por Jorge Figueiredo
"Monsters of the Market",
[1]
de David McNally, é um livro importante para compreender o mundo dos
nossos dias. O seu autor dispensa óculos cor-de-rosa e é animado
por uma
paixão de lucidez e eticismo. Assim, produziu este livro original e bem
escrito, que alia a
análise da situação actual do planeta – da Europa e
da África em particular – com as suas manifestações
reflexas nas superestruturas das sociedades que padecem as agruras da
globalização. Vivemos, como diz o autor, na era do
"capitalismo zumbi" e de "bancos zumbis", com vampiros a
actuarem no palco central. Como escreve Marx, "O capital é trabalho
morto que, tal como o vampiro, vive apenas para sugar o trabalho vivo". O
mundo actual é a demonstração disso.
A historiografia corrente costuma caracterizar os mitos como meras superstições de um mundo ultrapassado, coisa de gente inculta e atrasada. Grande erro, pois eles são mais actuais do que nunca e reproduzem-se ou adaptam-se aos acontecimentos correntes. É o que demonstra o autor com a sua análise do famoso clássico Frankenstein , de Mary Shelley. O seu enorme êxito literário no século XIX não por acaso coincidiu com a Revolução Industrial. A sua dissecação (palavra adequada) do romance de Shelley mostra como este correspondia aos processos sociais que então se verificavam, com o desmembramento dos corpos e das mentes da classe que fora despojada durante as enclosures do séc. XVIII. Transformada em mercadoria, esta classe estava a ser consumida nas fábricas da época – quase sempre em condições atrozes. Ao mesmo tempo a legislação britânica sofria modificações tendentes a criminalizar a pobreza, aplicando-lhe inclusive penas pesadas de trabalhos forçados. Nem depois de mortos os pobres escapavam à sanha da classe dominante: os que morriam nos trabalhos forçados ou enforcados eram entregues aos "anatomistas" a fim de serem dissecados. O Frankenstein de Mary Shelley tem essa realidade social como pano de fundo.
Nas artes plásticas, a famosa A lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp, de Rembrandt, antecede esta afirmação de poder de classe. Não por acaso, este Dr. Tulp era o burgomestre e um dos homens ricos da cidade. A imagem mostra os rostos inteligentes e com interesse científico dos burgueses que assistiam à lição, ao passo que o do pobre dissecado (condenado à forca por roubar um casaco) aparece convenientemente na sombra. Os espectáculos (pagos) de dissecação pública eram comuns na época. McNally apresenta a sequência deste teatro do poder: "O Acto Um era a execução pública do criminoso condenado. O Acto Dois consistia na dissecação pública do criminoso enforcado na véspera, a qual podia perdurar até cinco dias. O Acto Três envolvia um banquete semi-privado da Guilda dos Cirurgiões-Anatomistas na noite em que se concluía a dissecação. Finalmente, o Acto Final consistia num desfile com tochas a seguir ao banquete. Como observamos aqui, cerimónias cuidadosamente orquestradas de poder de classe".
A literatura sobre monstros e vampiros ganha impulso precisamente no princípio do século XIX numa sociedade brutalmente dividida pela Revolução Industrial. Data dessa época a Revolução dos Luditas, que aterrorizou a classe dominante britânica entre 1811-17 e acabou por ser afogada em sangue após a revolta de Abril de 1812 em numerosas cidades inglesas. Para sufocá-la, os governantes precisaram enviar 35 mil homens armados às áreas rebeladas. Na verdade, "a literatura de terror nasceu precisamente do terror de uma sociedade dividida e do desejo de curá-la". Tanto o monstro como o vampiro, que vieram ser conhecidos como o Frankenstein de Shelley e o Drácula (de John Polidori), nasceram na mesma época.
Shelley não era uma revolucionária. O seu Frankenstein queria ser uma advertência à classe dominante britânica sobre as consequências de manter uma sociedade dividida e sobre os riscos de uma vingança sangrenta. Ela retrata o seu monstro como um ser inteligente e com capacidades linguísticas, o que destaca a sua humanidade e demarca-o radicalmente da classe dos zumbis – mortos-vivos sem pensamento, bons apenas para obedecer ordens e trabalhar. O seu Frankenstein pertence à classe trabalhadora pois labora à noite, de forma oculta, para proporcionar alimento e combustível ao Dr. Lacey e sua família. É um trabalho invisível, não reconhecido, oculto. Assim, enquanto a economia política dominante na época enfatizava a magia do mercado, regulada pela famosa mão invisível de Adam Smith, Shelley põe em primeiro plano os trabalhos invisíveis que sustentam a vida económica. Ela esboça o trabalho excedente, trabalho acima e além daquele exigido para a subsistência própria, através do qual a Criatura ajuda seus vizinhos. É uma réplica deliberada à teoria económica burguesa, uma paródia à metáfora de Smith.
A literatura e o cinema modernos estão cheios de monstros, tais como vampiros, lobisomens, zumbis, etc. No entanto, estes personagens são pálidos substitutos dos verdadeiros pois são formatados, distorcidos e sujeitos aos códigos da indústria cultural. Trata-se, como diz o autor de "bestas domesticadas, seres derivados do inconsciente colectivo a fim de produzir personagens inofensivos para consumo em massa". Contudo, acrescenta, "só fitando horrores frontalmente e insistindo no seu carácter sistémico, não acidental, é que a teoria suporta compromissos radicais. Eis porque no Capital de Marx abundam descrições pormenorizadas dos ultrajes monstruosos do capital: fábricas nas quais Dante teria considerado ultrapassados os piores horrores no seu Inferno; o implacável tráfico de carne humana; a transformação do sangue de crianças em capital; a mutilação do corpo e da mente dos trabalhadores; a extirpação, escravização e sepultamento em minas das populações indígenas das Américas; a conversão da África numa reserva para a caça de peles negras; o vampiro que não irá embora enquanto permanecer um único músculo, tendão ou gota de sangue a ser explorado. Nomear estes horrores é também efectuar uma contra-magia à feitiçaria do capital. Pois os grandes poderes de ilusão do capital jazem no modo como torna invisível sua própria formação monstruosa".
No discurso europeu, o fetiche emergiu como um meio de marcar os africanos como primitivos que supersticiosamente atribuem poderes divinos a coisas brutas. Mas, como recorda McNally, "num acto poderosamente irónico de inversão, o jovem Marx inverteu a acusação de devoção ao fetiche sobre a classe dominante europeia, declarando que era ela que se curvava perante objectos: como o ouro, no caso dos colonizadores espanhóis das Américas". E na sua mania da pilhagem de coisas como ouro e prata, o seu fetichismo ganhou proporções assassinas, transformando-se numa "religião do desejo não sensual". Nos dias de hoje este fetichismo tornou-se hiper-fetichismo como no caso do capital fictício. Uma acção é um pedaço de papel que confere ao seu possuidor uma minúscula parte dos lucros futuros de uma companhia – se se materializarem. E com o actual paroxismo de financiarização, os derivativos, erigiu-se toda uma estrutura de hiper-fetichismo que cresce de modo exponencial. As pessoas acreditam freneticamente nas propriedades mágicas destes pedaços de papel (ou dos seus equivalentes electrónicos) que se tornariam cada vez mais valiosos. Isto dá origem, também, às teorizações de uma (suposta) economia pós-moderna na qual já não se aplicam as distinções entre o real e o fictício. Tais teorizadores e os que neles acreditam por vezes arrebentam, como se vê nos instrutivos colapsos da Enron em Dezembro de 2001 (a 7ª maior companhia dos EUA) e do banco de investimento Salomon Brothers no fim de 2008. Por muita fraude que tenha havido (e houve) tais desastres radicam numa patologia sistémica e não na corrupção.
Vampiros africanos na era da globalização
"De várias partes da África sub-saariana chegam hoje inquietantes contos de vampiros e zumbis e do extraordinário intercâmbio entre os vivos e os mortos. Toda uma enorme quantidade de lendas populares, cultura oral que se propaga, vídeos e ficção barata descreve processos de acumulação mágica que atravessam o mundo do oculto. Na Nigéria, jornais contêm relatos de passageiros de taxis-motocicletas os quais, depois de porem os capacetes nas cabeças, transformam-se em zumbis e começam a cuspir dinheiro das suas bocas, como se se tornassem máquinas multibanco humanas. Nos Camarões, abundam rumores de trabalhadores-zumbis a labutar em plantações invisíveis numa obscura economia nocturna. Estórias semelhantes vêm da África do Sul e da Tanzânia, incluindo contos de zumbis em tempo parcial, capturados durante as suas horas de sono, só para acordarem exaustos após a sua exploração nocturna. Enquanto o trabalho é visto como possuído, dizem que o dinheiro é encantado. Autoridades congolesas, por exemplo, falam de dólares "ferozes", segregados dentro dos lares dos seus possuidores, cujo crescimento súbito e descontrolado esmaga seu enredado proprietário. Mercadorias também partilham estes poderes bizarros de expansão; no Sudoeste do Congo, por exemplo, florescem contos de pessoas possuídas e devoradas por diamantes", conta o autor, acrescentando muitas outras estórias.
Na verdade, estas fábulas míticas reflectem algo mais. Elas emanam de um sentimento popular profundo, reacção a uma realidade que não lhe é compreensível. Elas são mais do que simples lendas da cultura popular, correspondem à realidade de uma exploração cujos mecanismos e lógicas não são perceptíveis (ex.: como puderam surgir novos-ricos sem trabalho visível, qual a legitimidade dessa riqueza?). Os temores, ansiedades e valores que exprimem permeiam as vidas diárias do povo, definindo tanto a posição social quanto as possibilidades (restritas) de acção política. Trata-se de estórias acerca da violência da desigualdade e da polarização social. A penetração devastadora do capitalismo em África, com monetarização das relações sociais, a corrupção das elites, as consequências selvagens dos programas de ajustamento estrutural, a pandemia da SIDA destrói o modo de vida tradicional africano. Mas em meio a estes contos populares de horror encontram-se imagens recorrentes da acumulação através do desmembramento corporal e da desencarnação. São as marcas da incorporação no mundo do capitalismo reflectidas na superestrutura mental.
Uma das imagens da monstruosidade do mercado – o zumbi – é um produto da experiência africana que foi reprocessado, primeiro no Haiti, a seguir descoberto e adaptado por Hollywood para ser finalmente transformado outra vez nos recentes contos populares africanos. Na figura do trabalhador-zumbi encontram-se traços do circuito global do capital. Os actuais contos de zumbis são portanto fábulas da modernidade, não podem ser tratadas como "tradicionais" ou "pré-modernos" como pretende o preconceito colonialista de que os africanos seriam pré-históricos, gente fora da história. Tais preconceitos têm a função ideológica de justificar um apartheid global.
A economia capitalista mundial é opaca, mesmo nos países desenvolvidos do Ocidente poucos a entendem. Mas na cultura tradicional africana a concepção de riqueza é um jogo de soma zero: se um aldeão tem 10 galinhas e o vizinho tem 20, este tem dobro de "riqueza". Por isso, a moderna economia globalizada – que na África tem um carácter sobretudo extractivista – é um mistério incompreensível dentro do quadro mental tradicional. Assim, as lendas com zumbis e vampiros são um ensaio de "explicação" de algo não apreensível. A riqueza dos novos-ricos não pode ser explicada pelo simples roubo dos seus vizinhos porque nem mesmo toda a riqueza da aldeia chegaria para atingir os níveis que ostentam.
A moderna literatura africana reflecte os limites estabelecidos pelo imaginário africano tradicional e as novas realidades impostas pela globalização, com relações impessoais e mediadas pelo dinheiro. O autor cita a historiadora Luise White , a qual afirma que "os vampiros emergiram no imaginário africano só no século XX, quando a crescente penetração de imperativos capitalistas provocou novos modos de compreender e retratar os perigos da vida diária". Na verdade, argumenta ela, "as estórias de vampiros envolveram esforços complexos para penetrar os mistérios dos processos de trabalho capitalistas".
No ano 2000, recorda o autor, a África sub-saariana estava a enviar US$337 milhões por dia para o Ocidente a título de reembolso de dívida. Trata-se da sua sujeição a uma recolonização sistemática promovida pelas instituições financeiras internacionais. Assim, não é de admirar que o folclore e a cultura de massa imaginem as corporações globais como sugadoras do sangue do subcontinente.
Como conclusão McNally afirma: "A sociedade de mercado capitalista abunda em monstros. Mas nenhuma destas espécies grotescas domina tanto a imaginação moderna como o vampiro e o zumbi. De facto, estas duas criaturas precisam ser pensadas em conjunto, pois interconectam momentos da dialéctica monstruosa da modernidade. Tal como Victor Frankenstein e seu Criador, o vampiro e o zumbi são dúplices, pólos ligados da sociedade dividida. Se os vampiros são os pavorosos seres que podem possuir-nos e transformar-nos em seus dóceis servos, os zumbis representam a nossa auto-imagem assombrada, advertindo-nos que podemos já estar sem vida, como agentes impotentes de poderes alheios".
O autor de Monsters of the Market, um professor americano que conhece bem a Nigéria, tem uma erudição prodigiosa tanto da literatura, da história e da sociologia ocidentais como da cultura tradicional africana. Ele fez a façanha notável de conseguir combinar tudo isso nesta obra, a qual contém percepções extremamente agudas das realidades africanas assim como da nossa própria realidade ocidental. Este livro ensina, e muito. É preciso que seja publicado em português.
A historiografia corrente costuma caracterizar os mitos como meras superstições de um mundo ultrapassado, coisa de gente inculta e atrasada. Grande erro, pois eles são mais actuais do que nunca e reproduzem-se ou adaptam-se aos acontecimentos correntes. É o que demonstra o autor com a sua análise do famoso clássico Frankenstein , de Mary Shelley. O seu enorme êxito literário no século XIX não por acaso coincidiu com a Revolução Industrial. A sua dissecação (palavra adequada) do romance de Shelley mostra como este correspondia aos processos sociais que então se verificavam, com o desmembramento dos corpos e das mentes da classe que fora despojada durante as enclosures do séc. XVIII. Transformada em mercadoria, esta classe estava a ser consumida nas fábricas da época – quase sempre em condições atrozes. Ao mesmo tempo a legislação britânica sofria modificações tendentes a criminalizar a pobreza, aplicando-lhe inclusive penas pesadas de trabalhos forçados. Nem depois de mortos os pobres escapavam à sanha da classe dominante: os que morriam nos trabalhos forçados ou enforcados eram entregues aos "anatomistas" a fim de serem dissecados. O Frankenstein de Mary Shelley tem essa realidade social como pano de fundo.
Nas artes plásticas, a famosa A lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp, de Rembrandt, antecede esta afirmação de poder de classe. Não por acaso, este Dr. Tulp era o burgomestre e um dos homens ricos da cidade. A imagem mostra os rostos inteligentes e com interesse científico dos burgueses que assistiam à lição, ao passo que o do pobre dissecado (condenado à forca por roubar um casaco) aparece convenientemente na sombra. Os espectáculos (pagos) de dissecação pública eram comuns na época. McNally apresenta a sequência deste teatro do poder: "O Acto Um era a execução pública do criminoso condenado. O Acto Dois consistia na dissecação pública do criminoso enforcado na véspera, a qual podia perdurar até cinco dias. O Acto Três envolvia um banquete semi-privado da Guilda dos Cirurgiões-Anatomistas na noite em que se concluía a dissecação. Finalmente, o Acto Final consistia num desfile com tochas a seguir ao banquete. Como observamos aqui, cerimónias cuidadosamente orquestradas de poder de classe".
A literatura sobre monstros e vampiros ganha impulso precisamente no princípio do século XIX numa sociedade brutalmente dividida pela Revolução Industrial. Data dessa época a Revolução dos Luditas, que aterrorizou a classe dominante britânica entre 1811-17 e acabou por ser afogada em sangue após a revolta de Abril de 1812 em numerosas cidades inglesas. Para sufocá-la, os governantes precisaram enviar 35 mil homens armados às áreas rebeladas. Na verdade, "a literatura de terror nasceu precisamente do terror de uma sociedade dividida e do desejo de curá-la". Tanto o monstro como o vampiro, que vieram ser conhecidos como o Frankenstein de Shelley e o Drácula (de John Polidori), nasceram na mesma época.
Shelley não era uma revolucionária. O seu Frankenstein queria ser uma advertência à classe dominante britânica sobre as consequências de manter uma sociedade dividida e sobre os riscos de uma vingança sangrenta. Ela retrata o seu monstro como um ser inteligente e com capacidades linguísticas, o que destaca a sua humanidade e demarca-o radicalmente da classe dos zumbis – mortos-vivos sem pensamento, bons apenas para obedecer ordens e trabalhar. O seu Frankenstein pertence à classe trabalhadora pois labora à noite, de forma oculta, para proporcionar alimento e combustível ao Dr. Lacey e sua família. É um trabalho invisível, não reconhecido, oculto. Assim, enquanto a economia política dominante na época enfatizava a magia do mercado, regulada pela famosa mão invisível de Adam Smith, Shelley põe em primeiro plano os trabalhos invisíveis que sustentam a vida económica. Ela esboça o trabalho excedente, trabalho acima e além daquele exigido para a subsistência própria, através do qual a Criatura ajuda seus vizinhos. É uma réplica deliberada à teoria económica burguesa, uma paródia à metáfora de Smith.
A literatura e o cinema modernos estão cheios de monstros, tais como vampiros, lobisomens, zumbis, etc. No entanto, estes personagens são pálidos substitutos dos verdadeiros pois são formatados, distorcidos e sujeitos aos códigos da indústria cultural. Trata-se, como diz o autor de "bestas domesticadas, seres derivados do inconsciente colectivo a fim de produzir personagens inofensivos para consumo em massa". Contudo, acrescenta, "só fitando horrores frontalmente e insistindo no seu carácter sistémico, não acidental, é que a teoria suporta compromissos radicais. Eis porque no Capital de Marx abundam descrições pormenorizadas dos ultrajes monstruosos do capital: fábricas nas quais Dante teria considerado ultrapassados os piores horrores no seu Inferno; o implacável tráfico de carne humana; a transformação do sangue de crianças em capital; a mutilação do corpo e da mente dos trabalhadores; a extirpação, escravização e sepultamento em minas das populações indígenas das Américas; a conversão da África numa reserva para a caça de peles negras; o vampiro que não irá embora enquanto permanecer um único músculo, tendão ou gota de sangue a ser explorado. Nomear estes horrores é também efectuar uma contra-magia à feitiçaria do capital. Pois os grandes poderes de ilusão do capital jazem no modo como torna invisível sua própria formação monstruosa".
No discurso europeu, o fetiche emergiu como um meio de marcar os africanos como primitivos que supersticiosamente atribuem poderes divinos a coisas brutas. Mas, como recorda McNally, "num acto poderosamente irónico de inversão, o jovem Marx inverteu a acusação de devoção ao fetiche sobre a classe dominante europeia, declarando que era ela que se curvava perante objectos: como o ouro, no caso dos colonizadores espanhóis das Américas". E na sua mania da pilhagem de coisas como ouro e prata, o seu fetichismo ganhou proporções assassinas, transformando-se numa "religião do desejo não sensual". Nos dias de hoje este fetichismo tornou-se hiper-fetichismo como no caso do capital fictício. Uma acção é um pedaço de papel que confere ao seu possuidor uma minúscula parte dos lucros futuros de uma companhia – se se materializarem. E com o actual paroxismo de financiarização, os derivativos, erigiu-se toda uma estrutura de hiper-fetichismo que cresce de modo exponencial. As pessoas acreditam freneticamente nas propriedades mágicas destes pedaços de papel (ou dos seus equivalentes electrónicos) que se tornariam cada vez mais valiosos. Isto dá origem, também, às teorizações de uma (suposta) economia pós-moderna na qual já não se aplicam as distinções entre o real e o fictício. Tais teorizadores e os que neles acreditam por vezes arrebentam, como se vê nos instrutivos colapsos da Enron em Dezembro de 2001 (a 7ª maior companhia dos EUA) e do banco de investimento Salomon Brothers no fim de 2008. Por muita fraude que tenha havido (e houve) tais desastres radicam numa patologia sistémica e não na corrupção.
Vampiros africanos na era da globalização
"De várias partes da África sub-saariana chegam hoje inquietantes contos de vampiros e zumbis e do extraordinário intercâmbio entre os vivos e os mortos. Toda uma enorme quantidade de lendas populares, cultura oral que se propaga, vídeos e ficção barata descreve processos de acumulação mágica que atravessam o mundo do oculto. Na Nigéria, jornais contêm relatos de passageiros de taxis-motocicletas os quais, depois de porem os capacetes nas cabeças, transformam-se em zumbis e começam a cuspir dinheiro das suas bocas, como se se tornassem máquinas multibanco humanas. Nos Camarões, abundam rumores de trabalhadores-zumbis a labutar em plantações invisíveis numa obscura economia nocturna. Estórias semelhantes vêm da África do Sul e da Tanzânia, incluindo contos de zumbis em tempo parcial, capturados durante as suas horas de sono, só para acordarem exaustos após a sua exploração nocturna. Enquanto o trabalho é visto como possuído, dizem que o dinheiro é encantado. Autoridades congolesas, por exemplo, falam de dólares "ferozes", segregados dentro dos lares dos seus possuidores, cujo crescimento súbito e descontrolado esmaga seu enredado proprietário. Mercadorias também partilham estes poderes bizarros de expansão; no Sudoeste do Congo, por exemplo, florescem contos de pessoas possuídas e devoradas por diamantes", conta o autor, acrescentando muitas outras estórias.
Na verdade, estas fábulas míticas reflectem algo mais. Elas emanam de um sentimento popular profundo, reacção a uma realidade que não lhe é compreensível. Elas são mais do que simples lendas da cultura popular, correspondem à realidade de uma exploração cujos mecanismos e lógicas não são perceptíveis (ex.: como puderam surgir novos-ricos sem trabalho visível, qual a legitimidade dessa riqueza?). Os temores, ansiedades e valores que exprimem permeiam as vidas diárias do povo, definindo tanto a posição social quanto as possibilidades (restritas) de acção política. Trata-se de estórias acerca da violência da desigualdade e da polarização social. A penetração devastadora do capitalismo em África, com monetarização das relações sociais, a corrupção das elites, as consequências selvagens dos programas de ajustamento estrutural, a pandemia da SIDA destrói o modo de vida tradicional africano. Mas em meio a estes contos populares de horror encontram-se imagens recorrentes da acumulação através do desmembramento corporal e da desencarnação. São as marcas da incorporação no mundo do capitalismo reflectidas na superestrutura mental.
Uma das imagens da monstruosidade do mercado – o zumbi – é um produto da experiência africana que foi reprocessado, primeiro no Haiti, a seguir descoberto e adaptado por Hollywood para ser finalmente transformado outra vez nos recentes contos populares africanos. Na figura do trabalhador-zumbi encontram-se traços do circuito global do capital. Os actuais contos de zumbis são portanto fábulas da modernidade, não podem ser tratadas como "tradicionais" ou "pré-modernos" como pretende o preconceito colonialista de que os africanos seriam pré-históricos, gente fora da história. Tais preconceitos têm a função ideológica de justificar um apartheid global.
A economia capitalista mundial é opaca, mesmo nos países desenvolvidos do Ocidente poucos a entendem. Mas na cultura tradicional africana a concepção de riqueza é um jogo de soma zero: se um aldeão tem 10 galinhas e o vizinho tem 20, este tem dobro de "riqueza". Por isso, a moderna economia globalizada – que na África tem um carácter sobretudo extractivista – é um mistério incompreensível dentro do quadro mental tradicional. Assim, as lendas com zumbis e vampiros são um ensaio de "explicação" de algo não apreensível. A riqueza dos novos-ricos não pode ser explicada pelo simples roubo dos seus vizinhos porque nem mesmo toda a riqueza da aldeia chegaria para atingir os níveis que ostentam.
A moderna literatura africana reflecte os limites estabelecidos pelo imaginário africano tradicional e as novas realidades impostas pela globalização, com relações impessoais e mediadas pelo dinheiro. O autor cita a historiadora Luise White , a qual afirma que "os vampiros emergiram no imaginário africano só no século XX, quando a crescente penetração de imperativos capitalistas provocou novos modos de compreender e retratar os perigos da vida diária". Na verdade, argumenta ela, "as estórias de vampiros envolveram esforços complexos para penetrar os mistérios dos processos de trabalho capitalistas".
No ano 2000, recorda o autor, a África sub-saariana estava a enviar US$337 milhões por dia para o Ocidente a título de reembolso de dívida. Trata-se da sua sujeição a uma recolonização sistemática promovida pelas instituições financeiras internacionais. Assim, não é de admirar que o folclore e a cultura de massa imaginem as corporações globais como sugadoras do sangue do subcontinente.
Como conclusão McNally afirma: "A sociedade de mercado capitalista abunda em monstros. Mas nenhuma destas espécies grotescas domina tanto a imaginação moderna como o vampiro e o zumbi. De facto, estas duas criaturas precisam ser pensadas em conjunto, pois interconectam momentos da dialéctica monstruosa da modernidade. Tal como Victor Frankenstein e seu Criador, o vampiro e o zumbi são dúplices, pólos ligados da sociedade dividida. Se os vampiros são os pavorosos seres que podem possuir-nos e transformar-nos em seus dóceis servos, os zumbis representam a nossa auto-imagem assombrada, advertindo-nos que podemos já estar sem vida, como agentes impotentes de poderes alheios".
O autor de Monsters of the Market, um professor americano que conhece bem a Nigéria, tem uma erudição prodigiosa tanto da literatura, da história e da sociologia ocidentais como da cultura tradicional africana. Ele fez a façanha notável de conseguir combinar tudo isso nesta obra, a qual contém percepções extremamente agudas das realidades africanas assim como da nossa própria realidade ocidental. Este livro ensina, e muito. É preciso que seja publicado em português.
Plano da obra
Capítulo Um: - A dissecar o corpo que faz o trabalho árduo: Frankenstein, anatomia política e a ascensão do capitalismo - "Salve meu corpo dos cirurgiões" - A cultura da dissecação: anatomia, colonização e ordem social - Anatomia política, trabalho assalariado e destruição dos baldios (commons) ingleses - Anatomia da economia cadáver - Monstros da rebelião - Jacobinos, irlandeses e luditas: Monstros rebeldes na era do Frankenstein - Os direitos dos monstros: horror e sociedade dividida Capítulo Dois: - Monstros de Marx: O capital-vampiro e o mundo de pesadelo do capitalismo tardio - Dialéctica e a vida dupla da mercadoria - O espectro do valor e o fetichismo das mercadorias - "Como se possuído pelo amor": o capital vampiro e o corpo que labuta - Trabalho-zumbi e os " ultrajes monstruosos " do capital - Dinheiro: segunda natureza do capitalismo - Capital que "nasce de si próprio" e a alquimia do dinheiro - Dinheiro selvagem: as economias ocultas da globalização capitalista tardia - Enron: estudo de caso na economia oculta do capitalismo tardio - "O capital vem ao mundo a gotejar sangue por todos os seus poros" Capítulo Três: - Vampiros africanos na era da globalização - Parentesco e acumulação: da velha feitiçaria para a nova - Zumbis, vampiros e espectros do capital: as novas economias ocultas do capitalismo globalizante - Fetiches africanos e o fetichismo das mercadorias - O morto-vivo: trabalhadores-zumbis na era da globalização - Capitalismo vampiro na África Sub-Saariana - Acumulação encantada, estradas da fome e os infindáveis condenados da Terra Conclusão: Beleza feia: Sonhos monstruosos de utopia |
[1] David McNally , Monsters of the Market – Zombies, Vampires and Global Capitalism , Haymarket Books, Chicago, 2012, 296 p., ISBN 978-1-60846-233-9
Esta resenha encontra-se em http://resistir.info/
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