Mikhail Bakhtin (1895-1975)
Hoje em dia convive-se com um novo idealismo que contaminou
grandes segmentos da esquerda intelectual e que transformou a língua não
só em um campo independente, mas também em uma esfera tão onipresente,
tão dominante, que virtualmente extingue a ação humana.
Por Ângela Almeida (*)
Essa concepção e a política que acarreta não são simples curiosidades inofensivas, constituem uma abdicação à responsabilidade política. E também são obstáculos à reconstrução de movimentos políticos e sociais organizados de protesto e resistência.
Marx e Engels não desenvolveram uma teoria sobre a língua. Ainda assim, o pouco que disseram sobre o assunto merece ser destacado em uma época de confusão geral no tocante a alguns dos pressupostos básicos do materialismo histórico.
Para início de conversa, vale relembrar que a concepção materialista da história, exposta em trabalhos antigos como A ideologia alemã, não nega o papel da consciência na vida humana. Ao contrário, procura combater a indiferença da consciência pela produção social. Marx e Engels não condenam o idealismo por levar a sério o pensamento e a língua, mas por lhes dar uma existência independente: “A língua é a realidade imediata do pensamento. Da mesma maneira que deram ao pensamento uma existência independente, os filósofos foram obrigados a transformar a língua em um campo independente”.
Seres humanos, Marx e Engels insistem, produzem ideias como parte da produção da totalidade de suas condições de vida. A produção das ideias e conceitos, portanto, “está diretamente entrelaçada com a atividade e o intercâmbio materiais” entre pessoas. Eles sugerem que isso é “a linguagem da vida real”. Um aspecto definidor da vida humana é o trabalho social, a maneira como organizamos as atividades produtivas interligadas dos indivíduos, a fim de nos reproduzirmos materialmente. Assim como pressupõe consciência, o trabalho humano requer comunicação entre indivíduos. A língua é o meio para tal comunicação, é o próprio material de que é constituída a consciência humana. A língua é a forma de consciência especificamente humana, a consciência de seres singularmente sociais. Segue-se que “a língua é tão antiga quanto à consciência, é a consciência prática, real, que existe também para outros homens”.
Mesmo que seja apenas esboçada, esta é uma descrição indispensável a qualquer opinião que queira levar a língua a sério, sem separá-la da totalidade da atividade humana. Marx e Engels não oferecem mais que um arcabouço para a compreensão da língua. Por sorte, autores posteriores desenvolveram e ampliaram a explicação, deixando-nos de posse de uma teoria materialista sobre a língua bastante enriquecida.
Entre esses esforços, um dos mais importantes é a obra pioneira Marxismo e filosofia da linguagem publicada na Rússia em 1929, assinada por V. N. Voloshinov, e posteriormente atribuída a Mikhail Bakhtin. Não são claras as razões efetivas que teriam levado Bakhtin a escolher o nome de um de seus amigos e discípulos para subscrever a autoria do livro. O fato é que o leitor encontrará nessa obra vários pontos em comum com A Poiética de Dostoievki e Rabelais e a cultura popular, ambas escritas por Bakhtin.
Três proposições são fundamentais para Bakhtin sobre a língua. Em primeiro lugar, todos os signos – de palavras a sinais de trânsito – são materiais, corporificados em uma ou outra forma física. Em segundo, eles são de natureza social, existem nas fronteiras entre indivíduos e não têm significado fora da interação comunicativa. Em terceiro, uma vez que os signos são sociais, toda abordagem abrangente da língua terá que se concentrar na fala, no meio através do qual ocorre a maior parte da interação linguística. Fora da fala, a língua é morta, é um conjunto de meios de comunicação sem o ato de comunicação em si, uma forma sem substância. A vida da língua, seu próprio dinamismo, portanto, reside na fala, na interação verbal entre os indivíduos.
A interação social, no entanto, não é simplesmente discursiva. A fala não é um campo com “existência independente”, mas um aspecto de um nexo multifacetado de relações sociais. Segue-se que os signos estão imersos nas relações que prevalecem entre os seres humanos. “As formas dos signos”, Bakhtin escreve, “são condicionadas, acima de tudo, pela organização social dos participantes envolvidos”. Grupos diferentes tentam marcar palavras de maneira que expressem sua experiência de interação social e suas aspirações sociais. Isso se verifica em especial, mas de modo algum exclusivamente, em relações entre indivíduos de classes diferentes. Como resultado, “o signo torna-se uma arena de luta de classes”.
O que, porém, não significa que as palavras (ou os signos em geral) têm significados inteiramente diferentes para membros de classes sociais diferentes. Palavras, Bakhtin insiste, têm significados razoavelmente constantes e abstratos, como o que encontramos no dicionário. A fala é que implica intenções e temas. Temas têm a ver com entonações e ênfases que membros de grupos sociais específicos tentam dar às palavras, a fim de transmitir suas experiências. Em contextos diferentes, indivíduos participam de “gêneros de fala” diferentes, que possuem melodias, normas, vocabulários, dialetos e assim por diante.
Os discursos oficiais, os sistemas retóricos das classes dominantes, tentam negar a multiacentualidade dos signos. Por meio do discurso, as classes dominantes aspiram traçar uma única visão de mundo. Por isso se esforçam para impor um conjunto unificado de significados e temas, como sendo a única maneira possível de descrever as coisas. “A classe dominante”, Bakhtin escreve, “esforça-se para impor uma supraclasse, um caráter eterno, ao signo ideológico”.
A classe dominante, porém, por mais que tente, não pode reprimir tentativas de marcar os signos de formas diferentes da do discurso oficial. Os signos não são monolíticos. Pelo contrário, transbordam de acentos contraditórios. “Nas condições comuns da vida”, Bakhtin argumenta, “a contradição encerrada em todo signo ideológico não pode emergir plenamente”. Mas em ocasiões de crise ou sublevação revolucionária, quando a legitimidade das classes dominantes está sendo atacada, essas contradições são contestadas por indivíduos que exigem cada vez mais espaço público para discursos alternativos e de oposição.
A filosofia da linguagem de Bakhtin é, sobretudo, histórica. E, como tal, constitui um poderoso corretivo das ideias estáticas e a-históricas predominantes no novo idealismo – que vê a história como uma série de divergências discursivas, uma sucessão desconexa de paradigmas linguísticos, e não um processo dinâmico gerado por interações e conflitos entre pessoas vivas, em relações sociais concretas. Bakhtin transfere-nos para o campo vivo da comunicação, da interação verbal entre pessoas imersas nas tensões e contradições da vida social. E, dessa maneira, recupera a história, a interação social e o conflito de classes no estudo da língua.
(*) Mestre em Direito, Doutoranda em Letras e Analista-Tributário da Receita Federal do Brasil
Bibliografia
Bakhtin, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 6ª ed. São Paulo: Hucitec, 1992.
Marx, Karl; Engels, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007
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