terça-feira, 18 de março de 2014

Crimeia – mais uma crise produzida artificialmente 18/03/2014


14/3/2014, [*] Neil Clark, Russia Today
Crimea – another artificially created crisis
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Sergey Lavrov, Ministro de Relações Exteriores da Rússia

O ministro russo de Relações Exteriores, Sergey Lavrov, disse que a crise Ucrânia/Crimeia foi “produzida artificialmente, por motivos puramente geoestratégicos”. Acertou.

É importante entender que não se trata de caso único, mas apenas de mais uma numa longa sequência de “crises” ou deliberadamente infladas ou artificialmente criadas pelas potências ocidentais, para promover seus próprios interesses geoestratégicos.

O secretário de Relações Exteriores da Grã-Bretanha, William Hague, disse que a Crimeia é (seria) a “maior crise na Europa no século 21”. Mas não é a primeira vez que políticos ocidentais falaram em tons tão alarmistas em anos recentes.

Há exatamente 15 anos, em março de 1999, foi a “crise” do Kosovo – com líderes ocidentais a “declarar” que, a menos que a OTAN empreendesse ação militar urgente, milhares de albaneses kosovares seriam mortos por forças sérvias, as quais, como estávamos sendo “informados”, estavam engajadas em brutal guerra de genocídio.


Tony Blair

Dia 23/3/1999, o primeiro-ministro britânico Tony Blair disse, na Câmara dos Comuns:

Temos de agir para salvar de uma catástrofe humanitária milhares de homens, mulheres e crianças inocentes, da morte, da barbárie e da limpeza étnica, praticadas por uma ditadura brutal.

Também foi “crise” artificialmente criada, porque o que acontecia no Kosovo era conflito de baixa intensidade entre forças iugoslavas e combatentes do Exército de Libertação do Kosovo [Kosovo Liberation Army, KLA] apoiados pelo ocidente.

O serviço do KLA era atacar forças iugoslavas, provocar resposta violenta de Belgrado, que pudesse ser usada como pretexto para a intervenção pela OTAN que destruísse um país socialista independente que resistira contra a globalização. Era indispensável criar uma “crise”, para justificar a ação militar da OTAN.

Quatro anos depois, foi a “crise” das Armas de Destruição em Massa do Iraque. Era preciso fazer alguma coisa contra armas mortais de Saddam que nos “ameaçariam” mortalmente, todos nós – disseram os líderes ocidentais. Não podíamos esperar, sequer, que os inspetores de armas da ONU concluíssem sua inspeção.


Se não agirmos agora, voltaremos ao que já aconteceu antes e, claro, a coisa toda recomeça e ele prossegue no desenvolvimento daquelas armas e são armas perigosas, particularmente se caírem em mãos de terroristas que nós sabemos que querem usar aquelas armas se puserem as mãos nelas – disse Blair.



Crianças nasceram deformadas pelo bombardeio com urânio
empobrecido no Iraque

Dia 28/4/2003, quando ainda não se viam nem sinal de armas de destruição em massa de Saddam, Blair disse:

Antes de começarem a gritar sobre a ausência de Armas de Destruição em Massa, sugiro que esperem um pouco mais.

Já se passaram 11 anos, e ainda estamos esperando.

Na década passada, foi a “crise” nuclear do Irã. Ouvimos repetidamente a elite ocidental a repetir que a República Islâmica estaria desenvolvendo armas nucleares que seriam clara ameaça não só contra o Oriente Médio, mas para o mundo inteiro. Dar conta da “ameaça” nuclear iraniana seria a nossa mais urgente prioridade. Em janeiro de 2011, o secretário britânico de Defesa, Liam Fox alertou que o Irã já teria armas nucleares ao final de 2012.

Mas até 2013 já se foi, e o Irã ainda não tem as tais armas nucleares.

Depois, foi a “crise” da Líbia em 2011. Contaram-nos que forças do coronel Gaddafi estariam massacrando gente inocente e estavam a um passo de lançar ataque genocida contra civis em Benghazi. Mais uma vez, teríamos de lidar com mais essa “crise” urgentíssima.

Simplesmente não podemos parar e deixar um ditador cujo povo o rejeitou matar o próprio povo indiscriminadamente– declarou o primeiro-ministro David Cameron, vivendo um dos seus grandes dias de Tony Blair.


Barack Obama

Confrontados com essa repressão brutal e a crescente crise humanitária, ordenei que naves de guerra dirijam-se ao Mediterrâneo. Aliados europeus declararam-se dispostos a enviar recursos para deter a matança – disse o presidente Barack Obama, dia 28/3/2011.

Como no caso da “crise” no Kosovo e da “crise” das armas de destruição em massa no Iraque, a resposta ocidental à “crise” na Líbia foi também um ataque militar.

Em agosto de 2013, mais uma “crise” – o ocidente a declarar que o governo sírio teria usado armas químicas mortais contra o próprio povo. Mais uma vez a conversa foi que teríamos de agir com rapidez e firmeza para enfrentar mais aquela “crise”. Só a diplomacia russa e a opinião pública nos países ocidentais conseguiram impedir um ataque militar, pelos EUA ou liderado pelos EUA, contra a Síria.

E agora, em março de 2014, a nova “crise” é a “invasão” de Putin na Ucrânia e a ameaça que a Rússia faz contra uma Ucrânia independente e “democrática”, embora governada fascistas. E essa, não esquecer, é “a maior crise na Europa no século 21”.


Gareth Porter

De fato, nenhum dos eventos acima foi realmente crise alguma – incluindo a Crimeia. Não havia genocídio no Kosovo. O Iraque jamais teve armas de destruição em massa. O Irã não tem programa algum de produção de armas atômicas: foram, todas essas, “Crises Manufaturadas” [Manufactured Crisis]”, para usar o título do novo livro do jornalista-investigador Gareth Porter.

A forças de Gaddafi não estavam massacrando civis na Líbia – nem Gaddafi algum dia ameaçou massacrar civis em Benghazi. As forças líbias faziam lá exatamente o que forças iugoslavas faziam em 1999: combatiam uma guerra contra insurgentes inflados e pagos pelo ocidente.

Na Síria, todas as provas – além da lógica mais elementar – sugerem que foram os rebeldes, não o governo sírio, que lançaram o ataque químico em Ghouta – para tentar conseguir um ataque de intervenção militar por exércitos ocidentais. E, claro, não há nem houve qualquer “invasão” russa na Ucrânia.

Mas – e aqui está o ponto mais importante – as respostas ocidentais a essas “crises” criadas artificialmente, elas, sim, geraram crises reais. A “crise” do Kosovo foi “enfrentada” com 78 dias de bombardeio brutal na Iugoslávia, que destruiu toda a infraestrutura do país e deixou milhares de mortos e feridos; e, porque a OTAN usou bombas de urânio baixo-enriquecido, levou a um pico no número de casos de câncer. Os direitos humanos, sim, também foram gravemente feridos.

Em nenhum local [na Europa] há tal nível de medo entre tantas minorias, depois que foram atacadas simplesmente pelo que são– lia-se no relatório sobre o Kosovo, distribuído pelo Minority Rights Group International em 2006.



A "crise" no Iraque assassinou milhares de famílias

A “crise” das armas de destruição em massa do Iraque levou à invasão ilegal, da qual o Iraque ainda não se recuperou, nem dá sinais de conseguir recuperar-se ainda por muito tempo – com mais de 1 milhão de mortos e o país assolado por violento conflito sectário. O ano passado foi o mais mortífero no Iraque desde 2008, com mais de 7 mil mortos. Em 2002-3 os neoconservadores não paravam de falar da “crise” das armas de destruição em massa no Iraque e de como seria necessária ação urgente. Agora, que a crise é real no Iraque, estão calados.

A “crise” nuclear iraniana levou a sanções draconianas impostas ao país – o que levou o povo iraniano a ter de enfrentar dificuldades extremas – (como noticiado por Russia Today) e a aumento acentuado no preço do petróleo também para a Europa, exatamente algo de que não precisávamos em tempos de forte recessão. Milhões de pessoas sofreram desnecessariamente por causa de medidas tomadas para enfrentar uma “crise” que, para começar, nunca existiu.


A Líbia antes e depois do "bombardeio humanitário" dos EUA-OTAN
(clique na imagem para aumentar)

A “crise” líbia de 2011 levou a um assalto brutal, pela OTAN, contra o país, que provocou milhares de mortes; a agora a Líbia, como o Irã, é país destroçado, ainda afligido por vasto conflito. Também nesse caso, os que não paravam de falar sobre uma “crise humanitária” na Líbia em 2011 mantêm-se hoje estranhamente silenciosos.

A “crise” gerada por um ataque de armas químicas que jamais aconteceu quase levou à eclosão de grande guerra regional e, pode-se supor, teria levado a uma IIIª Guerra Mundial, mas, na sua obsessão por derrubar o governo Baathista, o ocidente e seus aliados regionais ainda apoiam os rebeldes violentos e, assim prolongam o sofrimento da guerra para milhões de sírios.

Agora, outra vez estão em ação os inventores seriais de “crises”, dessa vez tentando convencer-nos de que um referendo na Crimeia e a possibilidade de que a Crimeia, cuja população é formada de quase 60% de russos étnicos, volte à Rússia, seria uma grave “crise”.

E mais uma vez os passos que nos propõem – sanções contra a Rússia – só levarão a mais crises e a crises mais graves que a “crise” inventada: as sanções serão desastrosas para as economias ocidentais, especialmente para as economias europeias.


Sergey Aksyonov, PM da Crimeia, anuncia o resultado do Referendo de 16/3/2013 -
95,7% da população da Crimeia participou da votação

Ao mesmo tempo em que as elites ocidentais esperam que percamos o sono por causa de crises artificialmente criadas, como a da Crimeia, as verdadeiras crises, as crises reais que afetam a vida de milhões de pessoas comuns no ocidente e por todo o mundo são ignoradas por aquelas mesmas elites. O aquecimento global. O número recorde de desemprego entre os jovens. A distância sempre crescente entre ricos e pobres. A queda rápida no padrão de vida das pessoas comuns em todo o ocidente. Essas são as crises que governos seriamente democráticos deveriam estar enfrentando. Em vez de enfrentá-las, a elite ocidental prefere inventar crises novas.

A história recente ensina que sempre que governos ocidentais e a imprensa-empresa que sempre lhes é servil só fazem falar de uma “crise” internacional e alertar que “algo tem de ser feito”, o melhor a fazer é nada. Absolutamente nada.

Concentremo-nos em enfrentar as crises reais – a destruição do meio ambiente, o crescimento da pobreza, da desigualdade e do desemprego. E não nos deixemos enganar pelas “crises” artificiais, em direção às quais as elites ocidentais tentam desviar nossa atenção.


[*] Neil Clark é jornalista, escritor, radialista e blogueiro. Escreve para vários jornais e revistas no Reino Unido e outros países, incluindo The Guardian, Morning Star, Daily Express, Sunday Express, Mail on Sunday, Daily Mail, Daily Telegraph, New Statesman, The Spectator, The Week e The American Conservative. É comentarista regular da Rússia Today, BBC TV e as rádios Sky News,Press TV e Voz da Rússia. É co-fundador da Campaign For Public Ownership (twitter @PublicOwnership). Seus trabalhos podem ser encontrado no premiado blog de Neil Clark. Tweets sobre política internacional em: @ NeilClark66


POSTADO POR CASTOR FILHO


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