“Privatização da CEEE é um crime lesa Estado e lesa pátria”, diz ex-presidente da empresa
Gerson Carrion: “O que esse pacote faz, na verdade, é eliminar 100% a existência de uma política energética no Estado”.
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Marco Weissheimer
O projeto do governo Sartori para privatizar a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), a Companhia Riograndense de Mineração (CRM) e a Sulgás significa acabar com toda a política energética do Rio Grande do Sul, entregar patrimônio público a preço vil e quarteirizar a matriz energética do Estado. A avaliação é do ex-presidente da CEEE, Gerson Carrion de Oliveira, que, em entrevista ao Sul21, contesta os motivos apresentados pelo governo José Ivo Sartori (PMDB), para encaminhar essas propostas à Assembleia. “
O secretário geral de governo, Carlos Búrigo, disse na apresentação do projeto que a CEEE não tem capacidade de investimento. Essa informação não tem nenhum fundamento técnico. Só a distribuidora, em quatro anos, investiu R$ 2 bilhões”, diz Carrion que qualifica a proposta de venda do grupo como um “crime lesa Estado e lesa pátria”. E acrescenta: “O que esse pacote faz, na verdade, é eliminar 100% a existência de uma política energética no Estado. O governo Sartori quer, simplesmente, vender todo o nosso sistema energético. Já conhecemos esse receituário. Sofremos ele com Britto, que vendeu dois terços da nossa área de distribuição, sem que isso tivesse qualquer contribuição para resolver os problemas estruturais das finanças do Estado,” lembra Carrion que é funcionário de carreira da empresa desde 1979.
Sul21: Como ex-presidente da CEEE, como recebeu a iniciativa do governo José Ivo Sartori de enviar um projeto à Assembleia propondo o fim da exigência de plebiscito para a privatização desta empresa e também da Sulgás e da Companhia Riograndense de Mineração (CRM)?
Gerson Carrion: Com muita estranheza. O projeto foi apresentado pelo secretário geral de governo Carlos Búrigo, em uma coletiva à imprensa, com duas linhas de justificativa. Muito me admira ele ter feito isso, uma vez que integra o Conselho de Administração da companhia. Ele disse que a CEEE não tem capacidade de investimento. Essa afirmação não tem nenhum fundamento técnico. Só a distribuidora, em quatro anos, investiu R$ 2 bilhões. Foi a empresa que mais investiu no Brasil, entre as 49 concessionárias existentes.
A CEEE é, hoje, uma empresa no nível um de governança. Surpreende a forma como esse anúncio foi feito. Os atuais diretores da empresa estão, inclusive, sob o risco de sofrer penalidades perante a Bovespa e a Comissão de Valores Mobiliários, pelo fato de não ter sido feito nenhum comunicado ao mercado como fato relevante. Há penalidades para isso. Os empréstimos para a empresa foram interrompidos com o anúncio desse pacote. Propor a privatização da CEEE é um crime lesa-Estado e lesa-Pátria.
A CEEE tem condições hoje de se tornar a grande conexão com o sistema elétrico do Mercosul. Há um projeto de expansão com nossos irmãos uruguaios e argentinos que sofrem um problema de crise energética. A empresa está implantando agora o sistema corporativo de TI (Tecnologia da Informação) mais moderno da América Latina, projeto que tenho o orgulho de ter assinado no governo Tarso Genro, totalmente financiado pelo Banco Interamericano e por um banco francês. Essa proposta representa uma entrega lamentável de patrimônio público e uma quarteirização da matriz energética do Estado.
“Carlos Búrigo disse que a CEEE não tem capacidade de investimento. Essa afirmação não tem nenhum fundamento técnico. Só a distribuidora, em quatro anos, investiu R$ 2 bilhões”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
O único resultado concreto desse pacote, até aqui, foi a extinção da Secretaria de Energia. Tanto é que o secretário Lucas Redecker está retornando para a Assembleia. Terminar com a CEEE, a Sulgas e a CRM significa acabar com toda a área energética do Rio Grande do Sul.
Sul21: Considerando o sistema energético existente hoje no Estado, a proposta de privatização das empresas do setor tem algum fundamento em termos de uma estratégia de desenvolvimento para o futuro?
Gerson Carrion: O Rio Grande do Sul, por ser ponta do sistema elétrico nacional, é um importador de energia. A nossa emancipação energética ocorreria se realmente aproveitássemos a riqueza das nossas reservas de carvão e dos nossos ventos. No entanto, recentemente, o governo Temer vetou o aproveitamento do carvão. O fato de termos três ministros gaúchos no governo atual não adiantou nada. O Rio Grande do Sul está excluído da política energética nacional e da possibilidade de sua própria emancipação em termos geração de energia. Também estamos com um gargalo em relação aos parques eólicos. A Eletrosul, de forma surpreendente, após ter vencido um leilão em 2014 para escoar a nossa energia, diz que não tem condições de fazer isso e está entregando para a chinesa State Grid.
Estou chamando esse processo de quarteirização da matriz energética do Rio Grande do Sul. O que esse pacote faz, na verdade, é eliminar 100% a existência de uma política energética no Estado. O governo Sartori quer, simplesmente, vender todo o nosso sistema energético. Mesmo estados como Paraná e Minas Gerais, governados durante anos pelo PSDB, nunca abriram mão de ter uma política energética, considerando-a um elemento essencial para qualquer política de desenvolvimento. A gente conhece esse receituário. Sofremos ele na carne durante o governo Britto, em 1997.
Sul21: Qual foi o saldo dessa privatização de parte da CEEE realizada pelo governo Britto?
Gerson Carrion: O governo Britto vendeu dois terços da nossa área de distribuição. Esses dois terços, em valores atualizados pela Selic, chegam a quase R$ 40 bilhões. Houve uma redução significativa da receita da concessão, na ordem de 54%. Além disso, quase a totalidade dos passivos (cerca de 88%) permaneceram com a CEEE. Os recursos captados pelo Estado com essa privatização de nada serviram para a solução do problema estrutural das finanças do Rio Grande do Sul. É lamentável que agora, quando é reconhecido que a empresa está recuperando os seus indicadores de qualidade, se retome esse tipo de proposta.
“Nós deixamos a CEEE recuperada e pronta para inaugurar obras”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Nós deixamos a CEEE recuperada e pronta para o novo governo inaugurar obras. A empresa ficou em segundo lugar, considerando as concessionárias de todo o pais, no ranking da melhoria dos indicadores de qualidade e satisfação dos seus clientes. A CEEE é hoje a terceira indústria do Estado. Pois o governo Sartori quer se desfazer da terceira indústria do Estado no momento em que ela está em plena recuperação. Só uma coisa explica isso e vou usar as palavras do nosso Leonel Brizola: os interesses ocultos. Repito: não há nenhum fundamento técnico para a venda desse patrimônio público dos gaúchos. Querem se desfazer também de um acervo de conhecimento técnico e de um ativo humano que leva anos para ser construído.
Nenhum Estado, que mereça esse nome, abre mão desse patrimônio. É um entreguismo, uma dilapidação do patrimônio pública nunca vistos no país. Não seremos um Estado novo ou um Estado do futuro, mas sim o Estado do atraso e do retrocesso. Não é nem mais Estado mínimo, é Estado zero ou negativo mesmo. O conceito de Estado envolve os princípios da universalização da prestação de serviços públicos de qualidade. Abdicar disso é abdicar da própria condição de ser Estado.
Isso é um desrespeito com a história de 73 anos da CEEE. Sempre digo que fomos forjados na luta e sobreviventes de um processo danoso de privatização. Ninguém acreditava que a CEEE chegaria até aqui e já estamos no quarto aditivo do nosso contrato de concessão. Quando o Britto estava disputando a eleição, ele mandou uma carta dizendo que não ia privatizar. É a mesma coisa com a fala do governador Sartori que, há um ano, prometeu fortalecer a companhia e agora vem com um pacote de privatização.
Sul21: Chama a atenção o fato de as três empresas públicas do setor energético estarem no pacote. Você lembrou o Brizola e os interesses ocultos. Já há compradores potenciais para essas empresas?
Gerson Carrion: Sim. O mercado é comprador. Estão aí os chineses chegando com força com a State Grid, com a Shangai Eletric. A State Grid é uma empresa estatal. Uma empresa estatal italiana acaba de ganhar um leilão em Goiás. A EDF, estatal francesa, ganhou outro. Então, as nossas estatais não servem e vamos vendê-las para estatais de outros países? Por que é mesmo que esse serviço está na mão de estatais nestes países? Porque consideram o setor elétrico como um serviço essencial e de segurança nacional. Aqui nós queremos entregar.
O deputado Ciro Simoni apresentou o projeto de lei 260 que autoriza o Estado a alienar total ou parcialmente as participações acionárias minoritárias da CEEE em dezessete outras empresas. Se querem vender algo, está aí uma alternativa. A venda dessas participações minoritárias em outros empreendimentos de geração e transmissão pode render R$ 1,8 bilhões para serem investidos na capitalização da CEEE.
Sul21: A mobilização contra esse projeto cresceu nos últimos dias. Na sua avaliação, o governo terá a maioria necessária para aprovar essa PEC?
Gerson Carrion: Para aprovar esse projeto o governo precisa do quórum qualificado, que são 55 deputados, e de 33 votos. Na última semana, o deputado Ciro Simoni, presidente da Frente Parlamentar pela Manutenção e Fortalecimento do Grupo CEEE, externou sua convicção que esse projeto não passará. Fizemos até as contas na audiência pública realizada na Assembleia: 11 votos do PT, 7 do PDT, 2 do PCdoB, 1 do PSOL, mais os votos do PTB (pelo menos três, dos deputados Lara, Classmann e Santini, que já se manifestaram). Só aí já temos 24. Precisamos de 23.
“Estão entregando o setor elétrico em todo o país”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Pouca gente sabe que o Programa de Desestatização do período Britto/FHC foi revogado no Rio Grande do Sul – que não ocorreu em nível nacional durante os 13 anos de governo do PT – por meio de um projeto apresentado pelo então deputado Vieira da Cunha. Se esse programa não tivesse sido revogado, eles nem precisariam estar enviando esse pacote agora. O programa mantinha um colchão legal que facilitava as privatizações e deixava o setor elétrico público em pânico permanente.
Somos contra esse processe de federalização que está ocorrendo no setor elétrico em nível nacional. Quando o Cunha estava sendo cassado, foi aprovada à noite, em votação simbólica, uma Medida Provisória entregando o setor elétrico para a iniciativa privada.
Sul21: A idéia dessa MP é federalizar para, logo em seguida, privatizar?
Gerson Carrion: Isso. Estão entregando todo o setor elétrico. O deputado José Carlos Aleluia, que foi meu colega do setor elétrico na década de 80, fez uma emenda de última hora estendendo a maldade da privatização das federalizadas aos estados e municípios. É algo que está sendo planejado e arquitetado em nível nacional, estadual e municipal. Por isso que chamo esse projeto também de lesa pátria, pois ele atenta contra os interesses da nação. Se esse projeto passar, uma das conseqüências vai a ser disparada das tarifas. E o Ministério das Minas e Energia está nas mãos do PSB, Partido Socialista Brasileiro, do deputado Beto Albuquerque, que foi secretário de Energia aqui no Estado. O Brizola pode dar uma revirada no caixão, às vezes, mas o Miguel Arraes deve virar do avesso vendo o PSB sendo protagonista de um processo de privatizações no setor elétrico.
Outra coisa que nos preocupa está relacionada à economia do Rio Grande do Sul. O PIB do Estado passará a ser só de prestação de serviços? As empresas chinesas que estão vindo para cá, produzem seus equipamentos lá. Isso significa que vamos perder empregos de engenheiros e técnicos de diversas áreas, num processo de precarização de mão de obra qualificada. Quando os chineses mandam equipamentos para cá vem junto com conjunto de técnicos deles para montar esses equipamentos. Eles têm mão de obra em abundância. Quando eles vieram instalar a modernização da térmica de Candiota, o previsto era que viessem quase dois mil chineses para realizar esse trabalho. Isso não ocorreu por conta da atuação do Ministério Público do Trabalho. Mesmo assim, devem ter ficado uns 400, trabalhando de forma precária, inclusive aos sábados e domingos. Esse é o Estado do futuro que estão propondo para os gaúchos?
O projeto deles é acabar com o setor elétrico público em todo o país. O mapa já está definido e prevê a existência de apenas três ou quatro players controlando todo o setor. A CPFL quer toda a região Sudeste e Sul do país, a Neoenergia com o Norte e o Nordeste e assim por diante, de modo similar ao que ocorreu com a telefonia. Agora, a Oi quebrou, deixando uma conta de R$ 65 bilhões para a sociedade e não se fala mais nisso. Foi bom terminar com a CRT? Foi bom terminar com a Telebrás? Querem fazer o mesmo no setor elétrico, implantando um monopólio cartelizado. Não sei como o CADE admite isso. Recentemente a RGE comprou a AES Sul. Quando venderam dois terços da rede de distribuição da CEEE um dos argumentos usados era que precisávamos desverticalizar o modelo para baixar a tarifa. Agora, estamos verticalizando de novo?
“Em setembro de 2015, uma edição dominical do jornal Zero Hora dedicou capa e mais seis páginas para falar da crise da CEEE. Nem o incêndio da boate Kiss teve esse espaço”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Sul21: A privatização de todo o setor elétrico nacional pode aumentar os riscos de desabastecimento em função da ausência de políticas públicas de regulação nesta área?
Gerson Carrion: É evidente que sim. O sistema elétrico brasileiro é uma referência mundial. É um dos melhores do mundo, se não for o melhor. Se você pegar esse sistema e jogar sobre o mapa da Europa ele vai até a Rússia. E é um sistema que funciona. O tempo médio de interrupção de abastecimento é muito pequeno. O que acontecerá se desnacionalizarmos esse sistema e acabarmos com os mecanismos de regulação? Não teremos qualquer controle sobre o mesmo. A ANEEL passará a ser uma mera homologadora. A lógica que passará a valer é a do lucro e não a da universalização de políticas públicas.
Sul21: No caso da CEEE, o que é possível ser feito para barrar essa ofensiva privatizadora?
Gerson Carrion: Nós deixamos pronto um programa de recuperação financeira reconhecido no BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e na França. Quando iniciou o governo deu para ver que a destruição da CEEE era planejada. Eles abandonaram o programa, cancelaram o financiamento do BNDES que tínhamos deixado pronto inclusive com o contrato assinado, algo que a companhia nunca tinha conseguido em seus 73 anos de vida. Cancelaram outro programa da Eletrobrás, de qualidade no campo, de quase R$ 100 milhões. No total, foram mais de R$ 500 milhões cancelados. Com a CRM aconteceu a mesma coisa. Pararam os investimentos e começaram a retirar a capacidade de expansão da empresa para entregá-la ao setor privado a um valor vil.
Aí o veículo das três letras, que eu chamo de controlador majoritário efetivo do Estado, sai fazendo matérias sobre a crise das estatais como a reportagem de seis páginas que o jornal Zero Hora publicou em uma edição dominical de setembro de 2015 sobre a situação da CEEE. Nem o incêndio da boate Kiss teve capa e seis páginas. Quiseram que eu desse entrevista para essa matéria, mas me recusei, pois sabia que queriam pegar uma frase minha para legitimá-la. Entre outras coisas, colocaram uma foto do Brizola ao lado de uma foto do Britto dizendo que o primeiro criou um custo ao encampar a empresa. Isso não parece ser por acaso. Já circulam notícias sobre interesses deste grupo – que passa por dificuldades financeiras e estaria migrando o capital para outros setores, entre eles o imobiliário – , nas áreas da CEEE e do Jardim Botânico.
Essa situação toda é lamentável, mas nós seguiremos firmes nesta luta.
http://www.sul21.com.br/jornal/privatizacao-da-ceee-e-um-crime-lesa-estado-e-lesa-patria-diz-ex-presidente-da-empresa/
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