25/7/2012, Pepe Escobar,
Asia Times Online - The Roving Eye
Blog
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Pepe Escobar |
Era
uma vez, no começo do século passado, riscou-se uma linha na areia, de Acra a
Kirkuk. Duas potências coloniais – Grã-Bretanha e França – desdenhosamente
dividiram entre elas o Oriente Médio; tudo, ao norte da linha, era da França;
tudo, ao sul, da Grã-Bretanha.
Muitos
golpes – e tragédias concêntricas – depois, uma nova linha está sendo riscada na
areia, por Arábia Saudita e Qatar. Tudo, entre Síria e Iraque, é deles. Pode-se
falar do retorno do reprimido; agora, integrados ao composto Conselho de
Cooperação do Golfo-Organização do Tratado do Atlântico Norte (CCGOTAN),
amancebaram-se com os ex-patrões colonialistas.
Golpe a golpe
Não
importa o que diga a imprensa-empresa ocidental militarizada, o jogo não está
acabado na Síria – ainda não. Ao contrário: o jogo sectário está só começando.
É
o Afeganistão dos anos 1980s, tudo outra vez. As mais de 100 gangues pesadamente
armadas que se matam em guerra civil na Síria só fazem aumentar, cevadas com
dinheiro do CCG que lhes compram RPGs no mercado negro. Magotes de jihads
salafistas estão entrando na Síria – vindos não só do Iraque, mas também do
Kuwait, Argélia, Tunísia e Paquistão, respondendo às conclamações iradas de seus
imãs. Sequestro, estupro e morticínio generalizado de civis favoráveis ao regime
de Assad estão convertidos em lei da terra.
Adnan al-Assadi |
Para
vingar-se, caçam cristãos. [1]
Expulsam exilados iraquianos que viviam em Damasco, sobretudo os de Sayyida
Zainab, bairro predominantemente xiita, cujo nome é homenagem à neta do Profeta
Maomé enterrada na bela mesquita local. A BBC, diga-se a favor dela, afinal
decidiu cobrir a história. [2]
Há
execuções sumárias: o vice-ministro do Interior do Iraque Adnan al-Assadi disse
à AFP que guardas de fronteira iraquianos viram o Exército Sírio Livre [orig.
Free Syrian Army (FSA)] ocupar um posto de fronteira e imediatamente
“executar 22 soldados sírios ante os olhos de soldados iraquianos”.
O
posto de passagem de fronteira em Bab al-Hawa, entre Síria e Turquia, foi
invadido por nada menos que 150 autodenominados mujahideen [3] de várias nacionalidades – vindos
de Argélia, Egito, Arábia Saudita, Tunísia, Emirados Árabes Unidos, Chechnya e
até da França, que proclamam a própria afiliação à Al-Qaeda no Maghreb Islâmico
[orig. Al-Qaeda in the Islamic Maghreb (AQIM)].
Queimaram
vários caminhões turcos. Filmaram o próprio vídeo de propaganda. Desfilaram ante
as câmeras a própria bandeira da al-Qaeda; veja a seguir.
E
declararam Estado Islâmico toda a área de fronteira.
Entreguem seus documentos de
identidade terrorista
Bashar al-Assad |
Não
há como entender a dinâmica síria sem saber que praticamente nenhum dos
comandantes do Exército Sírio Livre é sírio: quase todos são sunitas iraquianos.
O ESL só conseguiu capturar a passagem de fronteira em Abu Kamal entre Síria e
Iraque, porque toda a área é controlada por tribos sunitas que fazem oposição
visceral ao governo de al-Maliki em Bagdá. O livre fluxo de mujahideen,
de jihads linha duríssima e de armas, entre o Iraque e a Síria, está
agora plenamente, completamente, totalmente estabelecido.
A
ideia da Liga Árabe – que age como porta-voz em traje completo do CCGOTAN – de
oferecer exílio a Bashar al-Assad é tão ridícula quanto a CIA ser encarregada de
decidir quais os grupos de mujahideen e jihadi que podem ter
acesso às armas financiadas pelos sauditas e pelo Qatar.
À
primeira vista, talvez não tenha passado de piada sem graça. Afinal, a oferta de
exílio foi feita por aqueles exemplares paradigmáticos de democracia, a Casa de
Saud e o Qatar, que mandam na Liga Árabe e estão financiando a jihad e os
mujahideen anti-Síria.
Mas
Bagdá condenou publicamente a oferta de exílio. Os desenvolvimentos – de fato,
aconteceu no mesmo dia – foram dignos do Coringa (aquele, o arqui-inimigo do
Batman): uma onda de bombas antixiitas no Iraque, com mais de 100 mortos, cuja
autoria foi reivindicada pelo Estado Islâmico do Iraque, franquia local da
al-Qaeda. O porta-voz Abu Bakr al-Baghdadi ordenou energicamente que as tribos
sunitas em Anbar e Nineveh unam-se à
jihad e derrubem o governo “infiel”, em Bagdá.
Izzat al-Shahbandar |
O
infindável vai-e-vem de mujahideen/jihadi entre Síria e Iraque está mais
do que confirmado por Izzat al-Shahbandar, alto membro do Parlamento do Iraque e
assessor próximo do Primeiro-Ministro al-Maliki. Bagdá tem até listas
atualizadas. Esse trânsito só faz deflagrar discursos cada vez mais frenéticos,
em fala cada vez mais orwelliana,
como aponta a página de internet Moon of Alabama [Lua sobre o Alabama].
[4]
Mujahideen e jihadis ativos no Iraque
chamam-se agora “insurgentes iraquianos”. E mujahideen e jihadis
ativos na Síria continuam a ser os “rebeldes sírios” de sempre. Todos foram
rebaixados: perderam o título de “terroristas”. Seguindo essa lógica, o atirador
Batman-do-Colorado pode também ser apresentado como um “insurgente”.
Sigam o dinheiro
No
pé em que estão as coisas, os romanticizados “rebeldes” sírios plus os
neo “insurgentes” (ex-“terroristas”) não podem vencer o exército sírio – nem se
os sauditas e qataris fizerem chover sobre eles cataratas de dinheiro e armas.
Nem há qualquer sinal de que o
regime esteja considerando a possibilidade de retirada rumo às montanhas
alawitas no norte da Síria, como sugerido num blog
de discussão sobre política externa. Afinal de contas, os “rebeldes”
não controlam nem um palmo de território.
De
garantido, só quem lucrará mais com a progressiva balcanização da Síria. A Casa
de Saud e o Qatar adorariam ver a guerra civil exportada para o Iraque e o
Líbano: nos seus rasos cálculos estratégicos, daí nasceriam regimes sunitas
amigos (deles).
Por
isso, contem com muito dinheiro saudita e qatari comprando todo e qualquer
apparatchik bem relacionado que encontrem no regime sírio – mesmo no caso
de a burguesia sunita urbana ainda não ter abandonado o barco.
E,
com a guerra civil alastrando-se, um tsunami de armas continuará a inundar a
Jordânia, o Líbano, o Iraque e, claro, a Turquia, e chegarão às mãos de todas as
griffes, uniformes e fantasias de gangues armadas, inclusive aos curdos –
e a mais de uma faceta da já descartada Turquia neo-otomana que assiste,
impotente, ao esmagamento dos estados-nação que foram riscados na areia, naquela
linha colonial dos anos 1920s.
Estrategicamente,
sempre será guerra por procuração: na essência, é Arábia Saudita versus
Irã. A Casa de Saud (que financia islamistas fanáticos de linha duríssima de
todas as cores) versus o Qatar (que apoia a Fraternidade Muçulmana
“deles”). Mas, sobretudo, é CCG-OTAN-EUA versus Irã.
“Bibi” Netanyahu |
Os
motivos de Israel vão bem além da sanha sectária de sauditas e qataris. O
primeiro-ministro de Israel “Bibi” Netanyahu acaba de desenterrar um Bushismo:
definiu Irã-Síria-Hezbollah como um “eixo do mal”. O sonho de longo prazo de
Telavive é claro: que Washington, com governo Obama ou sem, detone o tal “eixo”.
Ter
claro um objetivo de longo prazo não impediu o absoluto enlouquecimento do
ministro da Defesa de Israel: pôs-se a especular sobre uma invasão à Síria que
se explica(ria) porque a Síria estar(ia) repassando mísseis antiaéreos e até
armas químicas ao Hezbollah.
Washington,
por sua vez, adoraria por no governo em Damasco um regime-fantoche sunita, no
mínimo; para turbinar o cerco ao Irã – sem aumentar demais o pânico existencial
de Israel.
Mas
o que se faz passar por “poder esperto” [orig. “smart power”] nada é,
além de delírio-desejante & autoglorificação. Na nota [5], abaixo, os que se interessem
encontrarão informação sobre o que há na cabeça de alguns funcionários do
governo dos EUA que trabalham a favor de Israel e planejam hoje o que eles
mesmos chamam de “Síria pós-Assad”.
Apesar
do muito dinheiro já gasto na produção, a jihad da OTAN – associada à
al-Qaeda, afiliados e periguetes adjuntas – ainda não conseguiu mudar regime
algum na Síria. Não haverá sanções do Conselho de Segurança da ONU, como Pequim
e Moscou já disseram (e mostraram) três vezes. Por isso, vai e vem, sempre
aparece algum Plano B. O mais recente parece copiado do Manual usado no Iraque:
Damasco usou armas químicas em ataque contra civis. Não sobreviveu sequer até o
“noticiário” de TV do dia seguinte.
Vladimir Putin |
O
presidente Vladimir Putin da Rússia já disse: mudança de regime é anátema,
especialmente por uma razão que praticamente ninguém percebe no ocidente –
jihadis nas portas de Damasco implica que estariam a uma pedrada do
Cáucaso, a possível nova pérola do letal colar planejado para desestabilizar a
Rússia muçulmana.
A
volta do chicote, enquanto isso, está pronta a ferir novamente, como a Medusa.
Os, para todos os efeitos práticos, esquadrões da morte, de
mujahideen/jihadi do CCGOTAN, adorariam deixar sangrar a Síria até a
morte, por cem cortes sectários – sobre a areia e especialmente nas cidades.
Está aberta a temporada de caça: caçam-se alawitas, mas também cristãos (10% da
população).
Uma
política externa que privilegie os jihadis sunitas (antes chamados de
“terroristas”), na criação de um estado “democrático” no Oriente Médio é ideia
que parece brotada da cabeça de Bane – bandidão que é a soma de Hannibal Lecter
com Darth Vader, e estrela de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), último capítulo da trilogia de
Batman. Ah, sim, nós o criamos. Aos melhores falta qualquer convicção. Os piores
estão tomados de paixão intensa. Enquanto isso, um super-homem sunita jihadi
mascarado rasteja rumo a Damasco, onde nascerá.
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Notas de
rodapé:
[1] 9/6/2012, Vatican Inside, em: Syria’s
ultimatum to Christians: “Leave Qusayr”
[2] 20/6/2012,
BBC, Rami Ruhayem em: Syria crisis:
Iraqis flee “sectarian violence” in Damascus
[3] 22/7/2012,
Al-Arabiya, “Syrian rebel
forces occupy second border post with Turkey”
[4] 23/7/2012,
Moon of Alabama, em: Policy
Change: “Terrorists” Are Now “Insurgents” [Mudança de política: Os
“terroristas” viraram “insurgentes”]. É a mais impressionante retradução
orwelliana que jamais se viu. Durante anos, as expressões “Al-Qaeda” e “grupo
terrorista” foram usadas praticamente como sinônimas.Mas agora, sob comando do
governo Obama, o New York Times reescreveu o Manual da Redação: “Al-Qaeda”
designa agora uma espécie de “insurgência neutra”.
[5] 20/7/2012,
The Cable, Josh Rogin em: “Inside
the quiet effort to plan for a post-Assad Syria”: “Planejando a Síria
pós-Assad”. Ao longo dos últimos seis meses, 40 altos representantes de vários
grupos de oposição da Síria têm-se reunido discretamente na Alemanha, sob
coordenação do US Institute of Peace
(USIP), para planejar o que deve ser um governo sírio pós-Assad. O projeto, do
qual não participam funcionários do governo dos EUA, mas que é parcialmente pago
pelo Departamento de Estado começa a ganhar importância, agora que a espiral de
violência alastra-se pela Síria e evanescem as últimas esperanças de que se
possa alcançar transição pacífica de poder na mudança de regime. (...) O grupo
assessorou os funcionários do governo também nas reuniões dos “Amigos da Síria”,
em Istambul, mês passado. O projeto é chamado “O dia seguinte: apoio à transição
democrática na Síria”.
*Bane é um dos super arqui inimigos de “Batman”, que teve
vida curta, num seriado de 1994, e sumiu para sempre. Mas causou terrível dano
ao Batman.
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