Com gravata azul céu, camisa bem cortada e felpuda toalha de rosto caída no ombro sobre o avental vermelho – Veja ainda não descobriu o pano de prato! –, um modelo simulando um personagem de classe média está ensaboando uma louça na qual se come o almoço e o jantar ao lado do título Você Amanhã. No que é chamado de olho no jargão jornalístico – texto curto que vai imediatamente abaixo da frase em destaque --, a publicação carro-chefe do Grupo Abril vaticina o desemprego de milhões de empregados e empregadas domésticas no Brasil, de maneira nem tanto subliminar: "As novas regras trabalhistas das empregadas são (...) um sinal de que em breve as tarefas domésticas serão divididas entre toda a família". A expressão "marco civilizatório" está entre o início e o fim da ameaça.
Em outras palavras, a revista propaga que, em razão da Proposta de Emenda à Constituição aprovada agora pelo Senado, com entrada em vigor na próxima semana, e que finalmente extende direitos trabalhistas básicos aos profissionais que historicamente realizam tarefas domésticas nos domicílios dos outros, seus patrões, ergue-se dentro das casas e apartamentos uma onda de desemprego. Uma onda capaz de afetar o mercado de trabalho de 20 milhões de profissionais.
Veja, com a capa da presente edição nas bancas, chega a um de seus mergulhos ideológicos mais baixos. Um superação em termos de preconceito, cinismo e terrorismo social. Em oito paginetas, como se diz entre os jornalistas para designar folhas de papel editadas, a revista crava de saída que os serviços dom ésticos ficarão mais caros. As tarefas do lar terão de ser feitas, em razão do buraco nas contas familiares que a nova legislação indica, pelos donos da casa. Fica subententido que isto seria um retrocesso no modo de vida do brasileiro, uma derrota pessoal e familiar.
As inverdades na tese – é assim que se chama, entre os profissionais da mídia, o viés ideológico de uma reportagem – são muitas. Não é de hoje, mas sim de logo depois da redemocratização do País, nos anos 1980, que as emrpegadas e empregados domésticos ganharam direito a ter carteira de trabalho assinada, recolhimento de contribuição à Previdência Social e todos os demais direitos trabalhistas estabelecidos no Brasil entre as décadas de 1930 e 1940, já lá se vão mais de 60 anos. O que se aprovou agora foi apenas a regulação da jornada de trabalho, de oito horas diárias, como a de muitas categorias profissionais, e o estabelecimento de vínculo empregatício após a chegada ao limite de uma quantidade mínima de horas dedicadas ao trabalho. Nada assustador. "Um marco civilizatório", como acentuou a própria Veja – porém, para soltar o fantasma do rompimento de antigas relações de lealdade e colaboração.
Nos Estados Unidos do pós-guerra, disseminou-se a cultura entre os casais que protagonizariam o baby boom dos anos 1950 de cuidar de suas próprias casas. Um costume que não existia antes da industrialização do país, herança dos tempos da escravidão. Isso não foi nenhum flagelo. Ao contrário, em lugar de lançar hordas de ascendentes de escravos para as sarjetas das grandes cidades, a ausência do serviço doméstico terceirizado empurrou-os para novas oportunidades de emprego, ajudando a formar um capitalismo socialmente democratizado. À exceção da nobreza, nunca na Europa moderna houve o costume de presença de empregados nos lares. Algo igualmente inadmissível no Japão, à exceção dos samurais do atípico feudalismo local.
No Brasil, praticamente toda a classe média tem empregados domésticos, quer sejam diaristas ou celetistas. As carteiras de trabalho deles estão assinadas há muito tempo. A revolução ao contrário propalada por Veja simplesmente não tem base para existir. Não se quebra um costume cultural e social, tão arraigado, de uma hora para outra, ao sabor da disseminação de temores. O que poderá haver, entre patrões e empregados domésticos, serão ajustes para melhor nas relações do dia a dia de trabalho, com mais respeito aos direitos e deveres de uns e outros.
E além do mais, que mal há em lavar o próprio prato em que se comeu?
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