Por Paulo Kliass *
Passada a ressaca eleitoral dos municípios, o tema mais comentado na área da saúde deixa de ser a dificuldade de atendimento à população em razão da falta de recursos orçamentários. Não que isso tenha sido resolvido com a eleição do prefeito e dos vereadores. Mas o que tem chamado a atenção dos especialistas da área – além do importante debate a respeito da falsa solução por meio das Organizações Sociais (OSs) – é o negócio, literalmente bilionário, envolvendo a venda do maior grupo privado brasileiro do setor, a Amil.
A transação teve início há vários meses e correu em sigilo entre as partes interessadas: o grupo presidido pelo empresário brasileiro Edson Bueno e a mega corporação norte-americana, UnitedHealth – maior do setor naquele país e uma das maiores no mundo. Algumas informações só começaram a ser reveladas de forma mais ampla a partir de meados de outubro, quando as intenções foram confirmadas, bem como as cifras envolvendo o negócio. O resumo da ópera é que a multinacional da saúde adquiriu a empresa líder do mercado brasileiro pelo valor de R$ 10 bilhões.
Compra da Amil: legislação proíbe estrangeiros de operar hospitais
A estratégia de penetração dos novos atores no negócio de saúde em nosso país envolveu a compra dos planos de saúde do grupo Amil, que já havia adquirido a Medial há alguns anos e, assim, se consolidou como o maior agente privado do ramo. Além disso, a negociação implicou a transferência de um conjunto de mais de 20 hospitais pertencentes à empresa fundada por Bueno. No entanto, ao que tudo indica, a grande aposta do novo controlador é mesmo o segmento de planos privados de saúde, com a expectativa de ampliação e expansão de novos perfis de “clientes e consumidores”. Aliás, essa é exatamente a terminologia utilizada, confirmando a tendência de mercantilização radical desse serviço público, ainda que a Constituição Federal (CF) o assegure como um direito amplo e universal à nossa população.
Não bastasse a magnitude dos valores envolvidos e a elevada sensibilidade da matéria como futuro estratégico de uma das políticas públicas mais importantes, a transação está marcada por um conjunto preocupante de elementos obscuros e polêmicos. Vejamos alguns deles.
A CF estabelece, em seu artigo 199, a proibição de empresas estrangeiras atuarem na saúde, “salvo nos casos previstos em lei”. Pois bem, em 1998, tal aspecto foi regulamentado pela Lei nº 9.656 e não foi previsto nenhum dispositivo autorizando a operação de hospitais. Ou seja, em termos objetivos, continua sendo proibida a posse e a gestão desse tipo de serviço por grupos como a UnitedHealth. Utilizando-se da desculpa esfarrapada de que o “foco” do negócio são os planos de saúde e que os hospitais seriam elemento secundário para o novo controlador, o argumento foi aceito pela direção da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão regulador e fiscalizador do sistema, que aprovou mesmo assim a venda sem nenhuma restrição.
Ameaça à concorrência e rapidez na aprovação
Por outro lado, a operação não foi objeto de avaliação por parte do órgão federal que cuida das condições de defesa da concorrência e risco de cartelização, o CADE. Além da venda caracterizar a continuidade de concentração de poder econômico do maior grupo atuante no setor, a condição de novo proprietário aponta claramente para uma ampliação estratégica de sua presença no setor econômico da saúde em nossas terras. Se adicionarmos o ingrediente de que sua lógica de funcionamento obedecerá, a partir de agora, aos interesses definidos pelos norte-americanos, causa estranheza a liberalidade com que tal acordo foi sancionado pelas instâncias do Estado brasileiro.
A agilidade com que o processo foi avaliado no interior da ANS também chamou a atenção dos profissionais que acompanham o setor. Em geral, os processos envolvendo o órgão regulador da saúde privada levam meses para serem aprovados ou indeferidos. No caso dessa transação, a agência levou apenas 2 semanas para emitir seu parecer final, conferindo o aval para que a Amil fosse vendida aos americanos. O tratamento do dossiê com tais requintes de “eficiência administrativa excepcional” põe novamente em relevo a delicada relação entre os dirigentes dos órgãos reguladores e as empresas objeto de regulamentação e fiscalização. É amplamente conhecido o fenômeno chamado de “captura”, em que os interesses públicos acabam sendo deturpados pela atuação dos responsáveis pelas agências ocorrer mais de acordo com a lógica dos interesses das próprias empresas.
No caso concreto, há evidências de que diretores da ANS freqüentaram espaços da vida privada do presidente da Amil, além de terem sido dirigentes de empresas do próprio setor, como a concorrente Medial, que terminou por ser vendida ao próprio grupo de Bueno. Assim, esse tipo de relação incestuosa no âmbito público/privado coloca em cheque a capacidade das agências defenderem, de fato, os interesses públicos e dos usuários do sistema de saúde.
UnitedHealth: riscos de mercantilização e de americanização
A venda do grupo por valores bilionários deve servir como elemento de reforço da preocupação com o futuro da saúde pública em nosso País. A decisão estratégica do grupo norte-americano certamente levou em consideração cenários de longo prazo, construídos para o chamado “mercado” da saúde. Não obstante a determinação constitucional pelo caminho do SUS, o fato é que os sucessivos governos, no âmbito federal e demais, têm contribuído para o sucateamento do nosso sistema público de saúde. Ao promover contingenciamento de verbas orçamentárias, ao permitir a extinção de fontes importantes de financiamento (como a aceitação passiva do fim da CPMF) e ao estimular o modelo de privatização/concessão/terceirização por meio das OSs, o Estado brasileiro termina por sinalizar que sua opção estratégica pode ser mesmo pelo fortalecimento do setor privado na área. Só o futuro dirá.
Ora, se o caminho adotado será mesmo o da continuidade da chamada “americanização” de nosso sistema de saúde, então faz todo o sentido o investimento bilionário efetuado pelo grupo UnitedHealth. Porém, mais uma vez, estaremos pegando o bonde errado e atrasado da História.
Os Estados Unidos estão justamente tentando promover importantes mudanças em seu próprio modelo. Está em debate a possibilidade de recuperação parcial da presença do Estado na saúde, uma vez que o sistema de mercantilização absoluta revelou-se injusto do ponto de vista social e incapaz de dar conta das necessidades de saúde da população norte-americana. É claro que todo esse quadro foi dramatizado, ao longo dos últimos anos, em função do aprofundamento da crise econômico-financeira e da situação de penúria social.
No caso brasileiro, a estratégia do novo gigante da saúde parece estar em sintonia com o discurso do governo a respeito da ilusão, criteriosamente espalhada aos quatro ventos, a respeito da chamada “nova classe média”. Ao invés de reforçar os aspectos positivos de inclusão sócio-econômica e de recuperação das condições de vida de segmentos até então excluídos, o governo opta por um caminho simplista e perigoso. Parcela importante das famílias passou a contar com níveis mais elevados de renda real por conta de fatores diversos, tais como o Bolsa Família, os benefícios da previdência social, a recuperação dos valores do salário mínimo e a elevação dos rendimentos mais baixos de uma foram geral. Porém, é importante lembrar que trata-se de grupos de perfil econômico da base da pirâmide social. Com isso, o discurso oficial acaba sendo impregnado pelos interesses de aprofundar a mercantilização dos serviços públicos, a exemplo da saúde e da educação.
Saúde privada e os riscos da qualidade no atendimento
O foco passa a ser a destinação de parte da renda suplementar para o consumo de todo tipo de mercadoria. E aí incluem-se as mensalidades de educação infantil, fundamental, média e superior, bem como a compra de planos privados de saúde. As novas camadas que passam a engrossar esses níveis um pouco mais elevados de renda familiar são bombardeadas com os padrões de consumo das faixas que se situam no alto da pirâmide. Como o Estado não consegue oferecer serviços de saúde de qualidade e na quantidade necessária, a ilusão de eventual satisfação das necessidades acaba ocorrendo por meio da oferta privada.
Não construamos nenhuma fantasia a respeito das intenções da UnitedHealth quanto à saúde de nossa população. Trata-se de negócio apenas, puro “business”, nada mais. E a lógica de uma aquisição empresarial envolvendo R$10 bilhões é a do rápido retorno sobre o capital investido e a maximização dos ganhos daqui para frente. Como o balanço contábil e financeiro de uma empresa capitalista envolve sempre a superioridade das receitas sobre as despesas, a orientação será arrecadar no limite superior e gastar o mínimo possível. Ora, uma racionalidade dessa natureza obviamente deixa em segundo plano os aspectos de qualidade de tratamento e os riscos a respeito da saúde e da vida dos cidadãos.
Isso não significa isentar o serviço público de suas deficiências e do longo percurso a percorrer para aperfeiçoar a qualidade do atendimento proporcionado. Aliás, não fosse por tais problemas reais, talvez não houvesse tanto espaço para o crescimento da alternativa privada. No entanto, a mercantilização dos serviços de saúde apresenta o sério risco de conferir ares de legalidade à exclusão, quando as imagens dos indivíduos sendo barrados à porta de centros de tratamento e hospitais nos vêem à cabeça. Caso a operação bilionária se confirme mesmo como fato consumado, o caminho passa pelo reforço da regulação e da fiscalização do poder público, com o objetivo de evitar que os maiores prejudicados sejam, uma vez mais, os próprios usuários do sistema.
* Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10. Artigo publicado originalmente na Carta Maior
Nenhum comentário:
Postar um comentário