Filhos da Guerra
20 de Setembro de 2011
Kelley Beaucar Viahos
Fonte: Uruknet  |  Tradução de F.Macias
No  discurso deste ano do Estado da União, o Presidente Barack Obama  declarou que “a guerra do Iraque está a chegar ao fim” – pelo menos para  os Americanos, saimos “de cabeça erguida” porque “o nosso compromisso  foi cumprido”. 
Contudo,  para milhões de Iraquianos, a guerra está longe do fim – na verdade,  para cada vez mais famílias nas cidades que foram quase destruídas  durante os anos de insurgência e contra-insurgência, a crise está só a  começar. Como disse um Americano Iraquiano, “ Só porque nós  (Norte-americanos) não prestamos atenção, não significa que o resto do  mundo não esteja a prestar atenção”.
Segundo  estudos e relatos de testemunhas sobre os últimos anos, Faluja – uma  cidade iraquiana que foi praticamente eliminada pela artilharia pesada  norte-americana em duas grandes ofensivas em 2004 – confronta-se com um  número assombroso de defeitos de nascença. A situação faz eco de relatos  semelhantes em Bassorá que começaram a aparecer depois da primeira  Guerra do Golfo em 1991.
A  série de horrores enumerados é confrangedora: bebés que nascem com um  olho no meio da cara, sem membros ou com muitos membros, com a cabeça  defeituosa, insuficiências cardíacas, e falta de órgãos genitais.
Ao  visitar uma clínica em Faluja em Março 2010, John Simpson da BBC disse “  Fomos confrontados com imensos casos de crianças com graves defeitos de  nascença… Vi uma fotografia que mostrava um recém-nascido com três  cabeças”. Depois, no principal hospital da cidade, fundado pelos EUA,  uma quantidade de pessoas chegavam com os seus filhos que tinham membros  defeituosos, deformações na coluna e outros problemas. Dizem que as  autoridades de Faluja avisavam as mulheres para não quererem de todo ter  filhos.
Ayman  Qais, director do hospital geral de Faluja, disse ao Guardian que  assistia a dois bebés afectados por dia, em comparação com quatro por  mês que vira em 2003. “A maior parte (das deformações) são na cabeça e  na coluna vertebral, mas também há muitas deficiências nas pernas” disse  ele. “Há também um aumento muito acentuado do número de casos de  crianças com menos de dois anos com tumores no cérebro.”.
É  largamente aceite entre os cientistas, médicos e trabalhadores de ajuda  humanitária que a guerra é responsável. A presença de tanto armamento  despendido, resíduos e escombros, poços de material queimado nas bases  dos EUA e incêndios de poços de petróleo deixaram um legado tóxico que  está a envenenar o ar, a água e o solo do Iraque.
“Eu  penso que nós destruímos o Iraque” diz Adil Shamoo, bioquímico da  Universidade de Maryland que se especializou em ética médica e política  externa.
Shamoo,  um americano iraquiano acredita que é “do senso comum” associar os  problemas de saúde do Iraque aos bombardeamentos implacáveis das suas  cidades e vilas e a poluição resultante dos combates e da ocupação.
O  Departamento da Defesa discorda, e rejeita as reclamações de que o  exército seja responsável das doenças crónicas, defeitos de nascença e  altas taxas de cancro entre a população local e os seus próprios membros  que estiveram expostos aos mesmos elementos. Os responsáveis da Defesa  não atendiam telefonemas nem respondiam aos e-mails para comentar as  questões levantadas nesta matéria.
O  governo iraquiano pouco tem feito para resolver a crise de saúde  pública em Faluja e noutros lugares. As autoridades não podem deixar, e  aparentemente falta vontade, de acabar com a poluição que assola em  torno dos centros populacionais do país, até porque muitos iraquianos  continuam a reclamar o abastecimento de água potável e assistência  médica básica.
Um  estudo conjunto feito em 2010 pelos ministérios do ambiente, da saúde e  ciência, encontrou 42 locais que estavam contaminados com altos níveis  de radiação e dioxinas – resíduos, assegura aquele estudo, originados  por três décadas de guerra. Os críticos acreditam que há centenas de  outros locais como estes.
As  áreas em volta dos centros urbanos como Faluja e Bassorá representam  25% dos locais contaminados. A poluição em Bassorá data de pelo menos  1982, quando a Operação de Ramadan, a maior batalha da guerra  Irão-Iraque – na qual os EUA deram a Saddam Hussein biliões de dólares  em armas, instrução e outros apoios – sacudiu o deserto. Nos 20 anos  após a primeira Guerra do Golfo, Bassorá tem visto uma aumento acentuado  de doenças prevalentes na infância. Segundo os investigadores da Escola  de Saúde Pública da Universidade de Washington, a taxa de leucemia  infantil mais do que duplicou em Bassorá entre 1993 e 2007.
Em  Dezembro, um relatório publicado no Jornal Internacional de Pesquisa  Ambiental e Saúde Pública declarava que desde 2003 foram observadas  “malformações congénitas” em 15% do total de nascimentos em Faluja.  Insuficiências cardíacas eram as mais frequentes, seguidas por  deficiências no canal neural, que causam deformidades irreversíveis e  muitas vezes fatais. Em comparação, a maioria dos defeitos de nascença  afectam apenas aproximadamente 3% dos recém-nascidos nos EUA e uma média  de 6% em todo o mundo.
“  O timing em que ocorreram os defeitos de nascença indica que eles podem  estar relacionados com a guerra associada a longo período de exposição à  contaminação” afirma o relatório. “Muitos contaminantes que se produzem  na guerra têm a capacidade de interferir no desenvolvimento embrionário  e fetal normal.”
Outro  artigo recente, “Cancro, Mortalidade Infantil e Proporção de Sexos nos  Nascimentos em Faluja, Iraque 2005-2009”, publicado no Jornal Internacional de Pesquisa Ambiental e Saúde Pública  em Julho 2010, baseou-se numa inquérito porta a porta a 4.843  habitantes em 711 casas de Faluja. Reconhecendo que estes inquéritos têm  algumas limitações, os autores destacaram três conclusões convincentes,  incluindo uma redução de 18% dos nascimentos do sexo masculino após  2004 e um aumento da mortalidade infantil.
“As  conclusões aqui reportadas não lançam qualquer luz sobre quem são os  agentes causadores do aumento dos níveis de doenças e embora estejamos  atentos ao uso do urânio empobrecido como uma potencial causa relevante,  pode haver outras possibilidades”, escrevem os autores.
Na verdade, há muitos outros possíveis contaminantes – mas o urânio empobrecido tem sido o principal suspeito.
O  urânio empobrecido (DU) é um metal radioactivo de alta densidade a  altamente tóxico que os militares usam regularmente pelas suas  capacidades de blindagem e de penetração. Os tanques Abrams e carros de  combate Bradley do exército usam-no na sua armadura e nas suas munições.  
Além  das capacidades de penetração de longo alcance, as armas munidas de DU  causam mais danos porque lançam num instante os alvos em chamas.
Depois  das batalhas, as carcaças dos tanques e os restos das munições de DU  que explodiram ou não, produzem radiação, enquanto minúsculas partículas  do metal pesado se introduzem no pó e podem girar no ar a longas  distâncias. Este pó pode ser mortal quando inalado, dizem médicos e  ambientalistas.
Os  EUA deixaram cerca de 320 toneladas de DU no campo de batalha depois da  primeira Guerra do Golfo. As rajadas de DU deram uma clara vantagem  sobre os Iraquianos, destruindo uns 4.000 tanques, muitos dos quais  continuam a poluir a paisagem do deserto. “As partículas invisíveis  formadas quando as granadas batiam e se incendiavam, ainda estão ‘a  arder’. Elas fazem zumbir os detectores Geiger e metem-se nos tanques,  contaminando o solo e espalhando-se com o vento do deserto, como será  durante os 4,5 biliões de anos que levará o DU a perder apenas metade da  sua radioactividade”, escreveu Scott Peterson no Christian Science Monitor.
Num  outro artigo, Peterson documentou provas de DU em Bagdade, examinando  “pontos quentes” à volta dos detritos de batalhas, com um detector  Geiger. Ele comentou que a Força Aérea admitira que os aviões A-10  “Warthog” tinham atirado 300.000 rajadas durante a fase da invasão  “choque e pavor”.
“Não  disseram às crianças para não brincarem com os detritos radioactivos”  escreveu Peterson. Ele viu apenas um local onde as tropas  norte-americanas colocaram avisos escritos em árabe para os iraquianos  se afastarem. “Ali foi encontrado um dardo de DU com 3 pés de  comprimento, de uma granada de 120 mm, produzindo radiação 1.300 vezes  superior aos níveis encontrados anteriormente. (O detector Geiger) fez  os sons das explosões transformarem-se num gemido constante.”
Tem  sido impossível obter um retrato exacto de como o DU foi usado pelas  forças norte-americanas no Iraque desde 2003. Em 14 Março 2003, numa  conferência de imprensa, menos de uma semana antes da invasão, o Coronel  James Naughton do Comando do Equipamento do Exército dos EUA  vangloriou-se que os Iraquianos “querem que (o DU) fique de fora, porque  senão nós limpávamos – lhes o sebo” nas batalhas de tanques de 1991. “  De facto os seus soldados não podem ficar satisfeitos com a ideia de  saírem basicamente nos mesmos tanques com alguns ligeiros melhoramentos e  usarem outra vez os Abrams.”
A  bazófia parou depois do “choque e pavor”. As autoridades agora insistem  que a exposição ao DU não é responsável pelos graves problemas de saúde  do Iraque. Confrontado com as provas dos defeitos de nascença em  Faluja, o porta-voz do Pentágono Michael Kilpatrick disse o ano passado à  BBC, “Até à data nenhum estudo indicou que as questões ambientais  tenham resultado em problemas de saúde específicos”.
A  composição exacta das munições usadas durante os combates em Faluja no  final de 2004, continua sem se conhecer. Mas a escala da poluição pode  ser medida pela magnitude dos bombardeamentos. Segundo Rebecca Grant, ao  escrever para a Air Force Magazine  em 2005, os EUA levaram a cabo implacáveis bombardeamentos na primeira  batalha de Faluja, de Março a Setembro de 2004 e lançaram uma segunda  ofensiva nesse Novembro.
Grant  descreve um “ ritmo constante de bombardeamentos” numa caça ao homem  quase toda urbana, empregando helicópteros AC-130 e aeronaves de  asa-fixa , mesmo depois de logo no início, os comandantes serem avisados  para reduzirem a escala dos ataques devido a considerações políticas  sobre os danos colaterais. Os aviões F-15 desciam a pique e metralhavam  insurgentes a preparar abrigos enquanto os marines eram chamados a  atacarem os insurgentes encurralados, com mísseis guiados por GPS, como  os novos GBU-38 JDAM (Joint Direct Attack Munition) de 500 libras de  peso, que podiam “arrancar” edifícios mesmo do meio de zonas muito  povoadas.
A  descrição de Grant não inclui o uso de DU nem de fósforo branco que em  contacto com a carne humana a faz fritar até ao osso. Um ano após os  médicos de Faluja começarem a relatar as queimaduras denunciantes, um  porta-voz do Pentágono admitiu à BBC que aquele fósforo branco era de  facto “usado como arma incendiária contra os combatentes inimigos” em  2004. Inicialmente, o exército afirmara que era usado apenas para  iluminação do campo de batalha.
“Quando  entravam, basicamente arrancavam todos os stops”, disse o jornalista de  investigação Dahr Jamail, que em 2004 esteve em Faluja.
O  problema com a tentativa de identificar um agente básico dos defeitos  de nascença no Iraque é que o país é um caldeirão de contaminação. Além  da água poluída, há em toda a parte colunas de fumos tóxicos de queima  de resíduos nas bases dos EUA, assim como fogos de petróleo e gás que  salpicam a paisagem. Não menos do que 469 ocorrências de incêndios de  petróleo e gás, a maioria explosões de oleodutos causadas por  insurgentes, foram registadas entre 2003 e 2008.
Saddam  Hussein usou armas químicas contra o seu povo e alegadamente ordenou  aos seus homens – fugindo da invasão de 2003 – sabotar a velha estação  de tratamento de água de Qarmat Ali, ao norte de Bassorá onde os rios  Tigre e Eufrates se encontram. A teoria manipulada é que eles usaram um  pó anti corrosivo contendo enormes quantidades de crómio de potência  seis, um químico conhecido por causar cancro.
Alguns  dos soldados da Guarda Nacional Oregon que mais tarde trabalharam e  viveram na estação - convencidos pela segurança dos empreiteiros Kellog,  Brown and Root que Qarmat Ali estava a salvo – estão agora tão doentes  que mal podem andar. “Este é o nosso Agente Laranja” disse o veterano  Scott Ashby ao The Oregonian em 2009, referindo-se ao herbicida pulverizado pelas forças dos EUA sobre enormes áreas do campo Vietnamita de 1961 a 1971.
A  comparação com o Agente Laranja é adequada. Como no Vietname uma  geração antes, os Norte-americanos correram para as saídas emocionais no  Iraque, riscando a guerra como se fosse um engano, melhor se retiravam  dos livros de história. Ignorando o lamento constante dos seus virtuosos  detectores Geiger, o público dos EUA arruma ordenadamente as  fotografias de bebés iraquianos deformados junto das desbotadas memórias  das crianças vietnamitas e veteranos americanos marcados com cicatrizes  por produtos químicos no campo de batalha. A negação colectiva  tornou-se no melhor amigo do império, como o desastre da política  externa do Sudeste Asiático deu lugar a uma catástrofe de 30 anos no  Médio Oriente.
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