Dilma
Rousseff: “O que está em jogo hoje é o que vai ser a eleição de 2018.
Essa será a pauta a partir da metade do ano (Foto: Maia Rubim/Sul21)
Marco Weissheimer
Quase seis meses depois da votação da última etapa do impeachment no
Senado Federal, Dilma Rousseff olha para esse período não como uma
página virada na sua história de vida ou na história política do país,
mas sim como um processo em andamento. “O golpe não acabou”, afirma,
advertindo para os riscos que a democracia brasileira corre com o
desenrolar do processo golpista. Em entrevista ao
Sul21,
concedida em seu apartamento em Porto Alegre, Dilma Rousseff fala sobre
as raízes profundas e aparentes do golpe, denuncia o desmonte de
políticas sociais e de setores estratégicos para o país, como as
indústrias naval e petrolífera, e aponta as tarefas que ela considera
prioritárias para a esquerda e para todas as forças progressistas do
país:
“A questão democrática é fundamental para nós. Sempre ganhamos quando
a democracia se aprofundou e sempre perdemos quando ela foi
restringida. O que está em jogo hoje é o que vai ser a eleição de 2018.
Essa será a pauta a partir da metade do ano. Acho que o Lula, nesta
história, cumprirá um papel muito importante, concorrendo ou não. A
segunda etapa do golpe pode ser muito mais radicalizada e propensa à
repressão. Nossa missão é garantir o maior espaço democrático possível,
denunciar todas as tentativas de restrição das liberdades democráticas e
tentar garantir em 2018 um processo que seja construído por baixo”,
defende.
Sul21: Em um artigo publicado na semana passada,
o sociólogo e cientista político Aldo Fornazieri afirmou que a
consequência mais trágica do golpe é a destruição do Brasil enquanto
nação e a sua decomposição moral. Do ponto de vista econômico, afirma
ele, o país está à venda. Do ponto de vista social, há um grande
desastre em curso, com um massacre de direitos. A senhora concorda com
essa avaliação?
Dilma Rousseff: Concordo. Acho que ele tem toda a
razão. Há exemplos muito concretos, como a questão das empresas que
compõem a cadeia de petróleo e gás. Estamos vivendo um momento de
destruição dessa cadeia que era uma das mais importantes do país. Ela é
uma das mais importantes porque a produção de petróleo em águas
profundas exige um fornecimento de equipamentos e serviços de
engenharia, uma expertise em extração de petróleo em grandes
profundidades sob grande pressão e altas temperaturas. Ela exige uma
tecnologia sofisticada. Todos os países desenvolvidos – e mesmo os em
desenvolvimento – que tiveram a experiência da descoberta de petróleo
buscaram, de alguma forma, internalizar essa cadeia, fazendo que ela não
fosse uma cadeia externa para não ter o efeito da chamada doença
holandesa. Nesta doença, você cria uma riqueza, por exportação ou
exploração da mesma, mas essa riqueza não é internalizada na forma de
criação de empregos, investimentos, desenvolvimento científico e
tecnológico.
“Esse
processo de destruição da indústria naval brasileira e de toda a
política de conteúdo local, mais cedo ou mais tarde, vai chegar na
Petrobras”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
Como se chama essa política de internalização? Política de conteúdo
local. Essa política foi feita na Noruega e ninguém pode dizer que a
Noruega é chavista. Virou uma grande acusação para se interditar uma
discussão falar em chavismo, lembrando que Chávez foi muito bom para o
país dele pois diminuiu bastante a pobreza e acabou com a dominação
externa da PDVSA (Petróleos de Venezuela). A política de conteúdo local
tinha um objetivo claro. Nós tínhamos sido, na década de 90, os maiores
produtores de navios, junto com a Coréia do Sul. Nós estávamos em oitavo
lugar e a Coréia devia estar ali pelo 13
o lugar. Hoje, a
Coréia é um grande produtor de navios e de equipamentos para a extração
de petróleo. Ela manteve seu processo de industrialização e de
internalização que nós interrompemos no governo Collor quando acabaram
com a indústria naval brasileira.
Nós recuperamos essa indústria por meio da política de conteúdo
local. Segundo essa política, tudo o que puder ser produzido no Brasil
deve ser produzido no Brasil, mantendo-se a busca de mesmo custo, mesmo
nível tecnológico e mesma qualidade dos produtos. Essa política estava
em curso e, hoje, está sendo inteiramente destruída. O que estamos vendo
hoje? Abre-se uma licitação na Petrobras, dirigida a empresas
internacionais. Todas elas são grandes empresas de engenharia e todas
são investigadas ou por questões administrativas ou por questões
criminais em processos de corrupção. Mas podem participar da licitação.
Já as nossas estão impedidas de participar. Com isso, você destrói, não
só a indústria naval, mas também a possibilidade de fornecimento de
equipamentos, exportando empregos para o Japão, Coréia, Estados Unidos e
para a própria Europa.
Esse processo de destruição da indústria naval brasileira e de toda a
política de conteúdo local, mais cedo ou mais tarde, vai chegar na
Petrobras. O nosso papel é impedir que isso aconteça. A internalização
que promovemos não era só de empresas brasileiras. Você podia
internalizar aqui a produção de navios de qualquer nacionalidade. Mas
tinha que produzir aqui. Isso foi feito em outros países do mundo. A
Noruega fez isso quando descobriu que tinha reservas de petróleo
significativas. As nossas são muito maiores.
A questão social é ainda mais grave. O modelo principal aí é a emenda
constitucional que foi aprovada congelando por até vinte anos os
investimentos. Mas ela não faz só isso não. Ela enrijece o orçamento e,
ao fazer isso, cruza duas coisas. Uma delas é o enquadramento do Brasil,
mais uma vez, depois que nós interrompemos o neoliberalismo do Fernando
Henrique. Para isso, é preciso “limpar” o orçamento, ou seja, tirar
dele esses subsídios desnecessários para os pobres. Essa é a ideia que
está por trás dessa emenda constitucional. Mas, além disso, ela também é
uma medida de exceção. Está consagrado na Constituição que nós somos um
país democrático que elege seu presidente pelo voto direto do povo
brasileiro. Quando elegemos um presidente, elegemos um projeto que é
executado via orçamento. Se você congela o orçamento por vinte anos,
está burlando a Constituição ao longo de cinco mandatos. E onde fica o
direito ao voto direto?
“Eles
querem reenquadrar o Brasil, também do ponto de vista geopolítico.
Querem reenquadrar um país que ousou ser multilateral”. (Foto: Maia
Rubim/Sul21)
Então, o Fornazieri tem toda razão. Nós estamos vendo um processo de
retrocesso, cujo objetivo central é reenquadrar o Brasil. Nós, junto com
praticamente toda a América Latina, nadamos contra a corrente. Neste
período, nós reduzimos a desigualdade enquanto que, no resto do mundo,
ela se ampliou. No resto do mundo, a financeirização correu solta e
levou a uma concentração de riqueza nunca antes vista. Nós interrompemos
as privatizações, a perda de direitos. Por isso, agora, eles querem,
também do ponto de vista geopolítico, reenquadrar o Brasil, um país que
ousou ser multilateral, dar prioridade para a América Latina, para a
África e para os BRICS, mantendo mesmo assim uma relação muito cordial
com os países desenvolvidos. O que estamos vendo não se trata apenas de
perda de direitos. Querem nos enquadrar em outro modelo, dar para nós
outras balizas, outros limites e outra configuração.
Essa é a dimensão mais profunda do golpe. A mais visível é aquela
expressa na frase “vamos estancar a sangria antes que eles cheguem até
nós”, antes que as investigações de corrupção cheguem à ala política dos
golpistas.
Sul21:
O golpe foi dado carregando duas grandes
“promessas” à sociedade brasileira: o combate à corrupção e a retomada
do crescimento econômico. Essas duas “promessas” fracassaram. O
desemprego atingiu níveis alarmantes e muitos dos investigados e
indiciados na Lava Jato estão governando o país. Considerando o “não
cumprimento” desses temas poderíamos dizer que o golpe fracassou ou suas
verdadeiras promessas são outras?
Dilma Rousseff: Eu acho que eles subestimaram a
crise econômica e a crise política que eles mesmo geraram. Quando esteve
no Brasil, no início de 2015, Stiglitz disse que a crise econômica
estava precificada. O que não estava precificado é que se acoplasse a
ela uma crise política de proporções gigantescas. Eles defenderam a tese
de que a crise econômica era causada por uma falta de confiança que,
por sua vez, decorria da crise fiscal. Ou seja, o governo tinha sido
muito pródigo nas políticas sociais e havia gasto muito com subsídio ao
investimento, gerando uma crise fiscal. Essa crise fiscal teria
produzido uma crise de confiança. Enquanto essa não fosse resolvida,
nada aconteceria. E a receita para resolver a crise fiscal seria cortar
gastos. Um impostinho não pode? Não, de jeito nenhum. Um pato amarelo
foi colocado na avenida Paulista dizendo: ‘não pagaremos o pato’.
Leia-se: não venham com impostos para nós porque não pagaremos. Não
venham com CPMF, juro sobre capital próprio modificado ou dividendos,
que não pagaremos.
“O pato da avenida Paulista mostra que há sempre um conflito distributivo diante de uma crise”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
A doutrina do corte de gastos é entronizada como a solução para todos
os problemas. É óbvio que sempre é possível cortar algum gasto. O que
não é óbvio é sustentar que cortar gastos resolve o problema. Quando há
uma crise econômica ocorre uma queda da arrecadação. A arrecadação cai
mais que as despesas e deprime a demanda, o que, por sua vez, deprime o
crescimento, aumentando o desemprego e por aí vai. Então, você pode
cortar gastos, mas têm de aumentar a receita. A hora de aumentar receita
é diante da crise. O pato da avenida Paulista mostra que há sempre um
conflito distributivo diante de uma crise. Quando se está numa fase de
expansão, sobra dinheiro para todo mundo. Quando começa algum problema é
preciso distribuir os cortes.
O problema da subestimação da crise é achar que se sai dessa situação
com corte de gastos. A austeridade da Europa já provou que não sai. Os
Estados Unidos, pragmaticamente, não fazem isso desse jeito. Hoje, há
toda uma escola de economistas, inclusive dentro do Fundo Monetário
Internacional, que questionam esse caminho. Agora, essa questão dos
impostos é altamente ideologizada. Essa é uma discussão interditada. Os
próprios setores progressistas do nosso país têm dificuldade de discutir
imposto. Mas não existe forma de financiar um Estado a não ser por
imposto ou por endividamento. A face mais explícita no golpe é a Fiesp
dizendo “não pagamos o pato”. E, entre nós, o silêncio.
No mundo em que o neoliberalismo é dominante há algumas verdades que
são sagradas. A primeira verdade sagrada é que é preciso reduzir o
tamanho do Estado. A segunda diz que é preciso privatizar porque o
Estado é inepto em certas atividades. Outra defende a redução de
direitos sociais, pois eles criariam uma distorção, retirando estímulo
para as pessoas competirem. A teoria dos tucanos e do pessoal do PFL
sobre o “bolsa esmola” é derivada daí. Agora, o eixo central dessa
teoria é a desregulação. O que é a desregulação? Não se meta com o
capital financeiro e não tribute. Crie paraísos fiscais, para onde seja
possível fugir evitando a tributação. Quando olhamos o comportamento da
tributação no mundo, constatamos o seguinte: em toda parte, diminui a
tributação sobre ganhos de capital e aumenta a tributação sobre as
famílias, trabalhadores, classe média, tudo o que não é ganho de
capital.
O fato de eles subestimarem a origem da crise cria um impasse. Nós
pegamos uma queda das commodities, uma redução do crescimento da China,
uma grave crise hídrica e os Estados Unidos saindo do
quantitative easing, política
baseada em juros baixos e liberação de muito dinheiro para rolar a
dívida. Hoje, no Brasil, eles ficam muito felizes quando o dólar está
baixo e o real alto. Esperam que essa relação fique abaixo de 3, ou
seja, três reais para um dólar. Somos o único país que comemora isso.
Trump criticou a Angela Merkel dizendo que o euro é uma manipulação da
Alemanha para ter um marco desvalorizado e poder, assim, aumentar a sua
capacidade de competição. Deixando a Alemanha entregue a si mesma, a
relação dólar-euro teria o primeiro mais desvalorizado e o segundo mais
valorizado. Com isso, os nossos produtos, disse Trump, seriam mais
competitivos.
“Comemoramos um dólar a menos de três reais, o que inviabiliza a indústria brasileira”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
No Brasil, nós comemoramos o oposto. Comemoramos um dólar a menos de
três reais, o que inviabiliza a indústria brasileira. A recuperação
americana, mesmo com toda a sua desigualdade, se dá porque eles enchem
de dinheiro o setor financeiro, desvalorizam o dólar e desandam a
exportar. Aqui, o reino da financeirização é total. Percebi isso em toda
profundidade no governo. Uma coisa me intrigava: porque toda vez que o
juro baixava (em 2012, essa baixa chegou a 2,5%), era como se todo o
segmento empresarial virasse de costas para o governo.
Sul21:
Há quem diga que ali começou o processo do golpe…
Dilma Rousseff: Eu acho. Acho que uma parte começou
ali. O que caracteriza o neoliberalismo hoje não é o fato de que eles
tenham elaborado o Consenso de Washington, mas sim a preponderância do
setor financeiro sobre o setor produtivo. De certa forma, todos viraram
bancos. E quando todos viram bancos, é bom lembrar que, uma parte que
não é banco propriamente dito, não está regulada. Uma parte expressiva
dos ganhos das empresas passa a decorrer da atividade financeira e não
da atividade produtiva. Os Estados Unidos são o que há de mais
desenvolvido do ponto de vista do sistema capitalista. Lá, do total do
movimento financeiro, 15% vai para o setor produtivo e 85% é compra e
recompra de ações, empréstimos e todos os processos de transformar bens
em títulos.
Neste contexto, o que explica o aumento brutal da desigualdade nos
Estados Unidos e em outros países desenvolvidos? A própria eleição de
Trump está relacionada a esse aumento da desigualdade. Esse aumento
começou na década de 80, pós-Thatcher e pós-Reagan. O que aconteceu
neste período foi a desregulação de todo o setor financeiro. O processo
de internacionalização é eminentemente financeiro, tanto para o bem como
para o mal. O sistema bancário foi internacionalizado, mas as redes de
paraísos fiscais também foram. Tivemos a partir daí um processo
gravíssimo de concentração de riqueza. Esse processo explica o Trump e o
Brexit (na Inglaterra).
No caso do Trump, não é só o homem branco sem formação universitária
que está ganhando o que ganhava há 60 anos. Há uma estagnação de
salário, uma dominação da atividade de serviços sobre a indústria e uma
ampliação da financeirização em todas as áreas. A tesouraria das
empresas passa a se interessar cada vez mais por valorização financeira.
No caso do Brasil, agregue-se a isso o fato de que são sócios do giro
da dívida, que permite grandes ganhos, principalmente se você tem acesso
aos mercados internacionais. Se você toma 1% lá fora e aplica 7% aqui,
você ganha 6% sem fazer nada. Essa dominação financeira é casada com o
aumento da desigualdade. O nosso negócio não era o aumento da
desigualdade, mas sim sua diminuição. É importante que se diga isso
porque toda a América Latina está sendo enquadrada. Quando enquadraram o
Brasil e a Argentina, enquadraram todo o sul do continente.
“Não está claro para ninguém que a raiz da desigualdade é a financeirização”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
O aumento da desigualdade nos países desenvolvidos é fundamental para
entender a dinâmica desse processo. Por que deu Trump se o Obama era
tão simpático? O que explica o Brexit? Não está claro para ninguém que a
raiz da desigualdade é a financeirização. O que dizem para o
trabalhador branco americano? Esse bando de latinos está roubando o
emprego de vocês. É preciso construir um muro na fronteira com o México.
Mas dizem uma segunda coisa interessantíssima sobre o livre comércio.
Os acordos como a ALCA, o Transpacífico e o Transatlântico também são
responsáveis pelo desemprego, pois levam as empresas americanas para
outros países. Ninguém toca no assunto “onde estão os grandes ganhos?”.
Há ainda uma outra explicação importante. Quando o governo não atende
as demandas da sociedade a política se torna irrelevante. Junto com
isso ocorre um processo de despolitização. A política é substituída pela
seguinte orientação: “vamos achar os culpados”. Quando mais concreto
for o culpado mais fácil é. No período entre guerras foi assim. O
surgimento do nazismo e do fascismo decorre dessa ausência de resposta
do Estado. O vazio de propostas é preenchido por coisas do tipo “a culpa
é dos imigrantes”. Pensar que a culpa pelo aumento da desigualdade nos
Estados Unidos é dos latinos é algo ridículo. Estimula-se a briga dos
pobres contra os pobres e não se fala nada sobre onde está concentrada a
monstruosa riqueza de 16 trilhões de dólares anuais.
Aqui, nós temos um processo de enquadramento do Brasil. Com a eleição
de Lula em 2003, nós interrompemos a implementação do neoliberalismo.
Não interrompemos tudo, mas bloqueamos uma parte expressiva. Não
conseguiram executar, por exemplo, uma pauta de desconstituição dos
trabalhadores. Querendo ou não, a política de valorização do salário
mínimo levou a um crescimento real de 75% do mínimo. Eles diziam que
esse era um dos grandes componentes da inflação. Nós não privatizamos a
Petrobras e também não privatizamos três grandes bancos: o Banco do
Brasil (que concorre com os grandes bancos privados), a Caixa (único
banco imobiliário do país) e o BNDES (único banco de financiamento de
longo prazo). Além disso, não retiramos direitos sociais, muito pelo
contrário. Foi por isso que decidiram nos enquadrar de novo, como
fizeram também com a Argentina.
No caso do Brasil, há um interesse também de nos enquadrar
geopoliticamente. Muita gente achou inadmissível a postural multilateral
que adotamos e que acabou sendo responsável pelo surgimento dos BRICS,
um grupo nada trivial que reuniu China, Rússia, Índia, África do Sul e
Brasil. Um dos principais pontos da política externa do governo Obama, é
bom lembrar, foi a contenção da China. Segue sendo, aliás. Quando
decidimos fazer um banco dos BRICS…
(Foto: Maia Rubim/Sul21)
“Uma sociedade com aumento abusivo de desigualdade acaba caminhando para ter medidas de exceção”.
Sul21:
Aí já foi abusar da sorte…
Dilma Rousseff: É. Foi um abuso. Tem uma coisa que é
muito pouco comentada. Nós criamos uma coisa chamada “Acordo
Contingente de Reservas”. Você sabe o que é isso?
Sul21:
Não.
Dilma Rousseff: É um FMI. Um acordo contingente de
reservas é um fundo monetário dos BRICS, um fundo de 100 bilhões de
dólares, ao qual os países podem recorrer em caso de crise cambial.
Criamos, portanto, um banco de investimentos e um fundo contingente de
reservas. Acho que isso era o que mais incomodava, além de toda a
política dentro do G-20, de não termos votado a favor da invasão do
Iraque e essa coisa toda. Então, acho que essas duas questões estavam na
pauta: enquadramento econômico e geopolítico.
Sul21:
A senhora disse que os articuladores do golpe subestimaram a crise política. Em que consiste exatamente essa subestimação?
Dilma Rousseff: Além dessa relação entre
financeirização e aumento da desigualdade, há outro elemento importante.
Uma sociedade com aumento abusivo de desigualdade acaba caminhando para
ter medidas de exceção. Nós ganhamos quatro eleições. Acho que eles
tinham perdido completamente a esperança de ganhar uma eleição dentro do
método democrático e acabaram aplicando aquilo que o (Milton) Friedman
disse para Pinochet, fazendo com que o politicamente impensável torne-se
politicamente inevitável. Isso acabou acontecendo por meio de uma série
de medidas. Um exemplo disso foi a atitude do Supremo em relação à
nomeação de Lula como ministro. O STF impediu que o Lula assumisse a
condição de chefe da Casa Civil e, agora, permitiu que Moreira Franco
virasse ministro. Nos dois casos, o Supremo não poderia ter interferido.
Ele só interferiu no segundo por causa do primeiro, adotando critérios
diferentes nos dois casos.
Quando você não respeita a isonomia, o arbítrio passa a ser a regra e
o estado de exceção vai se infiltrando progressivamente na democracia. O
principal mecanismo do estado de exceção é construir guetos
antidemocráticos. Esses guetos não são territoriais. Podem ser
tendências. Um exemplo disso é quando o Tribunal Regional Federal da 4
a região
diz que é possível tomar medidas excepcionais quando se trata de um
caso excepcional como a Lava Jato. Ou seja, pode até suspender a
Constituição. Outro é aquilo que o procurador Dallagnol não teve o menor
pudor de dizer sobre Lula: “não tenho provas, mas tenho convicção”.
Quando se entra em um processo de ruptura institucional, como é o
caso do impeachment, por aí se abre o caminho principal para o estado de
exceção. Cria-se entre os poderes um mundo sem lei. Se é possível
acertar o Executivo, sem crime de responsabilidade, que é o poder
representativo do Estado, tudo é permitido.
“Você
pode prender executivos, mas preserva a empresa. Não é o que estamos
fazendo no Brasil. Quando é que a Alemanha fará isso contra a Siemens?
Nunca!” (Foto: Maia Rubim/Sul21)
Sul21:
Como a Operação Lava Jato se insere neste processo, na sua opinião?
Dilma Rousseff: O Brasil tem uma tradição de usar o
tema do combate à corrupção contra os setores progressistas. Isso vem
desde Getúlio Vargas. Em 1964, o golpe foi dado em torno de duas
questões: subversão e corrupção. As acusações de corrupção foram
lançadas também contra Jango e Juscelino. Acredito que há um componente
ideológico fortíssimo aí. O que aconteceu na Lava Jato tem aspectos
bastante graves. O mais grave deles, na minha opinião, é a não
preservação, pelo Estado brasileiro, das suas empresas. Você pode
prender executivos, mas preserva a empresa. Não é o que estamos fazendo
no Brasil. Quando é que a Alemanha fará isso contra a Siemens? Quando é
que os Estados Unidos farão isso contra seus bancos? Nunca.
Outra coisa que me parece grave é a utilização político-ideológica de
vazamentos seletivos. Esse processo de politização dos agentes
judiciários é muito sério. É inadmissível que um juiz fale fora dos
autos. Em qualquer lugar do mundo democrático, se um juiz fala fora dos
autos, anula-se o processo. Aqui no Brasil, um juiz pode fazer isso que
não acontece nada. Nós temos um problema sério para resolver aí. Nós
temos um conflito de poderes. O estado de exceção significa o uso do
Judiciário de forma política escrachada para fazer julgamentos
políticos. Isso é o que mais caracteriza o estado de exceção que
pretende transformar algumas pessoas em indivíduos nus, destituídos de
qualquer pele de cidadania. Para mim, o exemplo maior de homem nu está
nos prisioneiros de Guantánamo. Aquele povo ali é absolutamente nu. Não
tem direito a nada. Não são cidadãos, não são prisioneiros de guerra,
não são nada.
No Brasil, creio que tentaram fazer isso com o que chamaram de
“lulopetismo”. O lulopetismo teve essa característica de ser
transformado em um inimigo que deveria ser destruído. Está ficando
difícil fazer isso por essa exigência de “estancar a sangria”. O
estancamento da sangria, cabe lembrar, foi discutido antes do
impeachment. Ninguém pode alegar que desconhecia isso. Está lá gravado,
um senador do PMDB gravando outro senador. O que eles não contaram? O
resto da gravação. Esse resto da gravação é absolutamente elucidativo,
pois denuncia quem são os golpistas. Há uma aliança entre PMDB e PSDB, a
qual se junta o pato da FIESP e a mídia.
Sul21:
Qual é, na sua avaliação, o peso e o papel da grande mídia comercial em todo esse processo?
Dilma Rousseff: Há, na minha opinião, um processo
seríssimo envolvendo a mídia. Creio que o Brasil tem dois grandes
problemas estruturais: precisa fazer uma Reforma Política e promover uma
desconcentração econômica da mídia. Não se trata de democratização da
mídia. Vamos chamar as coisas pelo nome. Só poderemos falar em
democratização em um quadro onde não haja tamanha concentração
econômica. Não quero controle de conteúdo. Quero que o Globo continue
falando o que pensa, mas sem todo o poder econômico concentrado nele.
Uma das coisas que o Eduardo Cunha negociou para ser presidente da
Câmara foi que ele não deixaria andar qualquer projeto relacionado à
desconcentração econômica da mídia. Tanto é que, um mês e meio antes de
sua eleição para a presidência da Câmara, os jornais pararam de falar
mal dele.
Sul21:
A senhora viveu dois golpes, em épocas
distintas, com características distintas. O cientista político Wanderley
Guilherme dos Santos disse que o golpe de 2016 tem um caráter mais
anti-nacional que o de 1964. Você concorda com essa avaliação e acredita
que corremos o risco de um processo maior de repressão e fechamento
político, considerando recentes declarações de Eliseu Padilha e do
próprio Michel Temer?
Dilma Rousseff: Eu concordo que é mais
anti-nacional. Também acho isso. Por outro lado, acho estranho o
Exército aceitar um papel de repressão. Eles têm uma atribuição de ser
uma força de dissuasão e não de repressão. E não gostam disso. Não
querem que o Exército vá para a rua brigar com policiais, por exemplo.
Só se mudaram muito de maio de 2016 para hoje. Um exército não pode se
dar ao luxo de reprimir a sua própria população. Isso é muito complicado
e não significa garantia da lei e da ordem. O exército não é um órgão
de repressão de movimentos e grandes lutas urbanas. E não pode se tornar
isso. Não acredito que os oficiais que estão hoje na direção do
Exército concordem com isso.
Sul21:
Há alguma resistência visível, dentro das
forças armadas, ao desmonte de projetos que vinham sendo tratados como
estratégicos, como o da construção do submarino nuclear, por exemplo?
“O
exército não é um órgão de repressão de movimentos e grandes lutas
urbanas. E não pode se tornar isso”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
Dilma Rousseff: Para a Marinha, é gravíssimo. Há
três grandes projetos envolvendo cada uma das forças. Para a Aeronáutica
era a construção do caça por meio de uma parceria de incorporação de
tecnologia com a Suécia. Para a Marinha, é todo o programa do submarino
nuclear. Esse processo avançou muito. Uma parte da engenharia estava lá
na França e outra parte estava aqui construindo um submarino não
nuclear. A interrupção desse projeto é gravíssima. É algo que, por
questões de segurança nacional, não poderia ser interrompido. Para o
Exército, havia dois grandes projetos, um sobre a guerra cibernética e
outro relacionado ao parque industrial de armas medias e pesadas, alem
da proteção de espaços estratégicos como linhas de transmissão complexas
que, se caírem, fazem cair um pedaço do Brasil. Esses projetos estão
baseados em uma visão dupla com a qual trabalhamos, de construção
soberana de uma indústria militar e de garantia da segurança nacional.
Há um programa que foi construído a partir dessa visão.
Sul21:
Considerando todo esse cenário, qual são,
na sua opinião, as principais tarefas da esquerda e das forças
progressistas do país neste momento?
Dilma Rousseff: A questão democrática é fundamental
para nós. Sempre ganhamos quando a democracia se aprofundou e sempre
perdemos quando ela foi restringida. O fato de termos um estudo de caso
para o avanço do estado de exceção é muito elucidativo. Nós vamos ter um
encontro direto com a democracia em 2018. A democracia é vivida todo
dia, toda hora e todo minuto. Mas, no Brasil, a gente tende a viver o
nacional e o popular em um momento único que é o momento da eleição. O
que está em jogo hoje é o que vai ser a eleição de 2018. Essa será a
pauta a partir da metade do ano. Acho que o Lula, nesta história,
cumprirá um papel muito importante, concorrendo ou não. Será muito ruim
para o país se ele não puder concorrer. O Brasil ficará desmoralizado.
Ele pode perder a eleição. Não há desmoralização nenhuma nisso. O que
não pode acontecer é ele ser impedido de concorrer.
Acho que eles vão vir com tudo. O golpe ainda não acabou. Eu fico com
muito medo dessa segunda fase. Analogia nunca é um elemento muito
confiável de avaliação, mas a segunda etapa do golpe pode ser muito mais
radicalizada e propensa à repressão. Nossa missão é garantir o maior
espaço democrático possível, denunciar todas as tentativas de restrição
das liberdades democráticas e tentar garantir em 2018 um processo que
seja construído por baixo. No Brasil, há uma tendência a acordos por
cima. Foi assim que se passou do Império para a República. Um dos
motivos pelos quais o Bolsonaro vai ao Congresso e defende o Ustra e a
tortura é porque fizemos uma transição por cima para a democracia. Uma
transição por cima permite que torturador seja anistiado, sendo que a
tortura é um crime impescritível em qualquer lugar do mundo.
Sempre é possível ter uma transição por cima, mas acho que as
condições para termos uma transição desse tipo no Brasil inexistem
atualmente. E não é tanto por causa da esquerda, mas sim pelo nível de
radicalização da direita no país. Não vamos nos iludir. O leão não é
manso. A única transição que está ao nosso alcance é uma transição por
baixo que pode lavar a alma desse país em 2018, seja quem for que ganhe.
O processo democrático tem o poder e a faculdade de propor um
encerramento, se for uma eleição que não implique um golpe, que seria
tirar o Lula. Não é uma questão minha ou sua, não é uma questão
individual. É só aí que podemos nos encontrar todos.
http://www.sul21.com.br/jornal/o-golpe-nao-terminou-a-segunda-etapa-pode-ser-muito-mais-radicalizada-e-repressora/