Opressivo e cinzento? Não, crescer no comunismo foi a época mais feliz de minha vida
Quando as pessoas me perguntam como era crescer atrás da Cortina de Ferro, na Hungria nos anos setenta e oitenta, a
maioria espera escutar contos sobre polícia secreta, as filas nas
padarias e outras declarações desagradáveis sobre a vida em um Estado de
partido único.
Eles ficam sempre desapontados
quando explico que a realidade era muito diferente, e a Hungria
comunista, longe de ser o inferno na terra, era, na verdade, um ótimo
local para viver. Os comunistas proporcionavam a todos com trabalho garantido, boa educação e atendimento médico gratuito.
Mas
talvez o melhor de tudo fosse a sensação primordial da camaradagem, o
espírito que falta em minha adotada Grã-Bretanha e, de igual forma, a
cada vez que volto à Hungria atual.
Eu nasci em uma família de
classe trabalhadora em Esztergom, uma cidade no norte da Hungria, em
1968. Minha mãe, Juliana, veio do este do país, a parte mais pobre.
Nascida em 1939, teve uma infância dura. Deixou a escola aos 11 anos e
foi diretamente trabalhar nos campos. Ela recorda ter tido que se
levantar às 4 da manhã para caminhar cinco quilômetros e comprar um pão.
De menina, ela tinha tanta fome que com frequência esperavam junto à
galinha até que pusesse um ovo. Então abria-o e engoliam, crua, a gema e
a clara.
Foi o descontentamento com aquelas condições dos primeiros anos do comunismo, que conduziu à revolta húngara de 1956.
Os distúrbios fizeram com que as lideranças comunistas compreendessem que só poderiam consolidar suas posições tornando as nossas vidas mais toleráveis. O estalinismo acabou e o 'comunismo goulash' -um tipo original de comunismo liberal- chegou.
Janos Kadar, o novo líder do país, transformou a Hungria na barraca mais feliz do Leste da Europa. Tínhamos provavelmente mais liberdades que em qualquer outro país comunista.
Uma
das melhores coisas foi a maneira como as oportunidades de lazer e
férias se abriram a todos. Antes da Segunda Guerra Mundial, as férias
estavam reservadas para as classes altas e médias. Nos imediatos anos da
pós-guerra também, a maioria dos húngaros estava trabalhando muito duro
para reconstruir o país, as férias ficavam fora de questão.
Porém, nos anos sessenta, como em muitos outros aspectos da vida, as coisas mudaram para melhor. No final da década, quase
todo mundo podia se dar ao luxo de viajar, graças à rede de subsídios a
sindicatos, empresas e cooperativas de centros de férias.
Meus
pais trabalhavam em Dorog, uma cidade próxima, por Hungaroton, uma
companhia discográfica de propriedade estatal, de modo que ficamos no
acampamento de férias da fábrica no lago Balaton, 'o mar húngaro'. O
acampamento era similar à espécie de colônias de férias na moda na
Grã-Bretanha da época, a única diferença era que os hóspedes tinham que
fazer seu próprio entretenimento às noites. Nom havia campos de férias
tipo Butlins Redcoats.
Algumas das minhas primeiras lembranças
da vida no lar são os animais que meus pais mantinham no quintal. A cria
de animais era algo que a maioria da gente fazia, bem como o cultivo de
hortaliças. Fora de Budapeste e as grandes cidades, nós éramos uma
nação de "Tom e Barbara Goods". (nota: referência à série da BBC dos
anos 70 'The Good Life', protagonizada por uma família auto-suficiente)
Meus
pais tinham por volta de 50 frangos, porcos, coelhos, patos, pombos e
gansos. Mantivemos os animais não só para alimentar a nossa família,
como também para vender a carne a nossos amigos. Utilizaram-se as penas
de ganso para travesseiros e edredões.
O governo entendeu o valor da educação e da cultura.
Antes da chegada do comunismo, as oportunidades para os filhos dos
camponeses e da classe operária urbana, como eu, para ascender na escala
educativa eram limitadas. Tudo isso mudou após a guerra.
O
sistema educativo na Huntria era similar ao existente no Reino Unido na
época. A Educação Secundária era dividida por níveis: Elementar,
Secundário Especializado e Formação Profissional. As principais
diferenças eram que estávamos no Ensino Básico até os 14 anos e nom até
os 11.
Havia também ensino noturno, para crianças e para pessoas
adultas. Os meus pais, que tinham abandonado a escola de novos, iam a
aulas de Matemática, História e Literatura Húngara e Gramática.
Eu adorava os ir à escola e principalmente fazer parte dos Pioneiros - um movimento comum a todos os países comunistas.
Muitos
em Ocidente achavam que era uma burda tentativa de doutrinar a
juventude com a ideologia comunista, mas sendo pioneiros ensinaram-nos
habilidades valiosas para a vida, tais como a cultura da amizade e a
importância de trabalharmos para o benefício da comunidade. "Juntos um
para o outro" era nosso lema, e assim foi como se nos encorajava a
pensar.
Como pioneiro, se obtinha bons resultados em teus
estudos, no trabalho comunal ou em competições escolarres, podia ser
premiado com uma viagem a um acampamento de verão. Eu ia todos os anos,
porque participava em quase todas as atividades da escola: competições,
ginástica, atletismo, coro, fotografia, literatura e biblioteca.
Em
nossa última noite no acampamento de Pioneiros, cantávamos canções ao
redor da fogueira, como o Hino Pioneiro: 'Mint a mokus fenn a fan, az
uttoro oly vidam' ("Somos tão felizes como um esquilo em uma árvore"), e
outras canções tradicionais. Nossos sentimentos sempre foram
misturados: tristeza ante a perspetiva de irmos embora, mas contentes
ante a ideia de vermos nossas famílias.
Hoje em dia, inclusive os que não se consideram comunistas olham para atrás com saudade para seus dias de pioneiros.
As
escolas húngaras não seguiam as chamadas ideias "progressistas" sobre a
educação dominantes na altura em Ocidente. Os padrões acadêmicos eram
extremamente altos e a disciplina era estrita.
Minha professora
favorita ensinou-nos que sem o domínio da gramática húngara iriamos
carecer de confiança para articular os nossos pensamentos e sentimentos.
Só podíamos dar um erro se queríamos atingir a nota mais alta.
Diferentemente do Reino Unido, tínhamos exames orais em todas as matérias.
Em Literatura, por exemplo, tínhamos que memorizar e recitar diferentes
textos e depois a/o estudante teria que responder perguntas colocadas
oralmente pola professora.
Sempre que tínhamos uma celebração
nacional, eu era das que pediam para recitar um poema ou verso em frente
de toda a escola. A Cultura era considerada extremamente importante
pelo governo. Os comunistas não queriam restringir as coisas boas da
vida para as classes altas e médias - o melhor da música, a literatura e
a dança eram para o desfrute de todos.
Isto significava
subsídios generosos para as instituições, incluindo orquestras, óperas,
teatros e cinemas. Os preços dos ingressos eram subsidiados pelo Estado,
daí que as visitas à ópera e ao teatro fossem acessíveis.
Abriram-se
"Casas da Cultura" em cada vila e cidade, também provinciais, para que a
classe trabalhadora, como meus pais, pudessem ter fácil acesso às artes
cênicas, bem como aos melhores intérpretes.
Com 14 anos, a Zsuzsanna (à direita) com uma amiga ainda antes da volta da Hungria ao capitalismo.
A programação na televisão húngara refletia a prioridade do regime para levar a cultura às massas, sem estupidização.
Quando
eu era adolescente, a noite do sábado em prime time pelo geral
significava ver uma aventura de Jules Verne, um recital de poesia, um
espetáculo de variedades, uma obra de teatro ao vivo, ou um simples
filme de Bud Spencer.
Grande parte da televisão húngara era
feita com produção própria, mas alguns programas de qualidade eram
importados, não unicamente do Bloco do Leste, mas também do Oeste.
Os
húngaros de inícios dos anos 70 acompanharam as aventuras e tribulações
de Soames Forsyte em The Forsyte Saga, tal como o público britânico
tinha feito poucos anos antes. The Onedin Line foi uma outra das séries
populares da BBC que eu desfrutei, assim como os documentários de David
Attenborough.
No entanto, o governo estava atento ao perigo de nos tornarmos uma nação de televidentes imbecilizados.
Todas
as segundas-feiras, tínhamos 'noite familiar'. Aí a televisão estatal
ficava fora do ar e isso encorajava as famílias a fazerem outras coisas
juntas. Também era chamada "noite dos planos familiares" e eu tenho
certeza que um estudo do número de crianças concebidas durante as
segundas-feiras familiares seria uma boa leitura.
Ainda que
vivêssemos no 'comunismo goulash' e tivéssemos sempre comida suficiente
para comer, não eramos bombardeados com publicidade de produtos que não
precisávamos.
Durante a minha juventude, vesti roupas em segunda
mão, como a maior parte das pessoas novas. A minha mochila escolar era
da fábrica onde meus pais trabalhavam. Que diferença com a Hungria de
hoje, onde as crianças são intimidadas, tal como no Reino Unido, por
usarem uns ténis da "pior" marca.
Como a maioria da gente na era
comunista, meu pai não tinha obsessão com o dinheiro. Como mecânico,
ele cobrava às pessoas com justiça. Uma vez vi um carro avariado com o
capô aberto - um espetáculo que sempre o fazia reagir. Pertencia a um
turista da Alemanha Ocidental. Meu pai arranjou o carro, mas negou-se a
cobrar-lhe, nem que fosse com uma garrafa de cerveja. Para ele era
natural que a ninguém pudesse aceitar dinheiro por ajudar a alguém com
problemas.
Quando o comunismo na Hungria terminou em 1989, não
só fui surpreendida, também estava entristecida, tal como muitos outros.
Sim, tinha gente se manifestando contra o governo, mas a maioria das
pessoas comuns - eu e minha família incluída - não participou nos
protestos.
Nossa voz - a voz daqueles cujas vidas foram
melhoradas pelo comunismo - rara vez se escuta quando se trata de
discussões sobre como era a vida por trás da Cortina de Ferro. Em troca,
os relatos que se escutam no Occidente são quase sempre da perspetiva
de emigrantes ricos ou dos dissidentes anticomunistas com um interesse
pessoal.
O comunismo na Hungria teve seu lado negativo. Enquanto
as viagens a outros países socialistas não tinham nenhuma restrição,
viajar para o oeste era problemático e só era permitido a cada dois
anos. Poucos húngaros (eu incluída) desfrutaram das aulas de russo
obrigatórias.
Tinha restrições menores e desnecessários setores
burocráticos, e a liberdade para criticar o governo estava limitada. No
entanto, apesar disto, acho que, em seu conjunto, as caraterísticas
positivas ultrapassam as negativas.
Vinte anos depois, a maior parte destes benefícios foram destruídos.
As
pessoas já não têm estabilidade no emprego. A pobreza e a delinquência
vão em aumento. Pessoas da classe trabalhadora já não podem se dar ao
luxo de ir à ópera ou ao teatro. Tal como na Grã-Bretanha, a televisão
atonta em um grau preocupante - ironicamente, nunca tivemos Big Brother
durante o comunismo, mas hoje temos. E o mais triste de tudo, o espírito
de camaradagem que uma vez se desfrutou quase desapareceu.
Nas
últimas duas décadas é possível que tenhamos aumentado o número de
shoppings, a "democracia" multipartidarista, os celulares e a internet.
Mas perdemos muito mais.
Original em inglês no Dailymail.
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