Do Valor
Mundo mudou, e ricos pagarão mais imposto
Humberto Saccomandi
É possível ter um barco de lazer e declarar renda anual de R$ 50 mil?
Sim. Pode-se ter ganho o barco ou tê-lo comprado com patrimônio
acumulado. Mas é muito improvável manter esse barco ao longo do tempo
com essa renda, sem redução de patrimônio. Há licenças, seguro e
manutenção a pagar. Logo, o proprietário possivelmente tem mais renda,
não declarada, que permite cobrir essas despesas.
Esse é o raciocínio do Fisco italiano, que implementará, a partir do
ano que vem, um sofisticado mecanismo de estimativa de renda, para
tentar coibir a sonegação. Estima-se que os italianos soneguem cerca de €
160 bilhões por ano, mais que o bastante para resolver o problema do
déficit público.
O novo mecanismo chama-se redditometro (rendômetro). No jargão
técnico da Agenzie delle Entrate (a Receita Federal local), é uma
"verificação sintética de tipo indutivo". Com ele, o Fisco estima a
renda anual do contribuinte. Se a estimativa ficar 20% ou mais acima da
declarada, inicia-se um processo de fiscalização.
Alta desigualdade de renda parece cada vez mais intolerável
Como é feita essa estimativa? Em parte com base na declaração de
renda e patrimônio dos contribuintes. Dependendo do tipo de bem, o Fisco
estima o gasto anual com manutenção. Dependendo da casa e do local onde
a pessoa mora, o Fisco estima o seu gasto médio, com base em dados da
pesquisa de domicílio do Istat (o IBGE italiano). Além disso, o Fisco
consulta outras bases de dados acessíveis ao Estado. Ele pode saber
quantos celulares há no domicílio (e estimar o gasto com celulares),
pode saber quantos carros há em nome da pessoa (se o contribuinte não
declarar tudo o que tem), com base no registro de veículos, e por aí
vai.
Segundo Attilio Befera, diretor da Agenzia, uma família italiana a
cada cinco tem gastos "não coerentes com a renda" e cerca de um milhão
de famílias (4% do total) declaram renda "perto de zero", mas fazem
despesas "relevantes e recorrentes".
Outra novidade é que o contribuinte pode fazer um teste para avaliar a
sua situação em relação à renda declarada. Com o "redditest", um
software baixado da internet, ele saberá em quanto o Fisco deverá
estimar a sua renda. O teste usa o padrão de estimativa do redditometro.
Esse mecanismo refinado de coleta fiscal aponta algumas tendências.
Primeiro, é óbvio, a necessidade de alguns Estados europeus de ampliar a
sua arrecadação. Mas sugere ainda que a tolerância com a sonegação é
cada vez menor e que cresce a pressão social por mais equidade fiscal,
isto é, para que os ricos paguem mais impostos. Esses dois últimos
fenômenos parecem não estar restritos a um punhado de países europeus em
crise.
Não só os contribuintes estão na mira no combate à sonegação. Bancos
(muitos receberam ajuda do Estado durante a crise) e paraísos fiscais
estão sob pressão intensa. A decisão das Ilhas Jersey de devolver
dinheiro atribuído a Paulo Maluf não era comum até pouco tempo atrás. A
OCDE (entidade que reúne países ricos) está negociando com a Suíça um
mecanismo de verificação de dinheiro não declarado, o que na prática
acabaria com o sigilo inviolável dos bancos suíços.
Uma opção dos governos para elevar a arrecadação seria taxar mais as
empresas, além dos ricos. Alguns países com baixa carga fiscal (como na
América Latina) ainda devem fazer isso. Mas, na maior parte do mundo
rico (e no Brasil), elevar impostos tiraria competitividade das
empresas, que já enfrentam concorrência externa forte de países com
baixa tributação, em especial da Ásia. Assim, isso significaria se
arriscar a perder empregos. O governo brasileiro está desonerando as
empresas para ajudá-las a ganhar competitividade. Recém-eleito
presidente dos EUA, Barack Obama prometeu fazer o mesmo.
Ricos, claro, podem migrar para países de baixa tributação. Alguns já
o fizeram. O brasileiro Eduardo Saverin, cofundador do Facebook,
abdicou da cidadania americana e se mudou para Cingapura, economizando
US$ 39 milhões em impostos por ano, segundo estimativas. Políticos
americanos o acusaram de estar fugindo da taxação e ameaçaram
represálias. Hoje, quem solicita visto de entrada para os EUA tem de
responder se já renunciou à cidadania americana para fugir do fisco. Mas
quantos ricos ocidentais querem morar em Xangai ou Cingapura?
Essa tendência evidente de taxação maior dos ricos (seja combatendo a
sonegação, seja elevando impostos) terá impacto político? Já está
tendo.
Obama se elegeu prometendo cobrar mais de quem ganha mais, após
décadas de aumento da desigualdade de renda nos EUA. O presidente
francês, François Hollande, prometeu elevar a alíquota máxima do IR para
75%, o que chega a ser punitivo em relação à riqueza. As maiores
alíquotas de IR na Europa ficam pouco acima de 50%. No Brasil, é de
27,5%. Do ponto de vista de arrecadação, a proposta de Hollande não terá
efeito significativo. Mas, do ponto de vista político, é uma resposta à
demanda crescente para que os ricos contribuam mais neste momento de
crise e por um retorno a um modelo europeu de maior igualdade.
O italiano Norberto Bobbio, no seu livro "Direita e Esquerda",
insistiu que as diferenças entre os dois lados permaneciam, mesmo após o
colapso do comunismo, e definiu direita e esquerda como os partidos,
respectivamente, da liberdade e da igualdade, as principais linhas
políticas do Ocidente, advindas da Revolução Francesa. Nos 30 anos antes
da crise de 2008, o discurso da liberdade individual, do Thatcherismo
até a Reaganomics, foi hegemônico. Isso levou, entre outras coisas, a
processos de desregulamentação, como o dos mercados financeiros. As
esquerdas tiveram dificuldade de responder e se adaptar. Algumas
partidos optaram, com sucesso eleitoral, por absorver parte do discurso
de liberdade da direita, como fez o Novo Trabalhismo britânico de Tony
Blair.
A crise está fazendo a roda girar. O crescimento da desigualdade em
quase todo o mundo durante essa hegemonia de liberalismo parece cada vez
mais intolerável. O discurso de maior igualdade, que foi hegemônico no
mundo rico entre os anos 1930 e 1970, voltou a ganhar força. Isso pode
favorecer as esquerdas. Favoreceu a reeleição de Obama. A esquerda está à
frente nas pesquisas na Alemanha e na Itália, que terão eleições em
2013. Mas partidos de direita irão captar essa mudança de sensibilidade
nas sociedades e incluir, de algum modo, o reequilíbrio de renda nas
suas agendas. Nos EUA, os republicanos não fizeram isso, insistindo no
discurso contrário.. E perderam uma das eleição mais ganhas da história
americana.
Humberto Saccomandi é editor de Internacional. Escreve mensalmente às quintas-feiras
Nenhum comentário:
Postar um comentário