“Mensalão” e o tribunal de exceção
Ari Silveira, via The Brazilian Post
Saudado pela mídia oposicionista como uma espécie de redenção do Brasil, um divisor de águas da ética na política brasileira, o julgamento do escândalo conhecido como “mensalão” deverá ser questionado nas cortes internacionais de Justiça. De uma hora para outra, líderes históricos do Partido dos Trabalhadores, com uma trajetória de luta contra a ditadura militar, quando sobreviveram à prisão, à tortura e ao exílio, passaram a ser tratados em redes sociais como “os maiores vilões da história do Brasil”.
Para entender melhor esse imbróglio, voltemos a 2005, terceiro ano do primeiro mandato do governo Lula. Denúncias de corrupção nos Correios atingiram um dos partidos da base de sustentação do governo, o PTB, que antes da eleição de Lula sempre estivera aliado aos adversários do PT. Acuado, o então presidente petebista, deputado Roberto Jefferson (RJ), deu uma entrevista bomba, denunciando um suposto esquema de pagamento de mesadas a parlamentares que votassem pela aprovação de projetos de interesse do governo, o chamado “mensalão”. O caso virou tema de uma CPI mista no Congresso e deu à oposição munição para atacar o governo e sonhar com a deposição do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
As investigações revelaram que havia um esquema de distribuição de verbas não contabilizadas de campanha para parlamentares do PT e de partidos aliados, por intermédio do publicitário mineiro Marcos Valério, que ficou conhecido como Valerioduto. Nunca ficou demonstrada, porém, uma relação direta entre esses pagamentos e o resultado de votações no Congresso, embora essa tenha sido a tese que prevaleceu nas investigações e no julgamento. Essa versão tem inconsistências: por que parlamentares do partido do presidente precisariam ser comprados para votar com o governo? E como explicar que até parlamentares da oposição ajudaram a aprovar as propostas governistas? Teriam eles também recebido a mesada, o “mensalão”?
As investigações mostraram ainda que o esquema de Marcos Valério era anterior ao governo petista. Começou no PSDB mineiro, em 1998, e envolveu recursos da campanha do senador tucano Eduardo Azeredo ao governo de Minas e do presidente Fernando Henrique Cardoso à reeleição. No entanto, por parte da mídia, era gritante a diferença de tratamento entre o “mensalão do PT” e o dos tucanos, que ficou conhecido como o “mensalão mineiro”. Vale destacar que esse tipo de distribuição de verba entre partidos aliados é prática constante na política brasileira e não um escândalo isolado, como a grande mídia tenta nos fazer crer.
Além da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, a Polícia Federal também apurou o caso. As investigações foram encaminhadas ao Ministério Público Federal e o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, formalizou a denúncia ao Supremo Tribunal Federal (STF). Sem provas concretas, apenas com base em indícios e depoimentos de acusados, Gurgel acusou José Dirceu, ex-ministro-chefe da Casa Civil, de chefiar o esquema. A denúncia também incriminou o ex-presidente do PT José Genoíno. No Supremo, o relator do processo foi o ministro Joaquim Barbosa, que aceitou os argumentos de Gurgel e pediu a condenação de todos os réus.
Para saciar a sanha condenatória dos setores conservadores, a maioria dos ministros do STF foi buscar no Direito alemão um instrumento chamado “Teoria do Domínio do Fato”, que acabou sendo usado basicamente para condenar Dirceu e Genoíno por corrupção com base em meros indícios e ilações. Pela teoria, se o dirigente partidário sabia das irregularidades e não usou o seu poder para impedir que elas ocorressem, ele também pode ser condenado. O problema, conforme explica o jurista Pedro Abramovay, da FGV/Rio, em artigo publicado na Folha de S.Paulo, é que, mesmo se considerando essa teoria, seria necessário provar que o réu sabia, que tinha poder sobre os atos ilícitos e que sua vontade foi fundamental para que eles ocorressem. E as provas concretas não apareceram, apenas “tênues indícios”.
Também foi questionado o fato de não ter sido desmembrado o processo, já que alguns réus tinham “foro privilegiado”, ou seja, só poderiam ser julgados pelo Supremo, em razão do cargo que ocupavam, e outros não. Diferentemente do que ocorreu no processo do mensalão do PSDB, todos os réus foram julgados pelo STF, que é a corte de última instância, sem possibilidade de recurso a uma instância superior.
Além disso, apesar das evidências contrárias, prevaleceu entre os ministros do STF a interpretação de que o escândalo foi um esquema de compra de votos em votações pontuais, e não um esquema de compra de apoio parlamentar mediante distribuição de sobras do caixa 2 de campanha – não que esta hipótese seja menos criminosa, mas é que ela desmontaria toda a argumentação usada para incriminar Dirceu e Genoíno. Outro ponto questionável foi a interpretação de que a bonificação por volume (BV), prática usual de veículos de comunicação que oferecem descontos às agências pelo volume de peças publicitárias veiculadas de todos os clientes, é desvio de dinheiro público quando envolve verba de um cliente estatal, mesmo que de direito privado (empresa pública ou sociedade de economia mista). O dinheiro do Valerioduto vinha de campanhas da Visanet, atual Cielo, que tinha entre seus acionistas o Banco do Brasil.
A condenação de Genoíno e Dirceu abre um precedente perigoso. No Direito brasileiro, todos costumavam ser considerados inocentes até prova em contrário. O ônus da prova era de quem acusava. Uma condenação sem provas é uma ameaça ao Estado de Direito, que gera uma enorme insegurança jurídica.
Vamos ver como é que o Supremo vai se comportar daqui para a frente. O que se espera agora do Supremo é que os outros escândalos a serem apurados e julgados, como o do mensalão do PSDB, sejam tratados com o mesmo rigor, caso contrário ficará provado que o caso do “mensalão” teve um julgamento de exceção. Não se pode admitir que a seletividade das denúncias na mídia, o velho hábito hipócrita de usar dois pesos e duas medidas, continue contaminando a Justiça.
Os 10 maiores escândalos
A oposição e a quase totalidade da mídia tentaram vender o caso como “o maior escândalo da corrupção da história”, algo que os números, por si só, desmentem.
Enquanto a Veja – que ainda é a revista semanal de maior circulação no País, mas vem perdendo leitores em grande parte por causa do descompromisso com a verdade factual e pelo engajamento escancarado na campanha contra o PT e a esquerda em geral – e seus blogueiros tentam sustentar essa versão, uma reportagem da revista Mundo Estranho, da mesma Editora Abril, demonstra que o “mensalão” ocupa um modesto 9º lugar entre os 10 maiores escândalos de corrupção dos últimos 20 anos com um valor de aproximadamente R$55 milhões (mas que poderia chegar a R$100 milhões).
À frente aparecem o dos “sanguessugas” (2006), com R$140 milhões; da Sudam (1999), com R$214 milhões; da Operação Navalha (2007), com R$610 milhões; dos “anões do Orçamento” (1992), com R$800 milhões; do TRT/SP (1999), de R$923 milhões; do Banco Marka (1999), com R$1,8 bilhão; dos “vampiros” (2004), de R$2,4 bilhões; e das contas CC5 do Banestado (2000), com um rombo de R$42 bilhões.
O ranking da Mundo Estranho não inclui a privataria tucana, esquema de privatizações fraudulentas que deixou um prejuízo de R$100 bilhões aos cofres públicos no governo FHC (1995-2002), o equivalente a pelo menos mil “mensalões”.
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