segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Ao chamar Exército, Temer fez o que Estados Unidos sempre pediram 23/01/2017



Ao convocar as Forças Armadas para fazer revista em presídios dominados pelas facções ligadas ao narcotráfico Michel Temer fez mais do que uma encenação banal típica de um governo quem precisa dar a impressão de fazer alguma quando não tem respostas concretas para um problema grave. A militarização de uma atividade tipicamente civil nas prisões brasileiras atende uma conhecida reivindicação imperial dos Estados Unidos, com consequências graves não apenas para o Estado Democrático de Direito mas para diplomacia brasileira e seu lugar no mundo. Ao concordar com o envio de tropas para tentar controlar um ambiente de rebelião criminosa nas ruas de Natal, Temer apenas insistiu no mesmo erro.
Desde o governo Bill Clinton que Washington pressiona os governos da América Latina -- inclusive do Brasil -- para afastar os militares da região das funções clássicas que justificam sua existência, ligadas à defesa da soberania do país, para se empenhar no trabalho de polícia e participar do combate ao tráfico de drogas. Estes esforços implicam num rebaixamento do papel das Forças Armadas e numa diminuição das prerrogativas dos Estados nacionais, com consequências nefastas para a capacidade de qualquer país para proteger as próprias riquezas e definir seu destino. As pressões externas não puderam prosperar, na época, em função da resistência de vários setores da sociedade brasileira, inclusive dos próprios militares. Mas foram bem sucedidos no México e na Colômbia, agravando o grau de subordinação e dependência -- econômica, diplomática e militar -- desses países em relação aos interesses norte-americanos, num grau impensável duas décadas atrás.
Entre ampliar garantias individuais para a maioria da população, até hoje excluída de uma civilização construída a partir da descoberta de que todos os homens nascem iguais, ou tomar medidas que apenas irão reforçar um sistema que comprovadamente deu errado, Temer não surpreendeu. Fez a opção errada, coerente com a orientação política de um governo que despreza direitos e conquistas capazes de elevar o bem-estar da população e não perde oportunidade para alinhar-se com uma perspectiva sem limites de globalização que o mundo desenvolvido adora pregar fora de casa -- mas não pratica no mundo doméstico --, e que nesta conjuntura possui força cada vez menor, como se vê inclusive pela eleição de Donald Trump.
Quem imagina que o regime prisional brasileiro é um edifício que pode ser salvo a partir de pequenas reformas e alguns consertos, mesmo ambiciosos -- não é o caso das medidas anunciadas agora -- só precisa compreender o significado de dois números básicos. Vivemos num país onde a população de 44% dos domicílios está condenada a sobreviver com a renda máxima de um salário mínimo, hoje fixado em R$ 917. Já para cumprir o objetivo de julgar, condenar e aprisionar a quarta maior população carcerária do planeta, o Estado reserva R$ 2700 -- por cabeça.
Deixando de lado a visão convencional, que enxerga nesta comparação o sinal de um suposto tratamento privilegiado aos apenados, estes números traduzem um projeto de país. Com simplicidade e clareza, explicam a política econômica em vigor, a sociologia da vida real, o meio ambiente que tantas vozes poderosas querem preservar de qualquer maneira. Prefere-se investir na repressão e na punição do que na abertura de oportunidades, no combate à exclusão, no bem-estar. Estamos falando dos custos da prolongada guerra histórica de uma minoria para ampliar e defender seus privilégios pela violência de um Estado que sempre foi seu domínio particular, a começar pelo acesso a uma mão de obra baratíssima e pelo controle exclusivo de imensas riquezas naturais.
ANTI-DROGA E DIREITIZAÇÃO
A prioridade é garantir a segurança de poucos, com base num sistema caríssimo como toda operação de natureza colonial. Deficitária por natureza, distorcida em sua essência, ela só tenta justificar-se a partir de retornos imensos, acima de toda medida decente, que precisam ser assegurados a metrópole interna, cuja sede fica em Miami, na Suíça ou outro paraíso fiscal. Os R$ 2700,00 por cabeça são a contrapartida necessária em pessoal, tecnologia e outros custos para impedir o acesso de 200 milhões ao mundo da democracia, às regras que dizem que todos nascem iguais em direitos e que podem conduzir, mais cedo ou mais tarde, a uma sociedade menos desigual e solidária. Todos puderam saber -- graças ao que se fez nos últimos anos -- o que pode acontecer num país quando a população levanta a cabeça, não se conforma com a vida que sempre levou e resolve cobrar seus direitos.
A direitização da política brasileira, que permitiu que a presidência da oitava economia do planeta caísse nas mãos de um grupo político secundário, sem expressão própria, habituado a caçar postos e oportunidades junto a toda e qualquer liderança com poder de mando real, não é, obviamente, produto da luta contra a corrupção nem dos erros graves de Lula, Dilma Rousseff e do Partido dos Trabalhadores. Representa a conclusão de um longo processo, uma luta política iniciada já na transição democrática, com as campanhas permanentes contra "os direitos humanos para bandidos" -- slogan usado pelos órfãos da ditadura proteger os torturadores que começavam a trocar a sombra do porão pela luz do dia.
Não era um processo local, no entanto. Naquele mesmo momento histórico em que as ditaduras militares criadas na década de 1960 com apoio de Washington davam sinais de esgotamento, operava-se uma mudança para evitar que o saldo da democratização caísse em mãos indesejáveis. As grandes linhas que irão orientar o novo debate sobre segurança e combate ao tráfico de drogas nascem neste horizonte.
Como lembrou o professor Pedro Serrano em entrevista ao 247, que você pode consultar em nossa página no Facebook, coube a um presidente dos Estados Unidos, o tristemente célebre Richard Nixon, o papel de colocar o tráfico de drogas como uma questão central do Estado norte-americano. O conhecido problema de caráter sempre apontado em Nixon deu origem, como recorda quem era jovem na época, a um poster onde o presidente dos EUA era retratado, em caricatura, com o olhar chapado de quem se encontrava sob sob os efeitos um baseado.
Na década seguinte, com a Operação Irã-Contras, descobria-se um dado essencial da equação -- a dupla função do combate às drogas ilícitas. O esquema, denunciado em merecido ambiente de escândalo em Washington, era engenhoso. A partir de recursos apreendidos do tráfico de drogas a CIA financiava grupos adversários da guerrilha sandinista da Nicarágua e outros países da América Central. Fazia o jogo sujo do anti-comunismo e, ao mesmo tempo, tentava apagar todos os rastros de sua intervenção.
Nos anos seguintes, a mesma combinação -- drogas e política -- seguiu seu curso, a partir de siglas como o DEA, que operavam a luz do dia. Numa época em que o debate sobre legalização não fazia parte das alternativas realistas, era difícil questionar a legitimidade de se tentar controlar o fornecimento de entorpecentes capazes de provocar danos à saúde das pessoas, em especial à juventude. Mais tarde se verificou que, justamente por este aspecto -- o da legitimidade -- o combate às drogas também era uma atividade ideal para servir de cobertura a ações clandestinas, de óbvia finalidade política, no exterior. Vivia-se, então, uma época em que a CIA se encontrava em defensiva total, desmoralizada pela participação em golpes de Estado -- o maior exemplo foi a queda de Allende, no Chile -- e diversas manobras sujas contra governos democráticos e lideranças progressistas.
Era necessário, então, seguir a mesma política, mas por outros meios. Em países onde a dependência em relação aos Estados Unidos permitiu, como na Colômbia e especialmente no México -- devastado pelo acordo de livre comércio, o Nafta --, as Forças Armadas foram colocadas sob intervenção consentida e bem remunerada, submetidas e domesticadas. No Brasil, a presença de um Estado nacional criado na Era Vargas e relativamente preservado sempre serviu de um obstáculo parcial a intervenções nesse nível de profundidade, razão principal para a demonização permanente de Getúlio e tudo aquilo que ele representa. Aqui, o envolvimento se fez a partir do DEA, parte do imenso sistema de segurança e intervenção do Estado norte-americano. Mantidas sob sigilo por um bom período, no final da década de 1990 atividades dessa agência foram alvo de quinze reportagens de Bob Fernandes publicadas na revista Carta Capital, denunciando a intimidade absoluta de agentes americanos e policiais brasileiros. Conforme a apuração, o DEA influenciava em nomeações e promoções internas, além de assumir encargos financeiros essenciais, inclusive pagamento de aluguéis. Dois delegados entrevistados em on denunciaram que "uma elite dentro da Polícia Federal trabalhava para a CIA e se orgulhava disso."
Num investimento que representou um salto nos trabalhos, a ajuda norte-americana permitiu a instalação do primeiro Guardião, sistema de escuta telefonica usado até hoje para investigar todo tipo de crime -- inclusive na Lava Jato. O local foi Curitiba, proximidade compreensível em função da região da Triplice Fronteira, que Washington apontam, obsessivamente, como de um triangulo amoroso entre imigrantes de origem árabe, lavagem de dinheiro do tráfico e organizações terroristas. O primeiro responsável pelo sistema foi o procurador Antonio Carlos Fernando, o mesmo que, a partir de 2006, se tornaria personalidade nacional pelas denúncias da AP 470. Foi ele quem definiu, pela primeira vez, o Partido dos Trabalhadores como "organização criminosa."
Como sempre acontece, junto com os dólares vieram as idéias e, mais tarde, as decisões políticas. A perseguição ao tráfico permitiu descobertas espantosas sobre a implantação de quadrilhas instaladas no país, alimentou inúmeras manchetres e pum!: em 1999, levou a instalação de uma CPI no Congresso. No plano policial, a CPI do Narcográfico, combinação de circo e palco tribuna que se manteve em atividade por quatro anos, uma das mais longas da história do Congresso, ajudou a revelar ao país a existência de vários personagens sinistros, a começar por Hildebrando Paschoal, ex-deputado celebrizado por uma serra elétrica mortífera. A maior herança foi de outra natureza, porém.
A CPI serviu como uma grande tribuna para a articulação de um grande núcleo de extrema direita do Congresso, abrindo terreno para um trabalho político que teve uma atuação destacadas nos anos seguintes, atingindo o ponto máximo no impeachment de Dilma Rousseff, quinze anos depois. O presidente aquela CPI foi o deputado Magno Malta, caso típico de parlamentar de discursos indignados e vários escândalos dentro do armário, que saiu dali com um mandato de senador assegurado. O relator, Moroni Torgan, tinha carreira como delegado de polícia. Outro destaque era Celso Russomano, duas vezes cavalo paraguaio nas eleições paulistanas.
Outro nome inesquecível foi o Cabo Julio, parlamentar que desembarcou a Brasília como líder sindical da PM de Minas Gerais, de onde chegou a ser expulso (e mais tarde reintegrado) após uma greve salarial com caráter de motim. O cabo hoje é deputado estadual, mas sua força política junto ao governo Temer abriu caminho para o filho, Bruno Julio. Foi ele que, na condição de Secretário Nacional de Juventude acabou forçado a pedir demissão depois que reagiu ao primeiro massacre dos presídios, em Manaus, com palavras de estímulo a novas crimes: "Tinha que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana."
Outros nomes importantes surgiram ao longo do caminho, em torno dessa discussão sobre drogas e política. Embora fosse suplente na época da CPI, o então deputado Osmar Terra, hoje titular do ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, é autor de um projeto autorizando a internação involuntária de um dependente -- sem a avaliação de um juiz, bastando a concordância de um médico. Também costuma se apresentar como um político sempre pronto a combater toda e qualquer iniciativa destinada a flexibilizar a legislação em vigor, mesmo que possa beneficiar apenas usuários e dependentes. Médico, é contra o uso de canabis para fins medicinais, o que já ocorre em boa parte do mundo.
A lei 11.343/06, que é o ponto de partida de uma política de encarceramento que levou o Brasil a formar a quarta população carcerária do planeta, nasceu neste ambiente, com esta história. Ela foi aprovada em agosto de 2006, já no governo Lula. O relator foi o senador Romeu Tuma, delegado da PF que fez carreira na cúpula dos órgãos de informação, inclusive de natureza militar, e tornou-se alvo de uma relação político-sentimental de Lula, que sempre sentiu-se obrigado a retribuir o tratamento atencioso que recebeu durante uma prisão, quando foi liberado para assistir aos funerais de sua mãe. Coerente com uma visão que pretendia criminalizar não apenas o tráfico, mas também o consumo de drogas ilícitas, a grande contribuição da 11.343 foi dificultar a distinção entre traficante e usuário, como previa a legislação anterior, de 1976, que respeitava a noção de que toda pena deve ser proporcional ao crime cometido.
TERRENO FÉRTIL PARA PRECONCEITO
Em vez disso, o artigo 33 prevê pena de cinco a quinze anos para quem quer possa vir a ser enquadrado num desses 18 verbos: "importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar ao consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente". Ao abrir um universo tão amplo de possibilidades, em vez de fixar-se em critérios objetivos, a lei deixou nas mãos de autoridades -- delegados, procuradores, juízes -- a palavra final sobre o tipo de crime em que cada acusado poderia ser enquadrado.
"Essa situação abriu um terreno fértil para o preconceito," denuncia o deputado Paulo Teixeira (PT-SP)."O menino da Zona Sul carioca que é apanhado com maconha é tratado como usuário. Se morar na favela, é traficante. Em vez de usar critérios que poderiam realmente apontar para fatos de maior ou menor gravidade, as autoridades são levadas a tomar uma decisão com base em outros fatores, seja sua opinião sobre o uso de uma droga, ou sobre o comportamento de um acusado, seus hábitos e companhias e assim por diante."
Ao ampliar o leque de possíveis suspeitos, a grande consequência da 11. 334 foi a política de encarceramento em massa, que levou ao surgimento, no Brasil, de uma versão miserável da realidade em vigor nos Estados Unidos. As críticas e denúncias de entidades de direitos humanos se equivalem, aqui e lá. A simples leitura dos jornais mostra que nos EUA os jovens afrodescendentes enfrentam o mesmo tratamento cruel e impune de execuções policiais, ainda que o número de mortes não tenha comparação com os 3500 mortos por ano do país.
Em pouco mais de uma década a população carcerária brasileira saltou de 239 000 presos (julho de 2002) para 622 000 (dezembro de 2014), levando o país a se transformar na população carcerária que mais cresce no planeta.
Em nenhum caso a quantidade se transformou em qualidade. Ocorreu uma mudança de foco. Em vez de priorizar os grandes chefes do crime, sempre mais difíceis de localizar e condenar, as prisões envolvem presos de baixa periculosidade ou mesmo cidadãos cuja culpa não foi comprovada adequadamente. Para agravar, a legislação diz que o crime de tráfico é imprescritível, sem direito a graça ou anistia, tornando difícil qualquer tentativa de reparação. Também é crime hediondo, o que produz o mesmo resultado.
Uma sequela particularmente dramática envolve as mulheres, hoje a população carcerária que mais cresce no país. Em dez anos, a alta foi de 246%. Num outro efeito da política de 18 verbos, de cada dez mulheres colocadas atrás das grades, seis foram condenadas por crimes ligados ao tráfico, onde ocupam, em geral, funções de baixo escalão.
A vontade de punir de qualquer maneira também explica o elevado número de prisões preventivas -- 37% -- quando a pessoa é encarcerada sem atravessar todas as etapas de um julgamento. E é coerente com outra estatística. No fim do processo, a injustiça é reconhecida: 40% dos presos acabam absolvidos ou recebem penas inferiores ao tempo de detenção. Alguns dados confirmam o caráter precário das investigações e das sentenças.
De acordo com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo em 74% dos casos a decisão da prisão foi apoiada unicamente no testemunho de policiais. No mesmo trabalho, mostra-se que em 48% dos casos a droga que teria dado origem a denúncia sequer se encontrava com o acusado. "O vínculo foi estabelecido unicamente pelos policiais envolvidos," diz um estudo do núcleo.
http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/276032/Ao-chamar-Ex%C3%A9rcito-Temer-fez-o-que-Estados-Unidos-sempre-pediram.htm

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