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quarta-feira, 1 de outubro de 2014
Os abutres financeiros querem a chave do cofre 01/10/2014
– Notas para um debate sobre a independência do Banco Central do Brasil
por EdmiIson Costa [*]
A questão da independência do Banco Central (Bacen) ou sua submissão aos governos eleitos democraticamente é um tema recorrente no debate sobre a economia brasileira, especialmente nos momentos de aumento da inflação, quando se discute o problema do déficit público, por ocasião de qualquer crise econômica e, especialmente, nos momentos eleitorais. Um frenesi intenso toma conta dos chamados formadores de opinião e a mídia corporativa, quase toda alinhada com o capital financeiro nacional e internacional e com as teses neoliberais, se encarrega de multiplicar a catilinária ortodoxa e creditar todas as dificuldades da economia à falta de independência do Banco Central. Para as pessoas que não são versadas no conhecimento da economia, esse parece ser um assunto bizantino, distante de sua vida real, afinal o que o cidadão comum tem a ver com política monetária, taxa de juros, dívida interna, metas de inflação, superávit primário, emissão de moeda, controle da liquidez, câmbio e coisas do gênero?
Apesar de parecer um tema distante da vida cotidiana das pessoas, todas essas variáveis econômicas são administradas pelo Banco Central e têm uma importância fundamental na vida das pessoas, pois delas depende o investimento na economia e, portanto, o nível de emprego; os recursos para gastar na construção de escolas, hospitais, saneamento público; as verbas sociais e até mesmo as facilidades ou dificuldades para comprar à prestação um eletrodoméstico como televisão, geladeira, fogão ou um computador. Isso porque o Banco Central é o banco dos bancos, o xerife do sistema financeiro, o executor do conjunto da política monetária do governo. Numa economia desenvolvida como a brasileira, onde a moeda desempenha um papel fundamental, o Banco Central é uma das instituições mais importantes do País, pois possui a chave do cofre do Tesouro Nacional e tem um poder imenso sobre o conjunto da política econômica.
Talvez por isso a discussão sobre a independência ou não do Banco Central voltou novamente à ordem do dia nesta reta final do primeiro turno e prosseguirá ao longo do segundo turno. Como de costume, toda a mídia corporativa abre generosos espaços para os defensores da independência do Banco Central e quase nenhum para aqueles que são contrários, num esforço de manipulação digno da velha imprensa burguesa brasileira, que sempre se comportou como linha de frente dos interesses mais conservadores das classes dominantes do País. Os candidatos, especialmente os três mais bem colocados nas pesquisas, transformaram esse tema num dos motes principais de suas campanhas.
O PSDB, seguindo a tradição clássica neoliberal, é favorável à autonomia do Banco Central e não ficaria contrariado se encontrasse força suficiente para transformar a autonomia em independência formal legalizada. Mas a novidade veio por conta da candidata do PSB, Marina Silva, que militou a maior parte de sua vida no PT e se afastou do governo ainda no período Lula. Para a surpresa de alguns, a ex-militante petista agora trouxe como uma das principais bandeiras de campanha a independência do Banco Central, talvez influenciada por uma herdeira do Banco Itaú e coordenadora de seu programa de governo e pelos economistas neoliberais que formam sua equipe. A candidata do PT aproveitou habilmente o debate para se contrapor à independência do Banco Central e criticar os adversários, às vezes com uma contundência muito forte, como se o Banco Central não tivesse autonomia operacional há pelo menos duas décadas.
Na verdade, o Banco Central brasileiro opera com autonomia desde o início do período neoliberal no começo da década de 90 e cumpriu como bom aluno aplicado todas as determinações do Consenso de Washington. No governo Lula, foi dirigido por Henrique Meireles, ex-presidente do Bank of Boston e, além da autonomia operacional, o presidente do Banco Central ainda ganhou o status de ministro. Portanto, esse é um debate em que apenas formalmente há grandes contradições entre os candidatos dos partidos da ordem, mas em temos de conteúdo todos pensam e agem de maneira muito semelhante. De qualquer forma, esse é um momento oportuno para se esclarecer o verdadeiro sentido da discussão e mostrar o que se esconde por trás do véu que encobre esse debate.
Em outros termos, o que se pode deduzir é que o sistema financeiro nacional e internacional e os rentistas em geral não estão totalmente conformados em embolsar apenas os R$ 2,8 trilhões (U$ 1,4 trilhão) que receberam de juros do governo entre 2002 e 2013 [1] , nem com as tarifas exorbitantes que cobram dos correntistas, com as quais pagam a folha de pessoal dos bancos e ainda sobram recursos, nem com os juros estratosféricos que cobram da sociedade. Os abutres financeiros querem agora a chave do cofre, para raspar o fundo do tacho e acabar até mesmo com as migalhas que são destinadas ao programa Bolsa Família (representa apenas cerca de 10% do pagamento dos juros), reduzir ainda mais as aposentadorias, os salários dos funcionários públicos e privatizar o que ainda resta de empresas públicas como a Petrobrás, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal.
Política monetária e Banco Central
Para se compreender o que está em discussão é fundamental entendermos o papel da política monetária do País e o significado do Banco Central na política econômica do País. Procuraremos abordar o tema de forma didática, especialmente para os trabalhadores e a juventude, a fim de que possam entender os meandros dessa discussão. Não se trata de um debate técnico, que só interessa aos que dominam o economês. Pelo contrário, as medidas tomadas pelo Banco Central afetam o conjunto da economia e a vida pessoal da grande maioria da população. Por exemplo, a política de juros elevados praticada nas duas ultimas décadas representou a maior transferência de renda[NR] do setor público para o setor privado, especialmente para o sistema financeiro nacional e internacional e os rentistas em geral. E quanto mais esse pessoal ganha, menos recursos sobram para saúde, educação, saneamento.
A política monetária de um País tem como objetivo administrar a liquidez da economia, ou seja, a quantidade de moeda e o poder de compra da economia, controlar os empréstimos bancários, emitir e resgatar títulos públicos, definir a taxa de juros, administrar a dívida pública e definir a politica cambial. Esse conjunto de variáveis econômicas é executado pelo Banco Central, através de instrumentos macroeconômicos. Por isso, o Banco Central é importante, pois cada uma das medidas que toma afeta a vida de toda a população, especialmente a dos trabalhadores e da juventude, principais vítimas da política governamental neoliberal.
Como banco do governo e xerife da política monetária, o Banco Central é o principal instrumento de regulação e fiscalização do sistema financeiro nacional, com poderes inclusive para realizar intervenções extrajudiciais no sistema bancário – em outras palavras pode fechar qualquer banco desde que este esteja realizando operações que ponham em risco o sistema, como já aconteceu várias vezes no País. Como emprestador de última instância, pode socorrer os bancos com dificuldades momentâneas de caixa, além de definir a quantidade de crédito que os bancos comerciais podem emprestar para os agentes econômicos, mediante a fixação do compulsório bancário. Abordaremos nestas breves notas apenas três aspectos mais importantes da atuação do Banco Central: a administração da dívida interna e a fixação da taxa de juros e a política cambial, para que se possa ter uma ideia da importância do Banco Central na economia.
a) A administração da dívida interna
O Banco Central é responsável pela administração da dívida pública do País, especialmente a dívida interna. Essa dívida estava orçada no final de 2013 em R$ 2,4 trilhões (U$ 1,2 trilhão) e foi contraída por vários governos, mas a explosão de endividamento ocorreu a partir do governo Fernando Henrique Cardoso. Em números corrigidos, em 1994 a dívida interna correspondia a R$153 mil milhões e, nos anos seguintes, cresceu a uma taxa de 24,5% ao ano. Em 2002, ao final do governo neoliberal de FHC, a dívida já somava R$ 881 mil milhões (US$ 440,5 mil milhões). Com o governo Lula e Dilma, a dívida praticamente triplicou, atingindo em 2013 R$ 2,4 trilhões, num crescimento médio anual de 9,5%. [2] Geralmente, as dívidas governamentais são feitas quando o governo quer realizar gastos (por exemplo, construção de escolas, hospitais, rede de saneamento, etc.) e não tem recursos para pagar esses equipamentos sociais. Então, o governo lança títulos públicos no mercado, com a promessa de pagá-los após um determinado período (dois anos, por exemplo) e remunera os compradores desses títulos com uma taxa de juros.
Esse é o endividamento clássico dos governos, mas no Brasil a dívida não resultou na construção de escolas, hospitais, nem em rede de esgoto ou construção de estradas. A dívida interna brasileira é puramente financeira, ou seja, cresceu exponencialmente porque os sucessivos governos implementaram uma política de taxas de juros irresponsável, em média de 26%, entre 1994 e 2002, quando internacionalmente essas taxas variavam em torno de menos de 5%. Mesmo no governo Lula, as taxas de juros continuaram nas alturas. Como a arrecadação não cresce na mesma proporção do aumento das taxas de juros, o governo vai rolando a dívida porque não tem recursos para pagar as amortizações, ou seja, as prestações que vencem a cada período. Dessa forma, a dívida vai aumentando como uma bola de neve e, quanto mais aumenta, mais juros o governo tem que pagar para os detentores de títulos, banqueiros e rentistas em geral. Para pagar esses juros as autoridades criaram o chamado superávit primário , que é a economia que o governo faz para pagar os juros (leia-se corte nos gastos públicos, nas verbas sociais, etc).
Para se ter uma ideia do que significa esse pagamento de juros, basta dizer que somente nos três primeiros anos do governo Dilma (2011, 2012, 2013) o Brasil pagou para os banqueiros e rentistas, em valores corrigidos, R$741 mil milhões de juros por conta da dívida interna. Com esse dinheiro era possível resolver o problema da saúde, da educação e dos transportes no país. Mas como o governo privilegia o pagamento do serviço da dívida, falta dinheiro para tudo: por isso a saúde é uma calamidade, a educação pública é precária e o transporte urbano é um caos, especialmente nas grandes metrópoles.
b) Definição das taxas de juros
Outra das funções importantes do Banco Central e que afeta diariamente a vida dos trabalhadores e da juventude, é a definição da taxa de juros. Como se sabe, a taxa de juros é uma das varáveis mais importantes da economia, uma espécie de bússola que orienta a ação dos agentes econômicos, alguns conscientemente outros não. A taxa de juros influencia as decisões das empresas, dos consumidores, afeta as contas governamentais e as prioridades do orçamento nacional, a poupança das famílias e a atividade global do sistema econômico.
No Brasil, a cada 45 dias, o Comitê de Política Monetária (Copom) define a taxa de juros básica da economia, a SELIC, que remunera os títulos públicos do governo e, a partir da qual, todos os agentes econômicos compõem as suas taxas de juros específicas. As taxas de juros no Brasil, ao longo de todo o período neoliberal, e mesmo nos governo Lula e Dilma sempre foram muito altas, o que tornou o Brasil campeão mundial das taxas de juros. O governo justificava inicialmente as elevadas taxas de juros sob o argumento de que era necessário captar recursos externos para cobrir os déficits na balança comercial, na conta turismo, além do pagamento dos serviços da dívida externa. Mesmo depois que o Brasil passou a ter elevados superávits comerciais no período Lula, as taxas continuaram muito altas.
Quais as implicações que a definição das taxas de juros tem para a economia? Antes de tudo, a taxa de juros é um importante sinalizador para as decisões de investimento das empresas. Quando estas taxas estão mais altas que as perspectivas de lucros dos investimentos na produção, os empresários costumam optar por aplicar seus recursos no mercado financeiro, afinal o capital geralmente busca o setor em que pode obter maiores lucros. Os capitais aplicados no mercado financeiro não têm a mesma dinâmica que os investimentos na produção, pois a órbita financeira não gera valor nem proporciona emprego e renda [NR] na mesma proporção que a órbita produtiva da economia.
Já os investimentos na produção, quando as taxas de juros estão mais baixas que as perspectivas de lucro, elevam a capacidade produtiva do País, aumentam o crescimento econômico, ampliam o emprego e, à medida que as pessoas estão empregadas, aumenta da renda [NR] disponível e, consequentemente, há uma elevação do consumo, gerando assim uma dinâmica virtuosa para o conjunto da economia. Portanto, quanto mais elevadas forem as taxas de juros, menor será o investimento na produção e, portanto, menor o nível de emprego e da renda [NR] . As elevadas taxas de juros praticadas no Brasil nas últimas duas décadas explicam em grande parte o baixo crescimento da economia brasileira, especialmente no período neoliberal.
As taxas de juros altas também influenciam nas decisões de consumo das pessoas, pois os juros elevados estimulam as aplicações financeiras. Muitas vezes os consumidores deixam de comprar um bem de consumo durável para colocar o dinheiro na poupança e, com o rendimento, compra-lo à vista no futuro. Além disso, as taxas de juros aumentam também o valor dos bens, pois as empresas vendem a maior parte dos seus produtos a prestação, com taxas de juros muito elevados, sendo que no final das contas o consumidor termina pagando um preço muito maior pelas mercadorias do que se tivesse comprado à vista. No agregado, os juros altos reduzem o consumo e contribuem para o processo de desaceleração da economia.
Mas as taxas de juros elevadas também produzem um impacto muito grande nas contas do governo. O principal fator determinante para o aumento acelerado da dívida interna brasileira foi exatamente as altas taxas de juros praticadas nas duas últimas décadas. À medida que a dívida interna vai crescendo, o pagamento de juros também cresce na mesma proporção. Se fizermos um exercício simples, veremos o brutal impacto que as taxas de juros altas provocam no orçamento do País. Em 1994 a dívida interna brasileira estava calculada em R$153 mil milhões, em valores atualizados. Se aplicarmos uma taxa de juros de 20% ao ano para o total dessa dívida (as taxas foram bem maiores durante longo período), teremos um pagamento de juros anual de R$30,6 mil milhões. Quando FHC deixou o governo em 2002 a dívida já era de R$881 mil milhões, portanto se aplicarmos o mesmo critério teremos então um pagamento de juros de R$176 mil milhões, mais de cinco vezes o pagamento de 1994. Em 2013, a dívida já alcançava R$ 2,4 trilhões. E o pagamento de juros, mesmo com taxas de juros menores que no período FHC, foi de R$249 mil milhões em 2013.
Esses números aparentemente complexos para o cidadão comum tem um profundo impacto em sua vida cotidiana, pois quanto maior for o pagamento dos juros da dívida interna, mais os banqueiros e rentistas em geral terão capturado maiores fatias do orçamento nacional, pois são exatamente eles os detentores dos títulos da dívida interna. Traduzindo tudo isso: quanto maior o pagamento dos juros, menos recursos serão destinados para as áreas sociais, como saúde, educação, transporte e saneamento. Ou seja, a calamidade do atendimento no setor de saúde, a precariedade da educação pública, o caos urbano nos transportes, a falta de saneamento está ligado diretamente ao pagamento dos juros da dívida do governo.
c) A política cambial
O Banco Central também é responsável pela política cambial do País. Política cambial significa a relação da moeda nacional, o Real, com as outras moedas do mundo, especialmente o dólar, que ainda é a moeda de referência para as transações internacionais. O Brasil já passou por diversos regimes cambiais, como o câmbio fixo, pelo qual o governo fixa uma paridade entre o real e o dólar e esta não se altera no curto prazo; o regime de bandas cambiais, através das quais o preço do dólar em relação ao real varia de acordo com um intervalo de flutuação definido pelo Banco Central (por exemplo, entre janeiro e junho o dólar poderá flutuar em relação ao real entre U$ 2,00 e U$ 2,20) e o governo se compromete em bancar essa variação; o câmbio flutuante, regime que vigora atualmente, no qual o preço do dólar varia de acordo com o mercado. Quando existe uma quantidade de dólares maior que as necessidades do País, o preço do dólar tende a cair. Quando há escassez de dólares o preço do dólar tende a subir. Mas o câmbio flutuante não é tão livre assim, pois o Banco Central geralmente intervém no mercado, comprando ou vendendo dólares, para ajustar a taxa de câmbio aos interesses e necessidade da política econômica governamental.
O importante a esclarecer é o fato de que o preço do dólar tem uma influência muito grande na economia, tanto no comércio exterior, quanto na conta turismo, quando nos preços dos bens e serviços praticados no mercado interno. Por exemplo, hoje a taxa de câmbio é de R$ 2,40 para cada dólar. Se o preço do dólar cair para R$ 1,00 (US$ 1 – R$ 1), ocorrerá um impacto negativo nas exportações brasileiras, pois os produtos brasileiros se tornarão mais caros em relação aos produtos estrangeiros e os exportadores irão receber menos reais por cada dólar exportado. Em contrapartida, as importações aumentarão, pois os produtos estrangeiros se tornarão mais baratos em relação aos produtos brasileiros, em função do real valorizado. Em resumo, um dólar muito barato reduz as exportações e estimula as importações, gerando déficit na balança comercial. Um dólar barato também estimula os turistas brasileiros a viajar ao exterior e desestimula e vinda de turistas estrangeiros ao Brasil. Quando os turistas brasileiros gastam mais no exterior que os turistas estrangeiros no Brasil também ocorre um déficit na conta turismo.
Por outro lado, quanto o preço do dólar está elevado (US$1 – R$3,00) ocorre exatamente o contrário: o volume das exportações tende a aumentar porque as mercadorias brasileiras ficarão mais baratas em relação aos bens internacionais e os exportadores receberão mais reais por cada dólar exportado. Em contrapartida, haverá um desestímulo às importações, porque os produtos internacionais se tornarão mais caros em relação aos brasileiros, em função do real desvalorizado. Mas numa conjuntura dessa ordem, se o País depender muito de matérias primas importadas, vai haver um impacto negativo nos preços internos, pois o aumento no custo de matérias primas será repassado para o consumidor e vai gerar uma elevação da inflação. O fundamental é o Banco Central administrar a política cambial de forma a encontrar um preço do câmbio que não prejudique as exportações, nem torne as importações um elemento desestabilizador dos preços internos.
O Banco Central também é responsável pela administração das reservas do país. As reservas são formadas por superávits comerciais, transferências unilaterais de dólares para o Brasil por conta de brasileiros vivendo no exterior, além de recursos oriundos de empréstimos no exterior tomados por empresas brasileiras ou pelo governo, aplicações de estrangeiros no Brasil, entre outros itens. Ter uma quantidade elevada de reservas é importante para o País (principalmente se essas reservas não forem constituídas de capitais voláteis que podem entrar e sair do País a qualquer momento), pois as reservas funcionam como um lastro contra ataques especulativos, permitem constituir Fundos Soberanos contra crises e dão respeitabilidade internacional à nação. O Brasil possui hoje reservas internacionais que correspondem a US$ 350 mil milhões, um patamar muito expressivo comparado com os anos neoliberais quando o País vivia uma grave crise de vulnerabilidade externa.
Por todas essas funções, já se pode ter uma ideia da importância de um Banco Central para o País, pois essa instituição constitui a principal ferramenta de execução da política monetária e suas decisões influenciam tanto o perfil da atividade econômica como um todo, como a vida cotidiana das pessoas comuns. Por isso, não é de estranhar o interesse das classes dominantes, dos seus escribas e de sua representação política em ter o controle de 100% do Banco Central e não prestar contas para ninguém. Ter o controle pleno de uma instituição desse porte é como ter a chave do cofre do Tesouro à sua disposição. Por isso, a importância do debate e o esclarecimento sobre os interesses que estão por trás dessa discussão em relação à independência do Banco Central.
Os argumentos favoráveis à independência do Bacen
A questão da independência do Banco Central ganhou força política no final da década de 70 a partir de uma mudança de fundo no interior do bloco de forças dominantes do grande capital internacional, com a ascensão dos setores mais conservadores desse bloco, representados politicamente por Thatcher, na Inglaterra, e Reagan nos Estados Unidos. A ascensão dessas forças políticas reacenderam a velha doutrina neoclássica travestida de monetarismo-neoliberal. Vale ressaltar que, com a derrota dos neoclássicos (os neoliberais de hoje) em função da grande depressão na década de 30, o mundo viveu uma etapa de grande intervenção do governo em busca do pleno emprego e crescimento econômico, tendo por base os postulados keynesianos. A partir de 1979, os neoclássicos voltaram com uma força avassaladora e rapidamente substituíram os fundamentos keynesianos pelos postulados monetaristas. Com a nova doutrina, o papel da política monetária de um País passou novamente a se concentrar na busca da estabilidade dos preços, sendo que as outras variáveis da economia, como crescimento e emprego, seriam apenas uma derivada da moeda estável.
Com a nova orientação, a política monetária passaria a ser implementada com regras bem definidas e transparentes, com metas de inflação baixas e previamente determinadas e um banco central independente do governo, de forma a obter credibilidade e a confiança do mercado. Para os neoclássicos, isso é necessário porque os políticos costumam influenciar negativamente a política monetária, pois colocam seus interesses populistas e gastadores acima dos postulados técnicos das autoridades monetárias. Ou como diz um ex-presidente do Banco Central do Brasil muito festejado pela mídia: "A legitimidade conferida pelas urnas não faz do presidente uma encarnação do interesse público, mas apenas um custo diante deste, e por tempo determinado e dentro dos limites, como em qualquer democracia ... É importante, por exemplo, a exclusão do Tesouro do comitê que decide sobre juros e de ministros gastadores do Conselho Monetário Nacional". [3]
Portanto, o paraíso institucional dos neoclássicos seria um ambiente em que a política monetária fosse executada visando exclusivamente a estabilidade da moeda, através de um Banco Central independente, com mandato fixo de seu presidente e da diretoria, e que este mandato não fosse coincidente com os mandatos dos presidentes da República. Como analisa Penido de Freitas, citando Cukierman, um dos principais formuladores da política neoclássica; "A independência do Banco Central diz respeito à sua competência e atribuições para formular e executar a política monetária, sem a intervenção do Executivo, com o objetivo de assegurar a estabilidade dos preços, dado que o Banco Central é, em geral, mais conservador no que se refere à busca da estabilidade e atua com uma visão mais de longo prazo do que a autoridade política". [4]
Essas atribuições, dizem os neoclássicos, deveriam ser entregues ao Banco Central independente porque este é um órgão neutro e dispõe de um saber técnico não contaminado pelos embates e decisões políticas e, por isso mesmo, estaria em melhores condições de zelar mais pelo interesse público do que um Banco Central atrelado às vicissitudes da política cotidiana. Isolado das influências políticas e do arbítrio do presidente da República, o Banco Central poderia tomar as decisões fundamentado apenas em análises técnicas, o que tornaria mais fácil fixar e cumprir as metas de inflação, manter os preços estáveis e construir as condições para um crescimento estável da economia.
Quais são as regras de funcionamento do Banco Central no Brasil? Como em todos os países onde o Banco Central já possui autonomia operacional, seu presidente é indicado pelo presidente da República e sabatinado pelo Parlamento. Teoricamente, o presidente da República pode demitir o presidente do Banco Central, mas o lobby midiático, dos oligopólios e do sistema financeiro é tão grande que os presidentes dos Bancos Centrais se tornam personagens intocáveis, especialmente se tiverem cumprindo a cartilha elaborada pelo sistema financeiro. Henrique Meireles, não só ganhou status de ministro como ficou na direção do Banco Central durante todos os dois mandatos de Lula e Alexandre Trombini ao longo do mandato atual da presidente Dilma. A estratégia do sistema financeiro e dos rentistas é transformar o Banco Central numa cidadela inexpugnável onde só eles, o chamado mercado, poderão ditar as regras do jogo.
Por isso, a discussão em torno da independência do Banco Central ganha contornos apaixonados e muitas vezes irracionais. Uma das candidatas que mais tem enfatizado em seus programas a necessidade da independência do Banco Central se comporta como uma boba da corte embevecida por estar convivendo na sala de estar da Casa Grande. Cercada de herdeiros de banqueiros e economistas neoclássicos fundamentalistas, ela repete esse mantra como um papagaio treinado que decorou bem os ensinamentos dos seus mestres. Por outro lado, a outra candidata em busca da reeleição se comporta como se a questão da independência ou autonomia não tivesse nada a ver com o atual governo, chegando mesmo a afirmar (corretamente) que a independência do Banco Central equivaleria entregar o Banco Central aos banqueiros e tirar a comida da mesa do trabalhador. Quanta coerência!!!
É necessário esclarecer que o Banco Central do Brasil tem total autonomia operacional, define de maneira autônoma as taxas de juros, executa as metas de inflação, a intervenção no mercado de câmbio e seu presidente tem status de ministro. Sua direção se reúne regularmente com as direções do sistema financeiro para discutir a conjuntura e a inflação e publica ainda um boletim, o FOCUS, que é um apanhado geral das opiniões dos dirigentes do sistema financeiro. Além disso, há uma enorme promiscuidade histórica entre as diretorias do Banco Central e o sistema financeiro, expressas no fato de que essas diretorias geralmente são oriundas do sistema financeiro e quase todos seus membros quando deixam o Banco Central são guindados a altos postos no sistema financeiro, nas multinacionais, nos oligopólios e nas consultorias milionárias.
Eles querem a chave do cofre
Mas o que se esconde por trás dos argumentos em relação à independência do Banco Central? Antes de tudo é importante desmontar os chamadosargumentos técnicos para depois expormos os verdadeiros interesses políticos e econômicos que estão sob o véu tecnocrático. Primeiro, a questão da neutralidade e do apoliticismo das direções do Banco Central: esse é um argumento muito frágil, pois não existe neutralidade nas tomadas de decisão nas instituições capitalistas. Todas as medidas têm caráter eminentemente político, pois favorecem a um setor ou outro da sociedade. Não existe medida que favoreça aos polos antagônicos ao mesmo tempo. O argumento da neutralidade e do apoliticismo é apenas uma cortina de fumaça para justificar a apropriação da máquina pública pelo sistema financeiro e pelos rentistas e dar a este ato um caráter técnico.
Outro dos argumentos utilizados para a independência do Banco Central é a questão do saber técnico que os funcionários e dirigentes do Banco Central teriam na condução da política monetária. Esse argumento é uma meia verdade, pois o saber técnico está ao serviço de interesses econômicos e sociais. É evidente que a diretoria do Banco Central concentra um nível de informação técnica maior que a maioria da população. Mas esse saber técnico não foi capaz de gerar um ciclo de crescimento econômico positivo como ocorreu entre os anos de 1947 e 1980, quando não existia autonomia do banco Central e o País cresceu a taxas anuais superiores a 7% ao ano, consolidando ainda seu processo de industrialização, enquanto que no período que vai de 1994 a 2002 o crescimento econômico foi pífio, 2,5% ao ano. Mesmo no período dos governos do PT, onde o crescimento foi um pouco maior, nunca se chegou ao nível do período em que não existia autonomia do Banco Central.
Portanto, se o saber técnico não consegue realizar uma política que proporcione ao País um nível de desenvolvimento econômico que seja capaz de aumentar o emprego, a renda [NR] e o consumo, então este saber não serve para nada, pelo menos para a maioria da população brasileira. Se verificarmos mais atentamente que na maior parte desse período neoliberal houve queda nos salários, concentração de renda [NR] e enorme transferência de recursos do setor público para a órbita privada, através de um conjunto de medidas criadas pelo próprio saber técnico , entre as quais se destacam as elevadas taxas de juros e o exorbitante pagamento dos serviços da dívida interna, então descobrimos o verdadeiro segredo desse tipo de saber técnico que é, nada mais nada menos, estar a serviços das classes dirigentes, especialmente do sistema financeiro e dos rentistas.
É importante ressaltar ainda que a sofisticação técnica e as matrizes baseadas em modelos matemáticos desligados da realidade que os tecnocratas costumam apresentar, têm pouca efetividade num mundo globalizado, com as economias integradas, com livre mobilidade de capitais, especialmente se levarmos em conta que a especulação financeira mundial criou um leque enorme de instrumentos e inovações financeiras, que o chamado saber técnicoencastelado nos Bancos Centrais tem poucas condições para manobras. Somente o poder político é capaz de construir mecanismos de defesa da soberania e dos trabalhadores.
Se esse saber técnico fosse assim tão infalível teria sido capaz de evitar a maior crise econômica que vem castigando o sistema capitalista há cerca de seis anos e que vai durar ainda muito mais e que até agora o saber técnico não conseguiu tirar o mundo da crise. Aliás, essa crise está tendo um significado especial porque desmoralizou o discurso do saber técnico neoliberal que por mais de 30 anos infernizou a vida dos trabalhadores do mundo inteiro. Mesmo assim esses essa ideologia reacionária continua a importunar a sociedade como um pesadelo que teima em continuar morto-vivo.
Também os argumentos de que o Banco Central independente seria a garantia de baixas taxas de inflação é uma balela. O próprio FMI tem trabalhos que contesta essa afirmação [5] e, além disso, na segunda metade da década de 70 as taxas de inflação nos Estados Unidos ficaram acima de dois dígitos com o Banco Central independente, da mesma forma que na Inglaterra, na França e outros países centrais. O próprio Joseph Stiglitz, um ex-monetarista convertido à heterodoxia e ganhador do Prêmio Nobel, diz claramente que a independência do Banco Central é desnecessária e que os países que a adotaram tiveram muito mais dificuldades diante da crise sistêmica global do que aquele que não praticaram essa política. Portanto, essa correlação entre banco central independente e baixas taxas de inflação é uma lenda tecnocrática muito mal contada.
Na verdade, toda essa parafernália neoliberal, fantasiada de sofisticação técnica, não é nada mais nada menos que lixo teórico reciclado da economia política vulgar, construído nos laboratórios das instituições anglo-saxônicas, a partir da virada conservadora dos governos Reagan e Thatcher no final dos anos 70 e que se impôs como política de Estado para quase todos os países capitalistas nos 30 anos de hegemonia neoliberal. Mesmo que a crise sistêmica mundial tenha desmoralizado essas veleidades e fantasias monetaristas, esses fantasmas continuam teimando em prolongar a agonia desse baile de máscaras, como dráculas ensandecidos que se recusam a morrer.
Poder paralelo antidemocrático
Mas os principais argumentos contrários à independência plena do Banco Central são de caráter político, pois a independência do Banco Central na prática significa a criação de um governo paralelo ao do presidente da República, eleito pelo voto e com o mandato popular. Portanto, esse status que os tecnocratas neoliberais querem dar ao banco Central é não só antidemocrático, como significaria uma regressão política de grande porte, semelhante aos tempos da monarquia de Pedro II, quando este tinha o chamado poder moderador, o quarto poder, que estava acima dos outros poderes e podia inclusive anular as decisões das outras instituições.
Em outros termos, permitir a criação de um Banco Central formalmente independente significaria entregar o poder de uma vez por todas ao mercado, ou seja, aos banqueiros e à oligarquia rentista, que passaria a controlar o principal instrumento de execução da política econômica do país. Vale lembrar que o Banco Central define a emissão de moeda, o volume de crédito na economia, as taxas de juros, administra a dúvida pública e a emissão e resgate dos títulos públicos, controla a política cambial e, portanto, o destino do comércio exterior, além de outras variáveis. Como vimos, todas essas varáveis afetam diretamente a condução da política econômica do País e a vida das pessoas.
Nesse contexto, com o Banco Central independente, seu presidente passaria a ter um poder muito maior que o do presidente da República, mesmo sem ter tido um só voto em eleição para inspetor de quarteirão ou síndico de prédio. Na verdade, os banqueiros e os rentistas em geral, com a tese da independência do Banco Central, querem dar um golpe no conjunto da sociedade e se apossar da chave do cofre para saquear com mais liberdade o erário público e nem sequer prestar contas à sociedade.
Vamos imaginar, por hipótese, que o presidente do Banco Central esteja dissociado da política econômica adotada por um presidente com mandato popular, em função de sua independência. Numa situação dessa ordem, esse Banco Central poderia se tornar um poderoso instrumento de instabilidade econômica, pois teria instrumentos para promover a anarquia econômica, para gerar uma crise de proporções gigantescas, e poderia levar à desorganização da economia, com repercussões profundamente negativas junto à vida cotidiana da população.
Um Banco Central independente também traria consequências danosas para os trabalhadores, pois toda a política econômica estaria subordinada à administração da dívida interna e ao combate á inflação. Isso significaria um aumento do superávit primário e, portanto, redução das verbas sociais orçamentárias para saúde, educação, saneamento, para os salários dos funcionários públicos em função da prioridade do pagamento dos serviços da dívida interna. Como o foco é a estabilidade dos preços, que se dane o emprego e o crescimento econômico, afinal essas variáveis são apenas derivadas da política maior da estabilidade da moeda.
É como se no País não existisse gente de carne e osso, que depende do emprego para sobreviver, que precisa de renda [NR] para comer, vestir, calçar e viver. Esses tecnocratas neoliberais são tão ou mais nocivos para sociedade que os fundamentalistas religiosos (eles são fundamentalistas econômicos) ou os marginais que infernizam a vida das populações pobres nas favelas e periferias. Eles matam mais silenciosamente, mais ardilosamente, mais sofisticadamente, com um sorriso maquiavélico, milhões de pessoas todo o ano no País, com sua política econômica de concentração da riqueza nas mãos de uma elite parasitária e ampliação da miséria entre a maioria da população, que não pode usufruir serviços públicos de qualidade porque o governo é obrigado a gerar superávits primários para pagar os juros da dívida interna.
Uma instituição com a importância de um Banco Central fora do controle democrático da sociedade seria o paraíso para os banqueiros e rentistas. O mercado financeiro deixaria de terceirizar a administração da política monetária e econômica para assumir diretamente o controle das finanças do país, com total autonomia, sem prestar contas à sociedade. Seria como a raposa tomando conta do galinheiro. Realmente, a voracidade dos abutres financeiros não tem limites. Por isso, é importante dar um basta tanto a autonomia quanto à independência formal do Banco Central e estatizar todo o sistema financeiro, de forma a que passe a servir aos interesses da maioria da população e não a meia dúzia de parasitas sociais.
[1] A tabela com os juros da dívida interna pode ser consultada em: Edmilson Costa. Os 20 anos do Plano Real: uma herança terrível para os trabalhadores , publicada inicialmente em; resistir.info ,www.odiario.info ; e www.pcb.org.br e posteriormente reproduzida em dezenas de blogs e sites do Brasil e do exterior.
[2] Uma tabela com o volume da dívida interna e sua relação com o Produto Interno Bruto (PIB) e o nível das taxas de juros também pode ser encontrado no artigo acima referenciado.
[3] Franco, Gustavo. A independência do Banco Central. Jornal O Estado de São Paulo, Caderno de Economia, 14/set. 2014.
[4] Penido de Freitas, Maria Cristina. Banco Central independente e coordenação das políticas macroeconômicas: lições para o Brasil. Economia e Sociedade, vol. 15, No. 2 (27), agosto, 2006.
[5] Em 2003, o FMI divulgou trabalho de autoria de dois de seus técnicos no qual realizam comparação entre países que efetivaram políticas de metas de inflação e outros que não realizaram essas políticas e chagaram a conclusão de a política de metas de inflação serve mais a interesses políticos que econômicos. Ver Penido de Freitas, op. cit.
[NR] No Brasil chamam de renda a qualquer espécie de rendimento, não apenas aos ganhos com actividades rentistas.
Do mesmo autor em resistir.info:
A explosão social bate às portas do Brasil
Os 20 anos do Plano Real: Uma herança terrível para os trabalhadores brasileiros
"Abrem-se janelas de oportunidades para a emergência do movimento popular"
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Capitalismo contemporâneo, imperialismo e agressividade
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A crise do euro e a crise sistêmica global
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Os movimentos sociais e os processos revolucionários na América Latina: Uma crítica aos pós-modernistas
A crise mundial do capitalismo e as perspectivas dos trabalhadores
[*] Doutorado em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com pós-doutoramento no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma instituição. É autor, entre outros de A globalização e o capitalismo contemporâneo (expressão Popular, 2009) e A crise econômica mundial, a globalização e o Brasil (edições ICP, 2013). É professor de economia, membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), diretor de pesquisas do Instituto Caio Prado Junior e um dos editores da revista Novos Temas.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
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