Do Observatório da imprensa
Por Sergio da Motta e Albuquerque
Vem aí a rede social muçulmana que pretende ser uma alternativa ao
Facebook e abocanhar em três anos cerca de 50 milhões de usuários em
diversos países, em diferentes partes do mundo islâmico. Claramente
inspirado (o layout e o projeto genérico de rede) na gigante
americana, o lançamento da Salamworld está previsto para o feriado do
Ramadã deste ano – que, de acordo com o calendário lunar, não tem data
fixa. Em 2012 acontecerá entre 21 de julho e 19 de agosto.
Os rumores de uma rede social muçulmana halal não são recentes (halal é a palavra árabe para tudo o que é permitido pela lei islâmica; é o equivalente árabe para a palavra kosher, dos israelenses). No ano passado, na Indonésia (um dos países a apoiar o projeto da nova rede islâmica), o Daily Social(10/10/2011) comentou a iniciativa, ainda com um pouco de ceticismo, como uma “iniciativa de empresários russos e turcos”.
Em março deste ano, o presidente e mentor da rede Salamworld), Abdulvahit Niyazov, um muçulmano russo, declarou ao Today’s Zaman,
da Turquia (04/03), que Istambul é vista como a locação ideal para a
sede da empresa devido à sua única posição entre Oriente e Ocidente, por
sua estabilidade econômica e pela proeminência que este país vem
obtendo entre os outros países muçulmanos. A cidade conta também com a
vantagem de ser mais aberta ao Ocidente e ao capital internacional.
Outros dois escritórios estarão localizados no Cairo e em Moscou.
Niyazov não é apenas o presidente da Salamworld. Ele é presidente do Centro Cultural Islâmico da Rússia e do Conselho russo de muftis (um mufti é um acadêmico capaz de interpretar a sharia, a lei islâmica). E pertence a uma minoria étnica aparentada aos turcos.
Tiro pode sair pela culatra
A plataforma internacional de tradução de notícias Worlcrunch publicou (30/4) tradução do artigo do jornal alemão Tages-Anzeiger sobre
a nova mídia social. Uma boa reportagem, que começou por perguntar “por
que os muçulmanos precisam da Salamworld?” Jawus Selim Kurt, porta-voz
da rede, respondeu: “Existem 1,7 bilhão de muçulmanos no mundo. Cerca de
300 milhões usam a internet e quase a metade deles usam redes sociais.
Infelizmente, nem mesmo uma dessas redes é presidida por muçulmanos. O
alvo da rede são muçulmanos e não muçulmanos interessados na religião,
que busquem promover a ‘paz e harmonia’ pelo fortalecimento de valores
(islâmicos) morais e da comunidade islâmica, ou Umma”.
O periódico informou ainda que os investidores são russos e turcos, e
que a comunicação inicialmente entre os usuários será em oito línguas:
inglês, francês, persa (farsi, a língua dos iranianos), turco, árabe,
malaio, urdu (aparentada ao turco) e russo. Outros idiomas serão
acrescentados depois. Material considerado ofensivo às leis islâmicas
será removido. Incitação ao terrorismo e violação aos direitos humanos
serão igualmente proibidos.
A rede não é religiosa, garante seu presidente. Não vai haver
censura. “Não somos uma mesquita”, declarou Niyazov, “e haverá, é claro,
o mesmo tipo de liberdade que os outros usuários de redes sociais
desfrutam.” Desnecessário dizer que nudez e pornografia estão proibidos
desde já no site. O jornal alemão não pareceu muito impressionado com o
projeto da rede islâmica. “É um projeto comercial, e não suporta ideias
políticas”, acreditam os alemães. Veremos.
A BBC Brasil publicou um pequeno resumo sobre a Salamworld (10/5).
Três parágrafos e um vídeo explicando principalmente as diferenças entre
as redes ocidentais e a islâmica, assim como o comitê de censores
especialistas muçulmanos, que examinará todo o material apresentado na
rede. O Último Segundo reproduziu o conteúdo no mesmo dia. Apresentaram comentários, e não artigos, sobre a Salamworld.
A realidade que ficou fora da cobertura da mídia foi a enorme
importância geopolítica que essa rede terá, se for bem sucedida. Sua
cúpula, formada por Niyazov e seu lugar-tenente, o muçulmano Ahmed
Azimov, do Daguestão é formada por russos muçulmanos abertos a ideias
leigas. Mas também são homens de confiança de Vladimir Putin. Azimov é
funcionário de uma organização com forte presença do Estado russo. Foi
diretor do escritório de Moscou do Congresso Russo de Povos Caucasianos
até 2008 e continua na organização como “presidente da filial de Moscou
do Supremo Conselho e membro do Congresso” (ver aqui).
Os russos têm interesses na Ásia Central. Não querem perder a
influência que herdaram do domínio comunista. A Turquia, por sua vez,
quer ser a potência regional do Oriente Médio. Uma rede social que
nasceu de cima para baixo, controlada por simpatizantes russos do regime
opressor de Putin e empresários turcos poderá ser um excelente
instrumento de controle e informação para os interesses de Moscou e para
o fortalecimento das ideias seculares nos países muçulmanos.
Apesar de todo o controle previsto para a Salamworld, redes sociais
são permeáveis a infiltrações e novidades inesperadas para seus
planejadores. A rede poderá também arrefecer o poder das organizações
terroristas, auxiliando as autoridades muçulmanas e outras com
informações importantes. Mas seu comportamento será determinado por seus
usuários, e não pelos padrões de seus idealizadores. O tiro pode sair
pela culatra. Os chineses sabem disso. Seus clones do Twitter têm dado
enorme dor de cabeça aos dirigentes do partido.
Público-alvo e equipe
Esta é a rede, segundo a informação apresentada em seu site:
** “Salmanworld é uma chance de muçulmanos ter seu próprio espaço na internet e nas redes sociais”.
** “Salmanworld é um sistema único de comunicações, a possibilitar a
troca de conhecimento, habilidades, informação útil, empregos e
oportunidades de negócios, para muçulmanos”.
** “Salmanworld é um instrumento para reviver, modernizar,
desenvolver Umma em termos do estilo de vida (Umma é a comunidade
espiritual muçulmana universal, que une os crentes apesar de todas as
suas diferenças)
** “Salmanworld é uma janela de oportunidades para jovens”.
** “Salmanworld visa a preservar tradições de família buscando conteúdo seguro e inofensivo para elas.”
Sua audiência projetada deverá atingir:
** “Jovens gerações de muçulmanos e não-muçulmanos”
** “Famílias muçulmanas modernas”
** “Rede internacional de acadêmicos muçulmanos internacionais”
** “Nova geração de líderes sociais”
** “Comunidades muçulmanas em regiões islâmicas e não-islâmicas” ** “Não muçulmanos buscando informação sobre o Islã”
A equipe é composta de especialistas de 12 países. Os administradores
da empresa são representativos de 17 países, informou o site da nova
rede a ser lançada em breve.
Porta de entrada para o “inferno astral”
Em 2011, o presidente da Salamworld viajou pelo mundo islâmico e
além, sempre buscando apoio de líderes moderados dentro e fora do Islã.
Um comportamento de estadista ou lobista, e não o de promotor de uma
rede social. Esta rede tem toda a cara de uma estrutura estatal de
controle social, misturada a uma proposta de comércio na web controlada
por Moscou e Istambul. Seu presidente e seu vice têm ligações com o
Estado russo. A Salmanworld serve bem aos interesses dos dois países.
Abdulvahit Niyazov, o presidente e idealizador da rede, conversou com
imãs e mulás conservadores e moderados, e líderes de países muçulmanos
da Ásia (Indonésia e Malásia são dois países a receber tratamento
especial), África, América e Europa. Os líderes muçulmanos acharam
conveniente apoiar uma rede social própria dos muçulmanos e sujeita as
suas leis. Sentiram na carne os problemas que as mídias sociais
ocidentais podem trazer para regimes autoritários. Ou falsamente
democráticos.
Do ponto de vista do Ocidente, o sucesso da rede é de grande
interesse porque pela primeira vez milhões de perfis de muçulmanos de
todas as partes do mundo estarão na web (se tudo der certo, como
imaginam seus propositores). Os serviços de informação americanos devem
estar a comemorar. Uma rede social islâmica na web é uma porta de
entrada para o mundo proibido do Oriente Próximo e da Ásia Central, o
“inferno astral” dos Estados Unidos.
***
[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]
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