teve armas nas ruas, mas que não precisou gastar balas. A Revolução dos Cravos passou, também, pelas músicas que se esparramaram pelas ondas do rádio, pelo verso mais famoso de “Grândola, Vila Morena”. E, para além do folclore, pela senhora que distribuiu um ramo de cravos entre os soldados no início da manhã daquele 25 de Abril, que desde 1974 se escreve com o “A” maiúsculo.“Escrever sobre o 25 de Abril, onze anos depois? Para quê? Assinalar a efeméride, cumprir o calendário, desfilar em manifestação, gritar a palavra de ordem? E que mais? Repetir o discurso do ano passado, e do outro, e do outro, como se repetem os gestos, sem pensar neles? Decidir que o 25 de Abril foi a última oportunidade de salvar-se Portugal, e que, falhada ela, não há mais salvação possível?”
José Saramago, “Herculano e o 25 de Abril”, abril de 1985
Ao revés do que ocorria na América Latina no mesmo período, a Revolução dos Cravos foi um golpe militar que afastou do poder uma ditadura que manejava o país com comando civil e econômico. Portugal, que naturalmente já sente o peso enorme da Europa inteira que se ergue a leste, nunca foi tão sozinho como no regime de Salazar. O ditador, que proclamava o lema “orgulhosamente sós” como uma bandeira possível, mais do que nada apartou o país do resto do mundo – território maior do que a mais íngreme ladeira de Lisboa. Ele impedia a entrada de ventos democráticos e tratava de manter as colônias africanas – o que havia restado do Império – com força bruta. Teve bom relacionamento com setores da Igreja Católica, criminalizou os militantes de esquerda, organizou uma polícia do Estado — o PIDE — que agia de forma pontual e eficiente.
O desgaste político visível em 1974 tinha a ver com o que o país deixou de viver com Salazar, com a apatia que o isolamento causou, com o descontentamento que acompanhava as Forças Armadas, com um cansaço, uma estafa, que só uma longa ditadura pode provocar. De modo que o Movimento de Forças Armadas (MFA), parcela formada por oficiais de patentes médias, desde que saiu às ruas, foi extremamente popular. Mesmo que com Caetano o regime tenha arrefecido e vestido alguma roupagem democrática, os portugueses não se contentavam com um meio silêncio, com uma liberdade reduzida à metade. E o povo saudou, país afora, os que se dispuseram a espantar os antigos, e já tão anacrônicos, governantes de Portugal. A partir do 25 de Abril, o país caminharia para eleições democráticas e para a escritura de uma nova Constituição.
A Constituição de 1976, escrita logo após a Revolução dos Cravos e que perdura até hoje, voa alto logo no início do texto. José Saramago, o Prêmio Nobel de Literatura do país, recupera as linhas iniciais nas suas “Folhas Políticas”: “quer-se tônico melhor do que aquele primeiro artigo que, solenemente, entre palmas e abraços, proclama que ‘Portugal é uma nação soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular, e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes?’”. No mesmo artigo, datado de 1977, o escritor comentará que, mesmo tão pouco tempo depois do dia em que os cravos embelezaram as ruas e a história, o novo projeto de país já era tratado como um “mero farrapo de papel”.
A origem dos cravos e a angústia de José Saramago
Afastado o ditador Salazar e controlada a cúpula que tantas vezes se aproximou do fascismo, Portugal tinha direitos plenos para ampliar os sonhos. Logo depois, o Partido Socialista de Mário Soares conseguiu maioria na Assembleia Constituinte, e pôde formar o primeiro Governo Constitucional depois do 25 de Abril. Para o autor de “Memorial do Convento”, a revolução perdeu grande parte dos seus princípios já nos meses seguintes. No artigo intitulado “Portugal, ou Porto Rico?”, Saramago escreve que “olhe-se para a ideia e a prática que o dito governo tem do que seja sociedade sem classes e transição para o socialismo: repare-se nas leis que os ministros produzem e que adequadas maiorias parlamentares têm vindo a aprovar, à esquerda e à direita, segundo a antiquíssima táctica de jogar com os temores mútuos e obedecendo à habilidade elementar de fazer política à vista”.
O período pós-revolucionário, processo levado adiante nos primeiros anos pelo PS, desagradava aos nostálgicos do Estado Novo e também aos comunistas. O governo buscava fortalecer o poder do Estado, mas negociava com partidos de todas as siglas. Portugal, agora nação democrática, buscava um rumo com princípios de maior abertura externa e de conciliação na política local. Não foram poucos os que esperavam outra postura. Celeste Caeiro tinha quarenta anos em abril de 1974, e de modo algum desconfiava que entraria para os livros do seu país quando, às oito e meia da manhã do dia 25, encontrou o chefe na entrada da loja em que trabalhava. Preocupado com as informações que chegavam pelo rádio e com a aglomeração de militares nas ruas de Lisboa, ele avisou Celeste e aos demais funcionários que, naquele dia, não haveria trabalho. Comentava-se que uma revolução estava em curso, e que poderia ser perigoso manter o lugar aberto.
Celeste saiu, e levou com ela um ramo de cravos – alguém havia comprado flores para festejar o primeiro aniversário do negócio, frustrado pela notícia do dia. Ela caminhou poucos metros, já em direção ao caminho de casa, e logo encontrou soldados na rua, ainda cansados da madrugada de vigília. Os homens pediram um cigarro, mas Celeste só tinha um punhado de cravos na mão. Colocou o primeiro no cano de uma das armas, e logo distribuiu os demais. Poucas horas depois, com o andar daquela pequena tropa pela cidade, novas flores surgiram – provavelmente das mãos de vendedores com aguçado sendo histórico. Hoje com 79 anos, Celeste Caeiro recordou aquela manhã, em depoimento para a imprensa portuguesa, como um dos momentos mais bonitos da sua vida: muito porque havia sorrisos e esperanças por toda parte. Talvez Celeste também tenha imaginado que, livre da censura e da amarra mais firme, e sensível ao pequeno gesto das flores, nasceria outro Portugal.
Três anos e meio depois do 25 de Abril, segundo Saramago, em artigo de setembro de 1977, “aprendemos estas e outras elementaridades. Aprendemos, por exemplo, que uns queimaram os dedos, mas que as castanhas as comem os outros. Aprendemos a reconhecer em alguns sorrisos e gravidades da democracia nova os traços recompostos do fascismo velho. Aprendemos que as boas constituições fazem ainda melhores vítimas quando os conceitos da constitucionalidade e inconstitucionalidade são pau para toda obra, sobretudo clandestina”. A Revolução de Abril aparece como tema de boa parte dos artigos do escritor reunidos nas “Folhas Políticas”. Saramago, como boa parte dos militantes do Partido Comunista Português (PCP), viam na Revolução dos Cravos a oportunidade dourada para que se fizessem as transformações necessárias – na política, na economia, na distribuição de renda. Transformação essa que não teria, nem de longe, alcançado os pontos necessários.
A Revolução de ontem, o país de hoje
No início de março deste ano, o atual primeiro-ministro Passos Coelho discursava na Assembleia da República, mas foi interrompido por vozes que desciam das galerias do Parlamento. Manifestantes cantavam, quase quarenta anos depois, a música que serviu como senha para que o MFA tomasse as ruas em 1974. Passos Coelho ouviu a “Grândola, Vila Morena”, com algo de respeito e constrangimento, e sua fala teve de esperar. Portugal vive em 2013 a crise econômica mais aguda das últimas décadas, e não faltam menções aos ideais da Revolução dos Cravos. A crise deixa marcas fundas: o desemprego afasta do mercado mais da metade da população do jovem do país, são milhares os que buscam refúgio fora da Europa, e o desgaste dos partidos tradicionais é inegável.
2013 ainda não passou de abril, e a população já organizou intensas paralisações e mais de uma greve geral. Da composição de Zeca Afonso, o verso mais repetido é “o povo é quem mais ordena”, que pode ser lido em muros, estações de trem, nos adesivos que acompanham o trajeto do visitante. Onze anos depois da Revolução dos Cravos, Saramago se perguntava se valeria a pena voltar ao assunto, discussão que poderia se tornar tão somente um gesto repetido e não pensado. No entanto, trata-se de um assunto que não irá evaporar – pelo menos enquanto Portugal não se libertar de fato, tornando-se a nação soberana que a Constituição de 1976 anuncia sem cumprir. Hoje, dois dias depois de outro 25 de Abril, as palavras de José Saramago seguem atuais: “hoje é dia 25 de Abril, dia bom para pensar nestas coisas. Vivemos um tempo de luta geral. Cada hora é uma batalha de resistência, cada minuto uma escaramuça, cada segundo respira um momento novo”.
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