Os porquês da fome na África
Não estamos enfrentando um problema de produção de comida, mas sim um problema de acesso a ela
15/08/2011
Esther Vivas
A emergência alimentar que afeta mais de 10  milhões de pessoas no Chifre da África voltou a colocar na atualidade a  fatalidade de uma catástrofe que não tem nada de natural. Secas,  inundações, conflitos bélicos… contribuem para agudizar uma situação de  extrema vulnerabilidade alimentar, mas não são os únicos fatores que a  explicam.
A situação de fome no Chifre da África  não é novidade. A Somália vive uma situação de insegurança alimentar há  20 anos. E, periodicamente, os meios de comunicação nos atingem em  nossos confortáveis sofás e nos recordam o impacto dramático da fome no  mundo. Em 1984, quase um milhão de pessoas mortas na Etiópia; em 1992,  300 mil somalis faleceram por causa da fome; em 2005, quase cinco  milhões de pessoas à beira da morte no Malaui, só para citar alguns  casos.
Causas políticas
Aponta-se a seca, com a consequente perda  de colheitas e gado, como um dos principais desencadeadores da fome no  Chifre da África, mas como se explica que países como Estados Unidos ou  Austrália, que sofrem periodicamente secas severas, não sofram fomes  extremas? Evidentemente, os fenômenos meteorológicos podem agravar os  problemas alimentares, mas não bastam para explicar as causas da fome.  No que diz respeito à produção de alimentos, o controle dos recursos  naturais é chave para entender quem e para que se produz.
Em  muitos países do Chifre da África, o acesso à terra é um bem escasso. A  compra massiva de solo fértil por parte de investidores estrangeiros  (agroindústria, governos, fundos especulativos) tem provocado a expulsão  de milhares de camponeses de suas terras e diminuido a capacidade  desses países de se autoabastecerem.  Assim, enquanto o Programa Mundial  de Alimentos tenta dar de comer a milhões de refugiados no Sudão,  ocorre o paradoxo de os governos estrangeiros (Kuwait, Emirados Árabes  Unidos, Coreia) comprarem terras para produzir e exportar alimentos para  suas populações.
Ajustes estruturais
No que se refere à  agricultura, estas implicaram em uma política de liberalização comercial  e abertura de seus mercados, permitindo a entrada massiva de produtos  subvencionados, como o arroz e o trigo, de multinacionais  agroindustriais estadunidenses e europeias, que começaram a vender seus  produtos abaixo de seu preço de custo e fazendo a competição desleal com  os produtores autóctones.
As desvalorizações  periódicas da moeda somali geraram também a alta do preço dos insumos e o  fomento de uma política de monocultivos para a exportação que forçou,  paulatinamente, o abandono do campo. Histórias parecidas se deram não só  nos países da África, mas também nos da América Latina e Ásia.
A  subida do preço de cereais básicos é outro dos elementos assinalados  como detonante da fome no Chifre da África.  Na Somália, os preços do  milho e do sorgo vermelho aumentaram 106% e 180%, respectivamente, em  apenas um ano. Na Etiópia, o custo do trigo subiu 85% em relação ao ano  anterior. E, no Quênia, o milho alcançou um valor 55% superior ao de  2010.
Na Bolsa de Valores
Uma  alta que converteu esses alimentos em inacessíveis. Mas, quais são as  razões da escalada dos preços? Vários indícios apontam a especulação  financeira com as matérias-primas alimentares como uma das causas  principais.
O preço dos alimentos se determina  nas bolsas de valores – a mais importante das quais, a nível mundial, é a  de Chicago –, enquanto que na Europa os alimentos se comercializam nas  bolsas de futuros de Londres, Paris, Amsterdã e Frankfurt. Mas hoje em  dia, a maior parte da compra e venda dessas mercadorias não corresponde a  intercâmbios comerciais reais.
De acordo com  Mike Masters, do Hedge Fund Masters Capital Management, calcula-se que  75% do investimento financeiro no setor agrícola é de caráter  especulativo. Compram-se e vendem-se matérias-primas com o objetivo de  especular e fazer negócio, repercutindo finalmente em um aumento do  preço da comida para o consumidor final. Os mesmos bancos, fundos de  alto risco, companhias de seguros que causaram a crise das hipotecas  subprime são os que hoje especulam com a comida, aproveitando-se dos  mercados globais profundamente desregulados e altamente rentáveis.
A  crise alimentar em escala global e a fome no Chifre da África em  particular são resultado da globalização alimentar a serviço dos  interesses privados. A cadeia de produção, distribuição e consumo de  alimentos está nas mãos de umas poucas multinacionais que antepõem seus  interesses particulares às necessidades coletivas e que, ao longo das  últimas décadas, vêm destruindo, com o apoio das instituições  financeiras internacionais, a capacidade dos países do sul de decidir  sobre suas políticas agrícolas e alimentares.
Voltando  ao princípio: por que existe fome em um mundo de abundância? A produção  de alimentos se multiplicou por três desde os anos 1960, enquanto que a  população mundial tão só duplicou desde então. Não estamos enfrentando  um problema de produção de comida, mas sim um problema de acesso a ela.  Como assinalou o relator da ONU para o direito a alimentação, Olivier de  Schutter, em uma entrevista ao jornal El País: “A fome é um problema  político. E uma questão de justiça social e políticas de  redistribuição”.
Se queremos acabar com a fome no  mundo, é urgente apostar em outras políticas agrícolas e alimentares  que coloquem no seu centro as pessoas, as suas necessidades, aqueles que  trabalham a terra e o ecossistema. Apostar no que o movimento  internacional da Via Campesina chama de “soberania alimentar” e  recuperar a capacidade de decidir sobre aquilo que comemos. Tomando  emprestado um dos lemas mais conhecidos do Movimento 15-M, é necessário  uma “democracia real, já” na agricultura e na alimentação.
Esther  Vivas, do Centro de Estudos sobre Movimentos Sociais da Universidad  Pompeu Fabra, é autora de Del campo al plato. Los circuitos de  producción y distribución de alimentos.
Publicado originalmente no El País.
Tradução: Paulo Marques
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