Da Carta Capital
Por Rodrigo Martins e Samantha Maia
No início de outubro, o gigante americano United Health Group (UHG)
anunciou a compra da operadora de planos de saúde Amil, um negócio que
pode alcançar a vultosa cifra de 9,9 bilhões de reais.
Coincidentemente, a ruidosa aquisição foi fechada na mesma semana em
que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) impôs uma severa
restrição a 38 operadoras de seguro saúde, ora proibidas de
comercializar novos planos por três meses. A decisão, anunciada pelo
ministro da Saúde, Alexandre Padilha, foi provocada pelo descumprimento
de prazos máximos para a marcação de consultas, exames e cirurgias.
Os episódios são emblemáticos. De um lado, revela o forte crescimento
e a tendência de concentração das empresas do setor, que movimentou
84,1 bilhões de reais no ano passado, valor 11,5% superior ao de 2010.
De outro, as operadoras sofrem cobranças cada vez maiores por conta da
baixa qualidade dos serviços ofertados, com mais de 10 mil reclamações
de usuários de julho a setembro, segundo a ANS. Ainda assim, o País
mostra-se dependente do setor, responsável pela assistência médica a 48
milhões de brasileiros, um quarto da população.
Apesar de desafogar a rede pública, o economista Carlos Octávio
Ocké-Reis, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), sustenta
que, da forma como estão organizados hoje, “os planos de saúde mais
prejudicam do que contribuem com o Sistema Único de Saúde, a começar
pelo fato de o Estado subsidiar o setor privado com renúncias fiscais e
abrir mão de mais de 19 bilhões de reais que poderiam ser investidos na
rede pública”. Autor do livro SUS: O desafio de ser único,
recém-lançado pela Editora Fiocruz, o especialista, com pós-doutorado
pela Yale School of Management (EUA), defende uma nova regulamentação da
saúde suplementar, de forma que a assistência médica passe a ser
organizada a partir do modelo de concessão, como ocorre no setor
elétrico. E propõe que o governo crie um seguro público para competir
com os planos privados, nos moldes do Plan Public Option, que o presidente Barack Obama tentou, sem sucesso, implantar nos EUA.
Ocké-Reis elenca um extenso
rol de distorções causadas pelo sistema paralelo, público e privado. Um
deles é a forma arbitrária como os preços dos planos de saúde são
estabelecidos. Os idosos ou doentes crônicos, por exemplo, são
praticamente expulsos do mercado quando mais precisam, em razão das
elevadas mensalidades cobradas a esse público. São empurrados para a
rede pública, que sofre com o subfinanciamento e assume os custos dos
procedimentos médicos mais caros e complexos, normalmente não cobertos
pelos planos de saúde. A legislação permite que o SUS peça o
ressarcimento pelos serviços prestados aos clientes da rede privada, mas
as operadoras boicotam a cobrança. Os prestadores de serviços médicos
também são estimulados a trabalhar para o mercado privado, mais
lucrativo. Sem falar da dupla porta de entrada em hospitais de
referência, que atendem pacientes do SUS, mas oferecem atendimento
diferenciado aos usuários de planos de saúde.
“Ao criar um seguro público, haverá uma salutar competição com os
planos privados. E o governo terá condições de induzir mudanças para
fortalecer o SUS, assim como os bancos estatais ajudaram a reduzir os
juros cobrados pelo sistema financeiro”, aposta Ocké-Reis. “Os
incentivos fiscais também devem ser repensados, pois acabam por
favorecer os mais ricos.”
Em 2006, o governo abriu mão de 7,5 bilhões de reais da arrecadação
de Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas para compensar os
gastos dos contribuintes com a saúde privada, em especial com os planos.
Se incluir os descontos para medicamentos e hospitais filantrópicos, o
gasto tributário em saúde ultrapassa a marca de 12,5 bilhões,
proporcional a 30% dos dispêndios do Ministério da Saúde. O livro não
traz dados mais recentes sobre o subsídio estatal ao setor privado, mas
não é difícil projetar o impacto. Uma vez mantido esse porcentual de
renúncia fiscal (o que parece improvável, tendo em vista o elevado
crescimento do mercado de planos), o governo deixou de arrecadar,
aproximadamente, 19 bilhões de reais em 2010. As isenções beneficiam
pouco mais de 10% da população.
“O nó a ser desatado é o fato de o SUS não ter condições, hoje, de
substituir o setor privado na cobertura do núcleo mais dinâmico da
economia e do Estado”, diz o especialista. Isso porque o Estado,
historicamente, contribuiu para a formação e o fortalecimento dos planos
privados. O movimento começou nos anos 1960, quando o governo financiou
a juros negativos a construção de instalações hospitalares e
equipamentos médicos, beneficiando, sobretudo, as empresas de medicina
de grupo. A partir dos anos 1990, o governo permite a consolidação dos
planos de saúde por meio de sua política de renúncia fiscal. Ocorre
então a chamada “universalização excludente”.
“Milhões de pobres e trabalhadores informais
passaram a ter acesso à saúde pública, antes restrita a quem contribuía
para o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS)”, afirma. “Houve,
contudo, uma ‘exclusão por cima’, na medida em que milhões de
trabalhadores formais, em busca de atendimento diferenciado, migraram do
seguro social para o mercado de planos de saúde. Em vez de ser um
sistema único, para todos os brasileiros, o SUS ficou relegado aos mais
pobres.”
A crítica ao sistema híbrido encontra eco na academia. “A ideia era
de que o sistema privado fosse suplementar, a oferecer serviços a mais
que o SUS. Na realidade, as duas atividades se sobrepõem”, critica João
Fernando Moura Viana, especialista em regulação econômica com doutorado
pela Unicamp. “De 2000 a 2011, os planos de saúde foram reajustados em
151%, e esse aumento não tem fim. A mudança do perfil demográfico, com a
população com mais de 60 anos passando de 10%, em 2010, para 19%, em
2030, agrava esse cenário.”
Difícil será convencer os usuários de planos e os prestadores de
serviços médicos a confiar na opção preferencial pelo SUS ou num seguro
saúde público. “Hoje, o País conta com uma rede de 6 mil hospitais, dos
quais um terço é público, um terço é privado lucrativo e outro um terço é
filantrópico, que atende tanto os planos de saúde quanto o SUS”,
comenta Francisco Balestrin, presidente da Associação Nacional dos
Hospitais Particulares. “Só que o SUS é mal pagador, e muitas
instituições diminuem o número de leitos do SUS para atender os
pacientes privados.”
Para Luiz Augusto Carneiro, superintendente-executivo do Instituto de
Estudos de Saúde Suplementar (IESS), é impossível desatar o nó da saúde
no Brasil sem a contribuição da rede privada. “Com base em dados do
próprio governo, nos próximos 18 anos a saúde pública não dará conta da
demanda. O porcentual de gasto público com saúde em relação ao PIB
entre 2000 e 2010 subiu de 2,9% para 3,8%. A previsão é de que alcance
3,96%, e ainda assim será muito inferior ao dos países desenvolvidos.”
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