Do EcoDebate
Um sistema interligado hidroeólico para o Brasil
Joaquim F. de Carvalho I; Ildo L. Sauer II
I Pesquisador visitante do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP. @ –jfdc35@uol.com.br
II Professor titular de Energia do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP. @ –illsauer@iee.usp.br
RESUMO
Discute-se neste artigo a possibilidade que se abre ao Brasil, de –
graças a seus imensos potenciais hídrico e eólico – produzir, de forma
renovável e sustentável, toda a energia elétrica que consome atualmente e
consumirá a partir de 2050, quando, segundo o IBGE, a população estará
estabilizada em 215 milhões de habitantes.
Palavras-chave: Energia renovável, Sistema elétrico sustentável, Segurança elétrica.
Introdução
O Brasil dispõe de potenciais hídrico e eólico que lhe abrem a
possibilidade de produzir, de forma renovável e sustentável, toda a
energia elétrica que consome no presente e consumirá a partir de 2050,
quando, segundo o IBGE, a população estará estabilizada em 215 milhões
de habitantes.
A interligação dos parques eólicos com a rede hidrelétrica, visando
estruturar um sistema hidroeólico, contribuirá para suavizar a
intermitência dos ventos, pois isso permite que se firme a energia
eólica, mediante a economia da água dos reservatórios hidrelétricos,
para ser usada na geração de eletricidade durante as estações secas, nas
quais normalmente os ventos são mais fortes e fartos (Carvalho; Sauer,
2012).
A interligação dos parques eólicos entre si também contribui para
amenizar o problema da intermitência dos ventos, por meio do chamado
“efeito portfólio”, pelo qual, à semelhança de uma carteira de ações na
bolsa de valores, a produção conjunta de todos os parques varia menos do
que as produções individuais de cada um, isoladamente.
Graças ao seu imenso potencial hidrelétrico – e à possibilidade,
ainda existente, de se implantarem grandes reservatórios de acumulação
-, o Brasil tem uma extraordinária vantagem comparativa em relação aos
Estados Unidos e à maioria dos países europeus e asiáticos, que são
obrigados a apelar para as usinas termelétricas convencionais ou para as
centrais nucleares.
Há, ainda, o potencial de espécies vegetais direta ou indiretamente
aproveitáveis como fonte de energia, como a cana de açúcar, por exemplo.
Pequenas e médias usinas termelétricas a bagaço de cana poderiam, em
conjunto, adicionar ao sistema interligado uma capacidade da ordem de 15
GW, numa estimativa conservadora (Única, 2008).
O potencial hidrelétrico
Ao lado de requisitos técnicos, econômicos e ambientais, o
aproveitamento do potencial hidrelétrico deve respeitar o direito dos
habitantes das regiões a serem alagadas, cabendo ao governo a
responsabilidade de acomodar as populações ribeirinhas, mediante a
execução de programas de reassentamento planejados em cooperação com as
lideranças locais.
Essa é uma conditio sine qua non para a construção de
reservatórios de acumulação na Amazônia, sem os quais a curva de
armazenamento de energia será cruzada pela curva de aversão ao risco de
escassez – e o sistema elétrico brasileiro entrará em colapso.
Determinados segmentos da sociedade, no entanto, têm a percepção de
que a geração hidrelétrica é invariavelmente deletéria, por causar a
“artificialização das bacias hidrográficas” e a degradação da qualidade
de vida das populações locais.
Devido a essa percepção equivocada, o Brasil corre o risco de ser
obrigado a imitar países que, não dispondo de vantagens como as
brasileiras, têm que apelar para as ambientalmente deletérias usinas
termelétricas convencionais e/ou para as centrais nucleares, expondo
suas populações ao risco de acidentes catastróficos, como os que por
muito pouco não aconteceram há 33 anos em Three Mile Island, nos Estados
Unidos, e há 29 anos em Saint-Laurent-des-Eaux, na França – e de fato
aconteceram há 26 anos em Chernobyl, na Ucrânia, e há dois anos em
Fukushima, no Japão.
Na verdade, os reservatórios hidrelétricos podem ser aproveitados
para múltiplas finalidades, tais como regularização de vazões,
transporte fluvial, irrigação de grandes áreas visando à produção
agrícola, pesca interior, turismo ecológico etc. Todos esses usos
requerem a proteção das nascentes e a preservação das matas ciliares,
sendo, portanto, ambientalmente benéficos – ao contrário do que supõem
os adversários emocionais dos reservatórios hidrelétricos.
Um notável exemplo de uso múltiplo de bacia hidrográfica é o da usina
hidrelétrica de Três Marias, originalmente projetada apenas como
reservatório de regularização, para irrigar 100 mil hectares do Projeto
Jaíba, em Minas Gerais. Esse reservatório (que cobre uma área maior do
que o dobro da Baía da Guanabara) é responsável pelo desenvolvimento da
outrora paupérrima região nordeste de Minas. A geração hidrelétrica foi
apenas uma decorrência de sua construção.
Outro exemplo é o da hidrelétrica de Sobradinho, que permitiu o
desenvolvimento do maior polo de fruticultura irrigada do Brasil (Veiga
Pereira et al., 2012).
Ainda outros exemplos são algumas hidrelétricas da Light e da Cesp,
cujos reservatórios regularizam a vazão da bacia do Rio Paraíba do Sul e
permitem a captação de água para a região metropolitana do Rio de
Janeiro e algumas cidades do trecho paulista daquela bacia.
Segundo a Empresa de Pesquisa Energética, o potencial hidrelétrico
brasileiro passível de ser técnica e economicamente aproveitado nas
atuais condições de tecnologia é de 250 GW, dos quais 83 GW já estão em
aproveitamento (EPE, 2012).
Dos 167 GW que ainda poderiam ser aproveitados, cerca de 108 GW situam-se na Amazônia e 59 GW nas demais regiões do país.
Admitamos que, por motivos sociais e ambientais, 20% do potencial
amazônico permaneçam intocados. Admitamos também que, devido a impactos
de mudanças climáticas, caia em cerca de 15% a energia natural afluente,
assegurada pelo fluxo dos rios da região (Schäffer, 2011).
Nesse caso, restariam 73 MW a serem instalados na Amazônia.
Suponhamos, ainda, que 10% do potencial das demais regiões fiquem
intocados e desconsideremos as previsões de que as mudanças climáticas
causarão aumentos de vazão nos rios das regiões Centro-Sul e Sul.
Sobraria, portanto, um potencial da ordem de 53 GW, fora da Região
Amazônica.
Assim, em adição aos 83 GW já em aproveitamento, ainda poderiam ser
construídas hidrelétricas totalizando uma capacidade da ordem de 126 GW,
de modo que o parque hidrelétrico brasileiro, como um todo, poderá ter
uma capacidade total de 209 GW.
A fim de assegurar que a energia armazenada seja suficiente para
suprir o sistema durante as estações secas, o volume global dos
reservatórios brasileiros deverá duplicar, tornando indispensável a
implantação dos grandes reservatórios já inventariados e ambientalmente
passiveis de serem aproveitados, em particular na Amazônia. Nesse caso, a
área alagada seria inferior a 0,6% da área daquela região (incluindo a
área normalmente já ocupada pelos rios, nas estações chuvosas). Parece
claro que tal impacto pode ser assimilado em pouco tempo pelo
ecossistema regional.
Assinale-se que alterações causadas por desmatamentos comprometeriam a
vazão dos rios, inviabilizando as próprias hidrelétricas (Carvalho,
2012). Assim, ao atribuir concessões para a exploração dessas usinas, o
governo deve adotar a política de obrigar contratualmente (sob pena de
multas e cassação das concessões) os concessionários a manterem guardas
florestais, com a atribuição de fiscalizar e proteger as nascentes,
matas ciliares e outros ecossistemas sensíveis, situados na região de
influência dos reservatórios.
O potencial eólico
Em 2001, o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Eletrobras/Cepel)
realizou um inventário do potencial eólico brasileiro, estimando-o em
143 GW para turbinas encontradas no mercado, instaladas em torres de 50
metros.
Estudos mais recentes mostram que, com o desenvolvimento de turbinas
mais eficientes e torres mais altas, o potencial pode superar 280 GW.
As perspectivas de se inventariar um potencial ainda maior são muito
auspiciosas, com os ganhos de escala e aprendizado, resultantes do
desenvolvimento tecnológico e da nacionalização da cadeia produtiva
eólica (Ricosti; Sauer, 2012).
Acresce que as mudanças climáticas deverão causar um impacto bastante positivo sobre o potencial eólico (Schäffer, 2011).
Naturalmente, a implantação de parques eólicos deve ser planejada por
forma a evitar que interfiram nas rotas de migração da fauna alada, ou
provoquem impactos acústicos acima de limites toleráveis, em regiões
habitadas.
Um sistema hidroeólico
Um sistema interligando as hidrelétricas com as eólicas e as
termelétricas a biomassa, com as capacidades e fatores de capacidade
indicados na Tabela 1, poderá gerar cerca de 1.103 GWh por ano.
As usinas térmicas a gás natural já existentes seriam acionadas (com
suprimento flexível de combustível) apenas em períodos hidroeólicos
críticos, otimizando a operação do sistema e servindo como seguro para
reduzir riscos de racionamento (Carvalho; Sauer, 2012).
Para isso, será necessário realizar grandes investimentos na
modernização dos sistemas de transmissão e distribuição, inclusive
mediante o emprego de tecnologias * Para isso, será necessário realizar
grandes investimentos na modernização dos interligado, o f.c. deve
superar a média ponderada dos sistemas isolados avançadas, como as redes
inteligentes (smart grids), para que o despacho dos parques
eólicos seja continuamente associado ao despacho das hidrelétricas,
elevando consideravelmente o fator de capacidade do sistema interligado
(Carvalho, 2012).
Igualmente necessário é que o planejamento do setor energético seja
mais abrangente, siga diretrizes estratégicas bem definidas para o longo
prazo e seja normativo, diferentemente dos planos feitos nos dias de
hoje, que são influenciados pela conjuntura política, por pressões
corporativas e até por interesses mercantis de curto prazo.
E será indispensável que a Empresa de Pesquisa Energética e o
Operador Nacional do Sistema sejam formalmente vinculados, a fim de
compatibilizar os planejamentos de curto e médio prazos, com a operação
do sistema; evitando os desentendimentos que têm colocado em risco o
suprimento de energia, embora a afluência mínima dos rios brasileiros,
em seu conjunto, não tenha passado por mínimos inferiores a 15% abaixo
da afluência média, nos últimos dez anos.
Considerações finais e conclusão
Neste artigo não foi considerado o potencial fotovoltaico, o qual –
com o desenvolvimento tecnológico nos campos dos semicondutores e das
redes inteligentes – poderá desempenhar um papel muito importante no
sistema elétrico brasileiro.
Tampouco foi considerado o potencial energético dos mares (energia
das ondas, das marés, das correntes marinhas etc.). Considerando que o
Brasil tem mais de oito mil quilômetros de costa atlântica, presume-se
que este potencial seja significativo.
No artigo também não foi tomado em conta o aproveitamento de resíduos
urbanos em minicentrais termelétricas que, em conjunto, podem ter um
potencial muito grande, dada a magnitude do problema colocado pelo
descarte desses resíduos, num pais de população urbana superior a 160
milhões de habitantes.
Quanto aos custos da energia elétrica, esses compõem-se de uma parte
fixa, correspondente à amortização do capital investido – e de uma parte
administrável, composta pelas despesas necessárias ao funcionamento da
usina geradora.
A parte fixa abrange as despesas incorridas na implantação da usina
(projetos, equipamentos, construção, montagem e testes), e a parte
administrável compreende as despesas de operação e manutenção, seguros,
salários, encargos trabalhistas etc. Modicidade tarifária implica
racionalização dessas despesas, sendo, portanto, incompatível com
pressões corporativas e interesses mercantis de curto prazo.
No caso das usinas nucleares, há também os custos do combustível, do
descomissionamento ao fim da vida útil e da administração dos rejeitos
radiativos.
Os custos efetivamente praticados devem ser estabelecidos por meio de
negociações entre o poder concedente e o investidor, nas quais entram
critérios subjetivos tais como “atratividade” para o investidor e
“razoabilidade” para os consumidores; daí o imperativo ético de que o
processo seja absolutamente transparente.
Calcula-se que, no Brasil, o custo da energia hidrelétrica fique em
cerca de R$ 80/MWh e o da nuclear em R$ 200/MWh (Carvalho; Sauer, 2009).
Entre ambos vem a energia eólica, que foi negociada por
aproximadamente R$ 100/MWh, em recentes leilões promovidos pelo
Ministério de Minas e Energia.
À guisa de conclusão, podemos afirmar que um sistema hidroeólico
estruturado nas condições brasileiras seria inteiramente sustentável e
teria capacidade para cobrir indefinidamente a demanda brasileira por
energia elétrica.
De fato, como foi mostrado no item anterior, graças aos seus imensos
potenciais hídrico e eólico, o Brasil poderá estruturar um sistema
hidroeóloico capaz de gerar, de forma renovável e sustentável, cerca de
1.103 GWh por ano.
Assim, a partir de 2050, quando, segundo o IBGE, população estará
estabilizada em 215 milhões de habitantes, o sistema hidroeólico teria
capacidade para oferecer ao país, em caráter permanente, algo em torno
de 5.100 kWh por habitante por ano.
Isso significa que, apenas com o aproveitamento de fontes de energia
limpas e sustentáveis, o Brasil poderá, em matéria de energia elétrica,
equiparar-se a países europeus altamente desenvolvidos.
Por fim, é importante ter em mente que, a partir de um patamar
razoável, o bem-estar de uma sociedade não depende, necessariamente, do
crescimento à outrance da produção física, nem de um grande consumo de energia.
Países como a Suíça e a Alemanha, por exemplo, não crescem desmesuradamente e, em termos per capita,
consomem três vezes menos energia do que os Estados Unidos, no entanto
os suíços e alemães desfrutam de uma qualidade de vida superior à dos
norte-americanos.
Em outras palavras, o desenvolvimento deve ser buscado através do
aprimoramento da educação e da saúde pública, do aperfeiçoamento dos
processos de produção e da qualidade dos produtos, da racionalização da
infraestrutura de telecomunicações e dos sistemas de transportes e assim
por diante – e, naturalmente, do uso racional da energia para essas
finalidades (Carvalho, 2011).
Se não for assim, carece de sentido o crescimento a qualquer custo,
tão ansiosamente almejado por determinadas correntes de economistas.
Referências
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CARVALHO, J. F.; SAUER, I. L. Does Brazil need nuclear power plants? Energy Policy, v.37, p.1580-84, 2009.
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Estudos Avançados
versão impressa ISSN 0103-4014
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http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142013000100009
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