Alejandro
Bercovich, Revista Crisis, agosto 2012,
Argentina
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
“Acreditar ou explodir”, eis o mote da jovem guarda
de funcionários públicos que assumiram as rédeas da economia argentina, em plena
crise global. Deve-se festejar que não se ouça o cacarejo dos economistas, mas
não a ausência de qualquer debate social sobre o que virá [1]. Aqui oferecemos uma leitura crítica das atuais
encruzilhadas políticas na Argentina e uma interpretação do movimento “La
Cámpora” [2].
Alejandro Bercovich |
Os
argentinos estamos mais estatistas que nunca. Segundo pesquisa feita pela Universidad Di Tella depois da
estatização da Repsol-YPF, a
população acredita que o Estado é o principal responsável por assegurar o seu
bem-estar (82,7%), por gerar empregos (81,6%), por reduzir a desigualdade entre
ricos e pobres (87,3), e por prover pensões e aposentadorias (86,2%) e pela
saúde pública (87,9%). Ainda mais surpreendente é que a alta porcentagem de
68,5% opine que o Estado deva ser “dono das empresas e indústrias mais
importantes do país”.
Qualquer
desses números seria incompreensível em países como os EUA, onde o capital é
religião, a empresa privada é sacrossanta e muitos trabalhadores que perderam os
empregos na crise das hipotecas podres continuam a repetir, como salmo, que “a
frase que fez a grandeza dos EUA sempre foi ‘você está despedido’”.
O
estrepitoso fracasso do neoliberalismo no mundo e na América do Sul sepultou
rapidamente as ilusões de progresso individual que políticos e a
imprensa-empresa tentaram semear durante a década dos 90s, a partir do fim do
Muro de Berlim. O estilhaçamento em mil pedaços do sistema político, em dezembro
de 2001, acabou por catalisar um clic
na cabeça dos argentinos.
Mas,
embora o kirchnerismo tenha dado
carne e ossos a muitas dessas mudanças subjetivas e tenha inclusive
re-estatizado – em boa parte forçado pelas circunstâncias – empresas
paradigmáticas como Correio Argentino, Águas Argentinas e em seguida também as
Aerolíneas Argentinas, a vontade social manifesta na pesquisa da Di Tella não
teve correlato tão claramente demarcado na realidade. Nem muito menos.
Os
números da Facultad Latinoamericana de
Ciencias Sociales (FLACSO) sobre a cúpula empresarial argentina são
lapidares. Em 1976, 38,4% do faturamento total das 200 maiores empresas do país
correspondia a empresas estatais. Com a financeirização e a era do dinheiro
fácil, essa proporção caiu para 28,9% em 1991, antes do tsunami de
privatizações. Apenas quatro anos depois, a proporção desabou para 3,4%. E até
2001, em pleno reinado do Consenso de Washington, as empresas estatais
argentinas chegaram ao fundo histórico do poço: 1,6%.
Com
o kirchnerismo, o que aconteceu?
Muita estrangeirização inicial,
bastante argentinização posterior
para mãos de grupos econômicos locais, em geral grupos próximos do Governo, mas
muito pouca recuperação do peso econômico do Estado.
Em
2010, último dado disponível, a FLACSO calcula que as empresas estatais
faturavam cerca de 3,5% da massa total do faturamento das maiores empresas,
quase o mesmo que em 1995. Claro que neste ano somou-se a estatização da Repsol,
a principal empresa do país em ativos e em vendas. E ainda falta ver o que
acontece aos trens e metrô, dados em concessão a um punhado de empresas
contratadas habituadas a fraudar o fisco graças a obras e subsídios.
Que
o Estado volte a assumir papel de líder de investimentos é considerado
indispensável por todos os economistas antineoliberais.
A
razão é simples: empresas privadas não investem o suficiente para sustentar o
crescimento. Nem as locais nem as estrangeiras. O investimento não chega a 25%
do PIB e cresceu menos que ele durante quase todos os anos da era K. Para
piorar, segundo dados do mesmíssimo Instituto Nacional de Estadística y Censos
(INDEC), sete de cada dez pesos computados como “investimento” destinam-se à
construção e à compra de veículos de transporte. Quer dizer: não são usados para
incorporar máquinas e novas tecnológicas que poderiam melhorar e perfil
produtivo e contribuir para substituir importações.
Os
porta-vozes do establishment, em especial o financeiro, argumentam que a
Argentina não recebe fluxos de capital estrangeiro por ter-se “isolado do
mundo”, primeiro com o “calote”, depois com a manipulação de estatísticas e
certos gestos de rebeldia contra o Fundo Monetário Internacional e países do
G-7. O que não dizem é que esses são investimentos quase sempre de curto prazo,
sem inovação tecnológica nem agregação local de valor e/ou são comercialmente
deficitários, para a balança de pagamentos, dadas as importações que exigem. E
que, além disso, têm, como contrapartida, a rápida saída de divisas sob a forma
de dividendos.
Por
outro lado, quem, em seu juízo perfeito, faria o próprio crescimento futuro
depender da vontade de multinacionais europeias ou norte-americanas, naufragadas
em sua pior crise desde 1930? Como evitar que essas empresas protejam primeiro o
emprego em seus países, forçadas por governos que pregam o livre comércio, mas
cujas economias só cresceram, quando cresciam, a golpes de protecionismo, no
melhor dos casos; e de rapina semicolonial, no pior?
Desde
o início, o principal problema do modelo de acumulação kirchnerista foi o papel protagonista
que reservou a um ator que jamais teve gás, sequer, para ser coadjuvante: a
burguesia “nacional”. Uma elite empresarial diversificada e rentista, habituada
a viver dos juros do dinheiro, a qual, durante quase todo o século 20, investiu
apenas o mínimo necessário para preservar esse status de privilégio,
mandando divisas para o exterior sistematicamente nos tempos de alta, à espera
da crise seguinte, que ofereceria a preço aviltado os ativos locais – terra e
empresas – que logo estariam em mãos de terceiros. E que só aceitou “enterrar”
capitais no país durante períodos curtíssimos e em troca de que lhe garantissem
gordas taxas de rentabilidade, quase sempre à custa de direitos trabalhistas e
do equilíbrio ecológico, geográfico e demográfico “nacional”.
Embora com essa limitação
estrutural, a chegada de Axel Kicillof [3] ao centro do Governo, em abril
desse ano, inaugurou um novo tipo de intervenção do Estado nas decisões das
empresas mais importantes do país. O passo decisivo foi a estatização da maioria
acionária de YPF, cujo destino
dependerá das formas de associação que venha a adotar com o capital privado e de
conseguir submetê-lo ao objetivo de produzir mais e ampliar o horizonte de
reservas. Mas os primeiros movimentos nesse sentido aconteceram numa intervenção
anterior, que passou quase inadvertida, mas que terá influência contundente na
atividade econômica do próximo ano.
De
que intervenção estamos falando? Da que possibilitou a aparição, com voz e voto,
de representantes estatais, nas assembleias de acionistas de 42 grandes
empresas, graças à re-estatização, na Argentina, em 2008, das Administradoras de
Fundos de Aposentadorias e Pensões [orig. Administradoras de Fondos de
Jubilaciones y Pensiones (AFJP)], que haviam sido privatizadas no governo
Menem.
Representantes
dos fundos de aposentadoria e pensão, evidentemente, são grandes acionistas de
grandes empresas argentinas – e votam nas assembleias. Empresas como Telecom,
Siderar (Techint), Petrobras Argentina, Metrogas, TGS, Pampa (Edenor),
Consultatio, Gas Natural BAN; bancos como o Galicia, Patagonia, Francés e Macro;
Metrovías e até a empresa-imprensa Clarín foram obrigadas a tolerar algo
que jamais se vira antes.
Suas
assembleias anuais começaram a receber enviados de Kicillof, o novo enfant
terrible da economia; participavam de pleno direito das assembleias e
exigiam a nomeação de diretores “seus”, sempre tentando remodelar algumas das
decisões das assembleias de acionistas.
Nenhuma
das participações herdadas das AFJP argentinas excede 25% do capital
dessas megaempresas. Mas, sob a coordenação de Kicillof, os delegados do Governo
forçaram a maioria dessas empresas a reinvestir porção maior de seus ganhos no
país, e a fazer partilha simétrica de dividendos entre os acionistas, muitos dos
quais, estrangeiros.
E
como conseguiram o que conseguiram, sendo minoria? Negociando. Ameaçando não
aprovar balanços – o que o mercado interpretaria como uma espécie de veto
governamental ou sinal de crise no “relacionamento” com o Governo.
A
revista Crisis entrevistou vários gerentes dessas megaempresas e muitos
assumem, pedindo que seus nomes não sejam divulgados: nenhuma empresa que tenha
de sobreviver sob regulação do Estado – como as que prestam serviços públicos e,
claro, os bancos – tem qualquer interesse em tumultuar seu relacionamento com o
Estado ou com o governo. Tampouco as que dependem de contrato para obras
públicas. Ou as que vivem sob regime especial, ou que enfrentam barreiras de
proteção aduaneira, como Techint.
“La
Cámpora”
Mas,
paradoxalmente, a tendência política interna que elevou Kicillof ao pedestal de
consultor-estrela-ministro, onde, em outros tempos estiveram Lavagna, Peirano,
Lousteau e Boudou, constitui também a principal ameaça à estabilidade do Estado
nesse papel protagonista que aspira a ocupar (e que os argentinos desejam que
ocupe), se o que se quer é encontrar a “saída desse inferno”, como dizia Néstor
Kirchner, no início dos anos 2000.
Sim. Tanto o combustível como o
lastro para esses avanços está no grupo denominado “La Cámpora” – que nasceu no
funeral público do líder peronista [4] [18/12/1980 [5]]; que surpreendeu todo o mapa dos
partidos na Argentina pelo crescimento explosivo; e que, hoje, desempenha o
contraditório papel de juventude conservadora, guardiã do que tenha sido
conquistado e, ao mesmo tempo, sempre a exigir mudanças mais radicais
[6].
Em geral, até agora, a oposição
tem questionado La Cámpora com argumentos que são mais de forma, que de fundo
[7]. Criticou sua ostentação de
riqueza, o arrivismo e uma indefinida “prepotência juvenil”, com
desqualificativos que evocam o discurso de Perón contra “os imberbes” na Plaza
de Mayo.
Poucos
reparam no verdadeiro calcanhar de Aquiles de La Cámpora, que é também o
calcanhar de Aquiles do atual processo de recuperação do papel do Estado na
economia: a lógica majoritária dentro do próprio grupamento, que é voluntarista
e muito pouco política, baseada em “ocupar espaços” e “usar os recursos”,
adágios que são reiterados em qualquer conversa com seus membros de referência.
Essa
lógica interna pode ser resumida no que disse a esse cronista um jornalista da
agência Télam, recentemente incorporado, e dirigente de La Cámpora:
“O
partido que vence legitimamente as eleições apropria-se de recursos do Estado,
que têm de ser usados para levar adiante o programa do partido.” A tese visava a
justificar a censura e o pensamento único imperantes na agência estatal de
notícias a qual, para o redator das hostes de Máximo Kirchner [filho de Hector e
Kristina e líder de La Cámpora], “tem de ser o braço comunicacional do Governo”.
Não
é excepcionalmente grave que um camporista permita-se semelhante audácia teórica
sobre a agência estatal de notícias, porque o jornalismo não deixa jamais de ser
atividade econômica intimamente associada ao poder e irrelevante, além da alguma
relevância que possa ter no plano simbólico e político. Muito mais nocivo foi o
choque frontal entre os pais fundadores do camporismo de Aerolíneas (entre os
quais, deve-se dizer, militava Kicillof) e os sindicatos de aeronautas.
Os
aeronautas entenderam que os camporistas ajudaram a Direita a atacar o Estado –
destacando-se que, com Marsans, o fisco também perdeu caudais de dinheiro. E o
choque também expôs a incapacidade dos funcionários da jovem guarda camporista,
que não conseguiram incorporar os trabalhadores na gestão estatal de um serviço
público chave, para torná-lo mais eficiente, e sem que, para isso, os
sindicalizados tivessem seus direitos atropelados.
Para
retomar o posto de orientador do investimento e fator de peso na economia, e
para avançar, plantando mourões que não possam ser muito facilmente revertidos,
o Estado deve olhar-se ao contrário: sobrepondo-se a qualquer grupo governante
que passe pelo poder. Tem de aferrar-se ao cumprimento de objetivos e metas e
demonstrar a eficiência de novas hipóteses de gestão, que sejam transformadoras.
Isso não implica entregar tudo aos tecnocratas com diplomas importados.
Significa, bem ao contrário, construir novas formas de participação popular na
economia e aproveitar o potencial que ainda há numa sociedade relativamente mais
educada e produtiva e com inteligência social menos fraturada que a de outros
países.
Para
tanto, seria preciso ao mesmo tempo, procurar o modo mediante o qual os
trabalhadores possam converter-se em sujeitos políticos e superar a barreira de
seu desenvolvimento individual e coletivo sujeitado aos desígnios de um
empresariado impotente e menos nacionalista que os do resto da região.
A
classe dirigente sabe que se consome em esforços para reverter os índices de
confiança na intervenção estatal que continuam a aparecer na pesquisa da Universidad Di Tella. Ou para conseguir,
no mínimo, que o Estado continue a ser o que sempre foi até agora: mero
garantidor de negócios e contratos. Por isso se preocupará cada vez mais com
atacar com cada vez mais virulência os flancos mais fracos da até agora tímida
contraofensiva estatal: a “politização” da administração pública; a ausência de
meritocracia; a ineficiência e o critério de “ocupar espaços” a golpes de puro
voluntarismo militante, com ética e épica mais típicas de soldados que de
políticos.
Se insistir nesses vícios, La
Cámpora nada conseguirá além de aplainar o caminho da restauração e da demolição
do que começou a mudar dentro do Estado argentino depois que chegou ao centro do
poder o ministro Axel Kicillof, seu primeiro filho pródigo [8].
Notas
dos tradutores
[1]
O artigo aqui traduzido pareceu-nos interessante, porque o grupo “La Cámpora”
parece ser, no geral, muito semelhante ao Partido dos Trabalhadores (PT) do
Brasil, apesar das muitas diferenças.
No
Brasil ainda não há pensamento forte e politicamente bem articulado sobre o PT
(se há, os petistas não o conhecem). O PT e os petistas não têm história, filhos
(hoje, de fato, já também netos) que são do buraco negro que foram os mais de 30
anos de ditadura no Brasil, seguidos de uma “redemocratização” que nasceu
“cenográfica” e assim prossegue, mais “cenográfica” e formal que real e efetiva,
até hoje. Os petistas só conhecem, do PT, a história imaginada e incansavelmente
repetida, desde o golpe de 1964, pelos jornais da imprensa-empresa do Grupo GAFE
(Globo-Abril-FSP-Estadão) e pela universidade que, no Brasil, é conservadora,
quando não é, só, reacionária.
Não
é difícil ver nesse ministro Kicillof – do qual jamais havíamos ouvido falar,
porque a imprensa-empresa brasileira só noticia, da Argentina, o futebol e os
golpes antidemocráticos – o que bem pode ser uma versão à argentina do ministro
José Dirceu.
A
diferença de destino entre ambos, hoje, pode, sim, dar boa pista de outras
diferenças entre a vida política na Argentina e no Brasil. Por exemplo, a
imprensa-empresa argentina é ma-ra-vi-lho-sa, se comparada à brasileira – que é
a pior do mundo. (E deve haver por aí mais pistas; é procurar).
Assim,
entendemos que, servindo-se desse artigo como ‘roteiro’ – e começando a pensar
menos pelas semelhanças e mais pelas diferenças (umas, ao que parece,
superficiais; outras, talvez mais profundas, a serem ainda demarcadas e
analisadas) –, talvez seja possível começar a construir reflexão de melhor
qualidade histórico-política, também sobre o Partido dos Trabalhadores
(PT).
[2] Pode-se
ler sobre a história do movimento “La Cámpora” (que é
tão odiado pela imprensa-empresa argentina, quanto pela
brasileira). Para uma atualização, ver “Grupo
jovem La Cámpora ganha aura de ministério no governo argentino”,
27/4/2012. Essa é matéria produzida e distribuída pelo grupo Globo e, portanto,
deve
ser lida com todas as reservas. Mas aproveitam-se de lá alguns nomes, a
partir dos quais se pode fazer melhor pesquisa e encontrar melhor informação.
[3] Axel
Kicillof é Vice-Ministro de
Economia da Argentina desde 2011; foi nomeado dia 16/4/2012, com Julio de Vido,
co-administrador da YPF, depois de
nacionalizada.
[4] Hector
Cámpora, peronista histórico, foi presidente da Argentina durante
dois meses, de maio a julho de 1973, nos meses que antecederam a volta de Perón
à Argentina. Foram meses de muitas lutas em toda a América Latina:
Allende (que foi à posse de Cámpora) foi assassinado dois meses depois, em
setembro de 1973.
[5]
O Comício da Vila Euclides aconteceu dia 13/3/1979. O PT foi fundado dia
10/2/1980.
[6]
Se o Partido dos Trabalhadores (PT), no Brasil-2012, exigisse “mudanças cada vez
mais radicais”, aí estaria perfeita descrição também do
PT.
[7]
Também se aplica às críticas da oposição ao PT, no Brasil. A crítica ao
comportamento dito “ético”, afinal, também é “crítica pela forma”, muito mais
que por algum “conteúdo” político.
[8]
No Brasil, o Ministro José Dirceu, filho pródigo do PT, nem chegou ao centro do
poder: foi decapitado a caminho.
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