Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Muammar al-Gaddafi |
Ahmed
Ibrahim, primo de Muammar al-Gaddafi, era membro da Velha Guarda da
Jamahiriya. Outros primos, como Omar Ishkal, Mansour Dhao Ibrahim e
Abdullah Othman, desempenharam papel chave no processo de conter o colapso da
hegemonia da revolução de Gaddafi ao longo dos anos 2000s.
Saif al-Islam |
O
filho de Gaddafi, Saif al-Islam, recebeu a tarefa de “abrir” a economia,
finalidade para a qual contratou um grupo de especialistas com vasta experiência
na gestão do dinheiro do Golfo Árabe – como Mahmoud Jibril e Shukri Ghanem
(Jibril lideraria a ala política da rebelião contra Gaddafi; Ghanem desertaria
daquela rebelião, mas acabaria tropeçando e caindo no Danúbio em 2012, afogado
num dos melhores ternos que jamais vestira).
Ahmed
Ibrahim, cabeça da tribo Gaddadfa e braço armado de Gaddafi, o Velho, rejeitou
todas as reformas inventadas por Ghanem e entrou em conflito direto e público
com ele, em várias ocasiões.
Quando
o projeto de Ghanem de privatização da economia abalou o controle que a tribo
Gaddadfa mantinha sobre alguns setores (como a empresa de transporte marítimo
comandada por Hannibal Gaddafi), Ahmed Ibrahim apresentou-se como dirigista. Mas
jamais foi realmente dirigista. Sempre foi, isso sim, leal aos Gaddafis; e
tornou-se ferozmente fiel, depois que eclodiu o golpe contra o regime em 2011.
Ahmed Ibrahim |
Ahmed
Ibrahim foi capturado com Gaddafi em Sirte, depois que a OTAN atacou o comboio
em que viajavam. Ibrahim foi quem comandou as orações fúnebres ante o corpo de
Gaddafi, antes de que o cadáver fosse sequestrado para ser enterrado em local
secreto no deserto.
Capturado
pelas milícias de Misrata, o destino de Ibrahim estava selado. Aquela foi a
milícia que mais diretamente conheceu o ódio de Gaddafi e sua gente; e nas mãos
dessa milícia Gaddafi enfrentou morte horrenda. Um relatório da ONU, de março de
2012, mostrou que Gaddafi foi levado vivo, depois de ter sido ferido, carregando
um turbante branco como bandeira de rendição. Apesar dos filmes feitos por
telefones celulares que o mostravam sendo arrastado de um lado para outro e
apesar do que as próprias milícias encenaram e divulgaram, a comissão da ONU
dirigida pelo jurista canadense Philippe Kirsch “não conseguiu confirmar que a
morte de Muammar Gaddafi tenha sido resultado de crime e considera necessárias
novas investigações”. Jamais se fizeram as tais “novas investigações”. Um dos
membros da comissão declarou, em privado, que está praticamente provado que
Gaddafi foi assassinado (“execução extra-judicial”). Assim sendo, o processo de
Misrata merece pouca confiança. A sentença emitida pelo tribunal de Misrata não
é a última palavra do processo: ainda tem de ser confirmada pela Suprema Corte
Líbia.
O
caso de Ahmed Ibrahim não é caso de um só homem, por mais que abundem acusações
contra ele. Esse caso é importante, sobretudo, porque foi julgado antes dos
casos de Saif al-Islam Gaddafi e Abdullah Senussi – ambos mantidos prisioneiros
em prisões líbias, e ambos objeto de mandados de prisão 15125371-ICC (emitidos
pela Corte Criminal Internacional). O governo líbio insiste em que os dois
acusados sejam julgados em tribunais líbios. Assim sendo, o julgamento de Ahmed
Ibrahim é uma espécie de “precedente” do que virá. Trípoli acredita que, se
conseguir provar que Ahmed Ibrahim recebeu julgamento justo, conseguirá meio
para descumprir os mandados de prisão da Corte Criminal Internacional. Mas, sem
que se possa examinar devidamente o processo de julgamento que condenou Ahmed
Ibrahim, dificilmente alguém poderá assegurar que outros processos sejam “mais
justos”.
Navi Pillay |
O
levante líbio começou dia 15/2/2011. Dia 22/2, a Alta Comissária das Nações
Unidas para Direitos Humanos, Navi Pillay denunciou que 250 pessoas haviam sido
assassinadas na Líbia, “embora seja difícil confirmar os números reais”. Mesmo
assim, Pillay denunciou “ataques disseminados e sistemáticos contra a população
civil”, que “provavelmente configuram crimes contra a humanidade”. Pillay
repetiu o que dissera o vice-representante da Líbia na ONU, Ibrahim Dabbashi,
que desertara e unira-se aos golpistas, e declarou que “Gaddafi iniciou o
genocídio contra o povo líbio”. Em pouco tempo, inúmeros governantes em todo o
mundo já se serviam dessas palavras indiscriminadamente: “genocídio” e “crimes
contra a humanidade”. Esses conceitos criaram a impressão de que as forças de
Gaddafi estariam matando quantidades imensas de pessoas ou que se preparariam
para massacre de proporções ruandenses.
Praticamente
tudo isso era mentira ou, no mínimo, era exagero, como demonstrei em Arab
Spring, Libyan Winter (AK Press, 2012), o que foi em seguida comprovado
pelas organizações Human Rights Watch
e Amnesty International e por
investigação conduzida pelo próprio conselho de Direitos Humanos da ONU
(2/3/2012).
Luis Moreno Ocampo |
Sob
pressão política intensa feita por Pillay, e os exageros cenografados do
promotor da Corte Criminal Internacional, Luis Moreno Ocampo, emitiram-se ordem
de prisão contra Gaddafi e seu círculo mais íntimo de assessores (inclusive seu
filho, Saif al-Islam; e Sensussi).
O
papel da Corte Criminal Internacional e da Alta Comissária, Navi Pillay, que
criaram a justificação indispensável para a intervenção pela OTAN, foi
crucialmente decisivo. Aquele discurso permitiu que Barack Obama, David Cameron
e Nicolas Sarkozy embarcassem na carruagem dourada do intervencionismo liberal,
mesmo depois de terem dado carta branca à Casa de Saud para que esmagasse a
rebelião no Bahrain e na própria Arábia Saudita. O mesmo discurso do Alto
Comissariado da ONU, reproduzido incansavelmente pela imprensa-empresa ocidental
também permitiu que França e EUA livrassem-se também, simultaneamente, de suas
imundas relações com Ben Ali da Tunísia e Hosni Moubarak do Egito,
respectivamente.
Gaddafi não passou incólume pela
Primavera Árabe, e fulminou
o YouTube e “Kleenex” [como chamava WikiLeaks] – “A internet é um
aspirador de pó, que chupa qualquer coisa ”.
Dia
15/2, suas forças saíram à caça dos “rebeldes”, que o próprio Gaddafi e seus
generais ameaçaram com atos de grave violência. Em apenas alguns dias, todo o
leste da Líbia já estava sob controle das forças Gaddafistas e as coisas iam
pelo mesmo rumo nas cidades do noroeste como Mistrata, Az Zawiyah e Tajoura. A
intervenção pela OTAN, com apoio da Corte Criminal Internacional; da Alta
Comissária para Direitos Humanos; do Conselho de Segurança da ONU; e da Liga
Árabe aconteceu menos para evitar algum massacre na Líbia e, mais, para tentar
controlar os efeitos da Primavera Árabe no Norte da África. Era empreitada
condenada ao fracasso.
HOJE,
depois de terem servido como folha de parreira que encobriu as vergonhas da
intervenção pela OTAN, o que está posto em questão é a credibilidade das
agências internacionais.
Amr Moussa |
O
Conselho de Segurança da ONU não se deixará enganar, como aconteceu na Resolução
n. 1.973; nem a Liga Árabe – motivos pelos quais não haverá intervenção na Síria
com apoio da ONU. Não se trata só de russos e chineses que já conhecem os riscos
de garantir apoio ilimitado, pela ONU, a seja quem for; agora já se trata também
dos países-membros do G-77 – o chamado grupo “do Sul”. A Liga Árabe
horrorizou-se, quando constatou que a “zona aérea de exclusão” fora transformada
em apoio aéreo ativo aos rebeldes, contra o governo de Gaddafi (foi o que disse
Amr Moussa, que teve de ser arrastado até os microfones por Ban Ki-moon, para
desdizer-se e jurar fidelidade imorredoura à missão).
Conclamações
para que se abrisse investigação sobre os bombardeios da OTAN contra a Síria,
baseadas na Resolução n. 1.973 da ONU caíram em ouvidos surdos. A OTAN
recusou-se a dar acesso à ONU aos seus documentos e registros de guerra na Líbia
e nega à ONU até o direito de supervisionar missões realizadas por mandado da
ONU!
Se
o Conselho de Segurança não tem autoridade nem para ordenar uma investigação, é
claro que a Corte Criminal Internacional não tem autoridade para executar seus
mandados de prisão ou outros. O novo governo líbio, apoiado pelas potências da
OTAN recusou-se a entregar Saif al-Islam e Senussi à guarda da Corte Suprema em
Haia.
Abdullah Senussi |
As
coisas chegaram ao impasse absoluto dia 31 de maio de 2013, quando a Corte
Criminal Internacional declarou que o governo líbio não teria como assegurar
julgamento justo para aqueles dois homens.
Em
sua decisão de 91 páginas sobre a admissibilidade do caso contra Saif al-Islam
na Corte Criminal Internacional, os três juízes designados concluíram que “a
Líbia, como se comprova hoje, não é capaz de levar avante de modo genuíno nem a
investigação nem a instrução do processo para julgamento do Sr. Gaddafi” –
motivo pelo qual requereram que o prisioneiro seja entregue à Corte Criminal
Internacional em Haia.
Dia
24 de junho, o governo líbio respondeu com dossiê de mais de 98 páginas à Corte
Criminal Internacional, argumentando a favor de um seu alegado direito de julgar
Saif na Líbia. Esse dossiê, contudo, não faz qualquer referência ao problema
mais substancial no caso de Saif al-Islam: ele é mantido preso em Zintan, e o
governo de Trípoli não consegue sequer transferi-lo para uma de suas prisões. Se
Trípoli não se pode responsabilizar sequer pela presença física dos
prisioneiros, como esperar que tenha meios para organizar julgamento justo
Declaração
do governo líbio, datada de 7 de junho, para livrar-se do dever de entregar o
prisioneiro foi rejeitada dia 18 de julho. A Corte Criminal Internacional
observou que “a Líbia continua obrigada a entregar o Sr. Gaddafi a essa Corte”.
O clima mudou na Corte Criminal Internacional em janeiro desse ano, quando uma
equipe de quatro advogados da Corte foi visitar Saif al-Islam em Zintan. As
autoridades locais, lideradas por Ajmi al-Atiri, detiveram um dos advogados, a
Dra. Melinda Taylor, que foi acusada de ter entregue documentos ao prisioneiro.
A equipe da Corte Criminal Internacional observou que a situação de Saif
al-Islam era “kafkeana” e que, naquelas circunstâncias, o prisioneiro de modo
algum receberia julgamento justo. Nesse contexto, Ahmed Ibrahim foi julgado em
Misrata. A sala de julgamento estava tomada por miasmas da justiça do vencedor.
É péssimo para a Corte Criminal Internacional, é péssimo para a Alta Comissária
da ONU para Direitos Humanos, Navi Pillay; e é péssimo para a lei internacional
Não
há qualquer investigação em curso sobre os crimes da OTAN no bombardeio da Líbia
autorizado pela ONU. Dificilmente haverá qualquer investigação para que se saiba
como a Corte Criminal Internacional e a Alta Comissária de Direitos Humanos da
ONU operaram para justificar a guerra da OTAN na Líbia, e como, na sequência,
foram marginalizadas.
Não
haverá investigação de tipo algum. E, sim, com certeza deveria
haver.
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[*] Vijay
Prashad é um historiador
hindu, jornalista e comentarista. Professor de Estudos Internacionais do
Trinity
College em Hartford, Connecticut, EUA. Autor de quinze
livros. Em 2012 publicou cinco, incluindo a Primavera Árabe, Inverno da Líbia (AK
Press) e Uncle Swami: sul-asiáticos na
América de hoje (The New Press). Dois de seus livros mais conhecidos,
Karma of Brown Folk (2000) e Everybody Was Kung Fu Fighting
(2002),, foram escolhidos pelo Village
Voice como livros do
ano.. Seu livro The Darker Nations: A People's History of the Third World
(2007) foi escolhido como o melhor livro de não-ficção pela Asian American Writers’ Workshop em 2008
e ganhou o Prêmio Muzaffar Ahmed, em 2009. Em 2013, Verso publicou seu livro The Poorer Nations: A Possible
History of the Global South.
Prashad escreve para Frontline (a "Carta da América"
e
artigos ocasionais relatados coluna) e The
Hindu.
Além disso, os textos podem ser encontrados nos sítios Newsclick.in e Counterpunch.org, bem como na revista Himal.
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