domingo, 21 de abril de 2013

Daniel Defoe, o grande cronista da Londres do século XVII 21/04/2013

Sul 21

Imagem anônima criada durante a Grande Peste de 1665
Milton Ribeiro
A chamada Grande Peste de Londres (1665-1666) foi uma epidemia que vitimou entre 75.000 e 100.000 pessoas, ou seja, um quinto da população da cidade. Um Diário do Ano da Peste (A Journal of the Plague Year) é um livro muito enganador escrito por Daniel Defoe (1660-1731), escritor e jornalista que completa mais um aniversário de morte neste domingo, 21 de abril. Até Gabriel García Márquez, que não é exatamente um tolo, quando se encantou pela obra, caiu no conto de que era uma reportagem da lavra do grande jornalista que o inglês também era. Sua perspectiva alterou-se muito ao ser informado de que Defoe tinha entre quatro e cinco anos de idade quando ocorreu a peste bubônica londrina. O autor descreve a peste como um repórter gonzo que, espicaçado pela curiosidade, vive de rua em rua cada drama, apesar do receio de contrair a doença. Como Defoe conversa com famílias que contam seus dramas em detalhes, é óbvio que se trata de um relato parcialmente ficcional. Defoe também era um ficcionista de mão cheia e estilo bastante original: num ambiente em que os escritores eram cheios de floreios e de citações à mitologia, ele era o escritor simples e direto que criara o livro mais mais vendido da Inglaterra três anos antes: Robinson Crusoe.
Os locais onde os mortos eram queimados
No livro, todo o esforço é para que o contato com os doentes seja minimizado a fim de que fosse evitada a transmissão da peste. Casas eram fechadas com doentes dentro. Também eram tomados cuidados extremos com a água. A angústia do leitor moderno aumenta muito ao saber que tudo aquilo era em vão. Os contemporâneos do escritor ignoravam como a peste bubônica era disseminada: a doença contaminava os ratos, as pulgas sugavam sangue contendo bacilos e as mesmas atacavam homens, inoculando-os. A contaminação dava-se de rato para homem através da pulga. O incrível é que Defoe faz referências aos grande número de ratos, mas não chega a apontá-los como um potencial problema. Os sintomas eram dor de cabeça, frio, dores nas costas, pulso e respiração aceleradas, febre alta e grande inquietação. Em 70% dos casos, a morte acontecia entre três e quatro dias.
Daniel Defoe (1660-1731)
Daniel Foe, de pseudônimo um pouco mais nobre – Daniel Defoe –, foi o autor, dentre outros, de três livros extraordinários: além de Um Diário do Ano da Peste e do conhecidíssimo Robinson Crusoe, Defoe foi o autor do igualmente clássico Moll Flanders, outro exemplo de romance realista “com interesses práticos e imediatos, não clássicos e remotos”, como escreveu Anthony Burgess (autor de Laranja Mecânia). Com efeito, sua formação foi o jornalismo. Pode-se dizer que a primeira versão de Defoe foi a do jornalista combativo e posicionado. A segunda foi ainda jornalística: ele percorreu seu país em busca de relatos rápidos, curiosos e despretensiosos. Será que eram todos ficção? A pergunta se justifica. Afinal, às vezes, Defoe trazia entrevistas surpreendentes com criminosos à beira do patíbulo. Ninguém testemunhou nenhuma delas, mas tais “confissões” ainda quentes, presumivelmente saídas da boca do inferno, faziam enorme sucesso.
Aos 43 anos de idade, na época da Rainha Ana, Defoe — um dissenter, nome dado aos protestantes ingleses não anglicanos — passou a atacá-la em razão de ela ser anglicana. O escritor acabou preso e condenado à exposição no pelourinho. Voltou a liberdade mas, dez anos depois, voltou ao cárcere em razão de outros panfletos contrários ao governo. Cansado das lutas, quando já tinha mais de 60 anos, veio a terceira versão e ele passou a dedicar-se exclusivamente ao romance. Mas mesmo o romancista não abria mão do jornalista. O estilo de Defoe é direto e abre mão de floreios e das demonstrações de erudição e outros que tais, tão apreciados por seus colegas. Ele sempre utilizou o verídico e o crível como apoio.
Capa do DVD de uma das versões de Robinson Crusoe: capa de gosto duvidoso
Em 1719, ele publicou Robinson Crusoe. Naquela primavera, esgotaram-se quatro edições do livro, revelando-se um excelente negócio para Defoe, que o considerava uma mercadoria, uma ficção popular, algo que dava mais lucro que o jornalismo. A história é conhecida. O personagem-título é um náufrago que passou 28 anos em uma remota ilha tropical, encontrando índios – alguns deles canibais – e todo o gênero de aventuras pelo caminho. De grande sucesso, o livro recebeu considerações inclusive de Karl Marx, que escreveu que Crusoe não representava aquilo que diziam dele – uns diziam que ele seria uma representação do homem universal, outros da superioridade do homem branco – e sim o homem capitalista em seu momento heroico. A leitura de Marx, assim como as outras citadas podem ser facilmente reconhecidas no livro de Defoe.
Mas seus grandes livros são Moll Flanders e Um Diário do Ano da Peste. Na época de Defoe, os romances tinham títulos enormes. O de Moll Flandres diz quase tudo a respeito:
Aventuras e Desventuras da Famosa
Moll Flanders
& Cia.,
que viu a luz nas prisões de Newgate e que, ao longo de uma vida rica em vicissitudes,
a qual durou três vezes vinte anos, sem levar em conta sua infância,
foi durante doze anos prostituta, durante doze anos ladra,
casou-se cinco vezes (uma das quais com seu próprio irmão),
ficou exilada durante oito anos na Virgínia e que, enfim,
fez fortuna, viveu muito honestamente e morreu arrependida;
vida contada segundo seus próprias memórias.
Defoe não teve sorte com as capas de DVDs.
O ousado Moll Flanders é um romance que foi por anos mal lido. Era inverossímil uma mulher tão ativa e tão bem sucedida quanto Moll, principalmente do ponto de vista financeiro. No início do século XX, respeitados críticos como Ian Watt reputavam Moll como uma mulher masculinizada. Já Virginia Woolf, que estava iniciando-se como feminista, já tinha uma outra concepção da personagem: “Ela não era uma mulher que se adequava às expectativas de seus contemporâneos, mas ‘uma pessoa’. Ela é uma mulher que age como agem os homens em suas ambições econômicas e em sua independência”, escreveu aprovativamente Woolf. O realismo de Defoe permite que Moll Flanders vislumbre o casamento como uma necessidade afetiva e econômica e a prostituição como uma necessidade econômica em que a moral tem muito pouca influência. “Em minha vida, a baixeza entrou sempre pela porta da necessidade, não pela porta da inclinação. Premido por imperiosas razões materiais, um ser humano pode ser levado aos piores extremos”, escreve Moll Flanders. Ao final do livro, quando o recado está dado, ela se arrepende de tudo, aclamando seus leitores com um afago que não parece nada sincero.
Mas a preferência deste mui opiniático resenhista vai para o opressivo Um Diário do Ano de Peste, que também tem um imenso título:
Diário do ano da peste,
observações ou memórias das ocorrências mais notáveis,
públicas e privadas,
que aconteceram em Londres durante a última grande provação (*)
em 1665.
(*) No original ‘visitation’, que pode ser também visitação.

Mosaico de fatos ligados pela peste onipresente, o livro é documento humano de incontornável porte, um monumento de compaixão dedicado àqueles seres que absolutamente não sabiam como livrar-se da angústia da morte iminente. Defoe narra os acontecimentos e dá voz a personagens que, em conjunto, formam o painel do medo da morte de cada um de nós. O relato de Defoe, com trechos inventados ou não, é muito convincente e, novamente, livre de moralismo. Como escreveu Burgess, “O Diário é o protótipo de todas as obras que mostram o homem, individual ou coletivamente, diante do terror. Defoe é um olho sem sono, uma pena incansável. Sua escrita interpõe a mais fina textura entre o leitor e os acontecimentos”. Certamente não é uma leitura amena. É um livro intenso,  descritivo, cheio de sofrimento e pânico. Mas nenhum historiador obteve apresentar Londres e seu povo com tamanha humanidade, bem como as tentativas do governo e sociedade tomam para enfrentar a peste.
“Aqui, não posso ir adiante. Serei considerado um censor talvez injusto se entrar na desagradável tarefa de refletir, por qualquer que seja o motivo, sobre a ingratidão e o retorno a todas as formas de perversidade entre nós, das quais eu fui muito testemunha ocular”.

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