domingo, 20 de novembro de 2016

“...pessoas de pouca importância...” 20/11/2016




Homero Mattos Jr.
https://twitter.com/Omnros

habitantes de Canudos, BA 1897



“...os primeiros líderes republicanos do Brasil não cuidaram dos problemas humanos -não desenvolveram nenhum plano para a 'valorização’ do homem brasileiro.”[1]
Gilberto Freyre

“Os fidalgos e os eclesiásticos têm a arte de chamar de jacobino ou incrédulo a quem deseja que o mundo seja melhor do que está.”[2]
José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência do Brasil condenado, no final da vida, a ficar incomunicável na ilha de Paquetá.

“Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se de modo autônomo e fracassei. Porém, minhas derrotas são minhas vitórias. Eu não gostaria de estar ao lado dos que me venceram.”
Darcy Ribeiro


No Brasil, a exclusão social serviu como uma luva (de boxe) para turbinar o darwinismo próprio à dinâmica competitiva do ethos capitalista e, desse modo, sabotar o princípio de inclusão inerente a toda forma cooperativa de organização.
Ao deparar-se com os ‘complexos favelísticos’ situados dentro e no entorno de sua cidade, esteja certo:
1) o problema não é de hoje
2) antes de ser econômico é moral e, portanto
3) impõe uma profunda transformação ao nosso, brasileiro, jeito (social) de ser
No início do século XX as autoridades policiais do Rio de Janeiro designavam os cidadãos brasileiros pobres -migrantes e imigrantes, como “pessoas de pouca importância”[3]. Se você quiser conhecer melhor o principal núcleo social abrangido por esta expressão de uso corrente nos B.O’s da época (e de até há bem pouco tempo atrás) faça um exercício: imagine-se vivendo no Brasil do dia 12 de maio de 1888. E imagine, também, que você é um escravo. Então...
Amanhã, dizem, finalmente você estará livre.
Possivelmente você vai passar a noite acordado, ansioso ao pensar que, dentro de poucas horas, lhe será possível fazer o quê quiser com sua vida. Você não faz a menor ideia sobre como-é-que-vai-ser... mas... tudo bem: não importa. Amanhã, de qualquer modo, você estará “livre”. É. Assim mesmo: com aspas. Sem asas. Mas isso você só irá perceber aos poucos. O dia 13 amanhece. E nada de mais acontece. Ao contrário. Acontece de menos.
Em pé diante do varandão da casa-grande, você e seus companheiros escutam o senador/coronel dizer que de agora em diante não há mais escravos no Brasil, pois estão todos livres, que podem ir para onde quiserem, porque ele, o senador/coronel, não tem mais obrigação de cuidar de ninguém e, por falar nisso, o almoço de todas as manhãs, a começar por aquela, quem quiser comê-lo terá que pagar por ele, o almoço, a ele, o senador/coronel. Quem não puder pagar, não come. Ali. Na fazenda dele, senador. E coronel.
Enquanto você e seus companheiros ficam olhando um para a cara do outro, o mais independente e ousado de todos (a quem o senador/coronel chama de "abusado"...) levanta o braço e pergunta:
"-Ninguém vai dar uma força pra gente começar, tipo uma ajuda de custo ou qualquer coisa parecida...!?!..."
"-Isso! Exatamente!" concordam todos. Porém...
"- Vai não." diz o senador/coronel. Ninguém vai dar coisa alguma. Daqui pra frente será cada um por si e seja lá o que Deus quiser. "-Acabou a moleza!" diz ele, o coronel (e senador). Bem... você, de duas uma:
1) ou parte em direção à Capital -onde mora a redentora, a dona Isabel,
2) ou pede para o senador/coronel deixar tudo como estava antes, pois, talvez seja melhor... voltar a ser escravo!
A primeira opção, partir, não lhe trará problemas. Antigos. Só novos. Mas novidade mesmo você vai ouvir se optar pela segunda alternativa: voltar a trabalhar de graça em troca de comida.
O senador/coronel não está mais interessado em escravos, pois já contratou gente de outras terras de outro mar para trabalhar no seu lugar.
"-Gente muito, mas muito melhor do que vocês!" diz o senador/coronel. Gente com a qual ele fez contratos garantindo salário, moradia... enfim, aquela infra para começar a vida.
"-Ôsh !?!" contrariado, exclama o "abusado" indagando a si mesmo "por quê que não ofereceram as mesmas condições pra nós? Afinal, a gente já conhece não só o serviço, mas também o lugar e suas manhas. Então... por quê?"
Você ainda não sabe, mas desde a segunda metade deste século XIX, a política de colonização do Estado brasileiro está oficialmente orientada para a importação de mão de obra. Em voga, há uma crença na “superioridade do trabalhador branco, particularmente daquele que, além de branco, era de 'raça' diferente da dos colonizadores lusos, isto é, os nórdicos, os saxões, os louros” com os quais “todos os problemas brasileiros haveriam de estar resolvidos com a 'arianização' da massa de trabalho”.[4] Portanto, não houve interesse por parte do Estado em integrá-lo à sociedade. Não há um projeto. Não há uma proposta para tal, a partir daqueles aos quais caberia a responsabilidade de elaborá-la: as mesmas autoridades que lhe concederam a liberdade. Cuidam, sim, é de apontar seus defeitos e rir da sua “falta de civilidade”.
“Cansado de tentar achar uma resposta” e não desejando recomeçar a vida mais marginalizado do que já está, você opta por tentar a sorte dirigindo-se para perto das autoridades que o libertaram. No caminho em direção à Capital, se quiser, conserve seus traços africanos ou, se preferir, mescle-se com os outros (muitos) marginalizados que encontra pelo caminho: brancos pobres, índios, mestiços destes... Então, será assim, com feições e hábitos tipicamente brasileiros –e acelerando o tempo histórico de sua imaginação- que você vai chegar à capital de um Estado ainda meio-Império meio-República, ou seja, nem uma coisa nem outra. Uma sociedade administrada por mentalidades coloniais com modos imperiais salvaguardados por leis republicanas.
E você -que no começo da viagem “só queria era falar com o presidente pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer, bestificado com as luzes da cidade vai sentir que é mesmo diferente e que aquilo ali não é o seu lugar pois você não entende como a vida funciona discriminação por causa da sua classe e sua cor”- você vai chegar aos dias atuais pronto! Para “organizar a Rockonha e começar a plantação”[5]...
Possivelmente, ao término desta viagem, não o surpreenderá saber que meio século antes da Abolição, o Patriarca de nossa Independência deixara Projetos para o Brasil onde, entre outras coisas, ponderava:
“...é tempo, também, que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres. É da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil; cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto, que não se esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política.”[6]

Mais de um século após aquela hipotética manhã do dia 13 (na frente do varandão da casa grande do senador/coronel), o professor Luís Mir (em Guerra Civil –Estado e Trauma[7]) disse o seguinte sobre as condições sociais do seu país:
“As hierarquias culturais se co-reproduzem na pós-abolição com a economia mantendo o apartheid econômico. Empregadas domésticas são negras ou cafuzas; as babás, paramentadas e tratadas como mucamas; há elevadores de serviço para os servos e a proibição de circular nas áreas sociais dos proprietários. O muro étnico dominante cria bolsões étnicos nas periferias e encostas urbanas. A nação brasileira se forja pela indisposição de compartilhar. A nova balcanização do país -com condomínios e bairros cercados e defendidos pública e privadamente por forças policiais e paramilitares- está reordenando a ocupação dos territórios urbanos, criando bolsões e cinturões de segurança e isolamento para as minorias. Criam-se miniestados auto-suficientes, dissociados das cidades, das comunidades, da população. ‘No momento de transição de uma sociedade escravocrata para uma sociedade clássica liberal, o desafio era a gestão inteligente dos ressentimentos’ (cit. Ansart, 2000). Isso não foi feito e sequer tentado. Se se desumaniza o inimigo, é mais fácil, etnicamente, suspender as sanções morais contra a sua destruição. O ajuste tácito entre os chefes policiais e as elites étnicas sobre a ordem pública determina que ela seja restabelecida sem contrapartidas, sob um novo prisma, de luta exclusiva contra a criminalidade. A demanda social e econômica das massas segregadas é qualificada como o rompimento ou a tentativa de invalidação de uma ordem natural, social, moral, étnica. Surge o agrupamento por sua condição e com isso, o ressentimento... contra o Estado, Não há nada mais traumático para essas populações faveladas do que as rotineiras e brutais operações militarizadas de expulsão das áreas urbanas invadidas, sua integração e participação nas riquezas nacionais e na política, são aspectos que feririam de morte a balcanização. A neutralização da violência passou a ser considerada como um investimento de valor estratégico e militar, comercial e industrial e não como um problema social e político. A ânsia de segurança, própria da condição humana, culmina num individualismo desesperado. A classe média, perplexa e ameaçada, inclina-se cada vez mais às saídas militaristas. O conflito se inicia na disposição espacial dos participantes: cidades que se organizam para serem utilizadas somente por algumas parcelas da população. À medida que nossa sociedade se converte em fabricante de sonhos, a tensão entre o desejado e o real gera agressão. O Estado brasileiro administra um país cuja população está entre as mais pobres do mundo, mas ele mesmo está entre o terço mais rico dos Estados do mundo. Comparado aos países industrializados não é rico, mas no conjunto dos países em desenvolvimento lhe sobram recursos para combater drasticamente a miséria. A manutenção dos indivíduos num estado de mediocridade radical exige uma cultura de neutralização de qualquer crítica. Mantêm-se os indivíduos num grau idiotizado, no bojo de uma sociedade desigual, impregnada de uma ideologia do máximo rendimento. É um poder que mantém os indivíduos numa posição política e social passiva. A construção da coexistência pacífica só será admissível através de bases justas, com a reconciliação da sociedade em novas balizas sociais e econômicas, a reconciliação do Estado com a nação profunda e a resolução das condições que provocaram a guerra. A reconciliação deve ser tentada para desarmar a principal matriz do conflito: a desigualdade social. Este é o maior desafio da democracia brasileira: a pacificação da sociedade. Precisamos de um novo padrão de humanismo. Neutralização das dessemelhanças sociais é civilizar. Isso só acontecerá com o fim da balcanização.”[8]

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[1] ver Freyre, Gilberto Interpretação do Brasil p. 209 cap. 'Condições étnicas e sociais do Brasil Moderno' col. Retratos do Brasil, Companhia das Letras, São Paulo,SP 2001

[2] ver Andrada e Silva, José Bonifácio Projetos para o Brasil p. 106 ed. Companhia das Letras/Publifolha, col. Brasil 500, São Paulo, SP 2000

[3] ver Chalhoub, Sidney Trabalho, Lar e Botequim – O Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque p. 201 Ed. Brasiliense, São Paulo, SP 1986

[4] ver Sodré, Nelson Werneck Formação Histórica do Brasil p.250 12a. edição Ed. Bertrand Brasil Rio de Janeiro, RJ 1987

[5] ouvir Legião Urbana em Faroeste Caboclo de Renato Russo
http://www.4shared.com/file/16592526/d4ca89c4/07_-_faroeste_caboclo.html

[6] ver Andrada e Silva, José Bonifácio op. cit. p. 24/25

[7] Geração Editorial São Paulo, SP 2004

[8] Mir, Luís op. cit excerto de conteúdos, respectivamente, das: p. 105 p.72 p.79 p.101 p.102 p.127 p.131 p. 146 p. 147 p. 163 p. 164 p 167 p. 179 p. 307 p. 299 p. 326 p. 328 p.20 e p. 332
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