Quem não se diria um liberal diante da escravidão? Quem não defenderia a causa do capitalismo e da possível ascensão social em face dos estamentos feudais e aristocráticos que transformavam o nascimento em destino? Ética do trabalho, livre concorrência, meritocracia: que valores nos poderiam parecer mais universais?
Por Flávio Ricardo Vassoler*, na Carta Maior
Cenas: The godfather
Meados do século 19. Navios negreiros cruzam o Atlântico rumo ao Brasil. God save the Queen, Deus salve a Rainha: a Inglaterra, a polícia dos mares, ministra aulas práticas de trabalho assalariado ao estancar o fornecimento de escravos. Ganharás o pão com o suor do teu rosto.
O império ao longo de cujo horizonte o sol jamais se põe: eis a forma pela qual o império colonial inglês se autoemulava. Do Extremo Oriente à América, o sol jamais conseguia se esconder das possessões da Rainha Vitória.
O monopólio não é apenas a má consciência do liberalismo. O cartel pressupõe a livre concorrência: “venha trabalhar conosco!”
Estados Unidos da América, pátria das oportunidades, berço do liberalismo militante e anticolonial. Berço do self made man, o homem que se faz por si mesmo, o empreendedor. A formiga trabalhadora em face da cigarra monárquica. O sonho americano apregoa que o liberalismo se confunde com o próprio ímpeto de felicidade do homem.
O monopólio não é apenas a má consciência do liberalismo. O cartel pressupõe a livre iniciativa: “venha trabalhar para nós!”
Michael Corleone, o mafioso imortalizado por Al Pacino em O Poderoso Chefão (1972), direção de Francis Ford Coppola, é o maior leitor de Sir Adam Smith (1723-1790) e Jean de La Fontaine (1621-1695).
Enquanto o autor de A Riqueza das Nações concebe belas analogias newtonianas para dizer que as relações de mercado, como em um campo gravitacional, são regidas pela batuta da Mão Invisível em busca do equilíbrio, o carrasco beija a mão do Padrinho antes de ir ao mercado. Na era da livre iniciativa, a democracia transforma o coletor de impostos do rei em mais um assalariado.
A máfia não é apenas a má consciência do liberalismo. A máfia amputa a Mão Invisível.
Enquanto o criador da fábula da cigarra e da formiga narra que os primórdios do capitalismo transformam a castração do trabalho em segunda natureza dos homens ao condenar a cigarra aristocrática à morte invernal diante da formiga empreendedora que se mutila para sobreviver, Michael Corleone entende que o formigueiro precisa de um cão de guarda.
A máfia não é apenas a má consciência do liberalismo. A máfia é o próprio liberalismo sempre que as abstrações da livre concorrência precisam percorrer o corredor polonês da História. Sempre.
Não é à toa que Coppola dá início à trilogia d’O Poderoso Chefão com a passagem de poder de Marlon Brando a Al Pacino. Vito Corleone, o Pai, é o efetivo self made man. Michael, o Herdeiro, representa as multinacionais, a máfia como metástase, a aniquilação dos rivais.
Consta que a Royal Air Force, a Força Aérea da Rainha, levou à Alemanha de Hitler as noites brancas. As blockbusters, também conhecidas como arrasa quarteirões, eram bombas incendiárias que escarneciam da luz da lua. Michael Corleone nos ensina que o liberalismo inglês jamais se esqueceu de Nero. Cinéfilo inveterado, publicitário diletante e exímio filósofo da história, Michael Corleone considera que Blockbuster daria um ótimo slogan para sua franchising. Ele só não sabe, ainda, em que ramo atuar. A dúvida do Padrinho não decorre de insegurança. Afinal, que ramo do mercado não acolheria a blockbuster?
Blockbuster, a luva da Mão Invisível.
Quando Michael Corleone está no auge do poder, ele entende que é chegada a hora de misturar água e óleo: seus negócios precisam se tornar legítimos, sua trajetória empresarial precisa ser estudada em cursos de MBA. Ocorre que Joey Zaza, um empresário da nova generação, um mafioso pós-liberalismo, está incomodado com o monopólio corleônico. Ele não aceita que Michael Corleone se exima da máfia para passar a ser capa de revista. Ele quer a livre concorrência, ele quer que Michael Corleone abra a Mão Invisível. Como bom aluno da Escola Histórica do Liberalismo, Joey Zaza entende que é chegado o momento de ablockbuster voltar a ensinar a arte da partilha.
O Padrinho reúne os chefes das famílias mafiosas em um hotel de luxo. O Michael Corleone não quer mais apadrinhar cassinos e bordéis. “Para que eu me torne o empresário do ano, cada um de vocês receberá a sua parte de acordo com a participação na holding Corleone”. Todos se mostram sumamente felizes, Michael está prestes a limpar o nome da família Corleone, mas Joey Zaza entende que o liberalismo precisa da sabedoria do agricultor que lança mão do incêndio como prenúncio para a plantação.
Blockbuster, terra arrasada.
Joey Zaza aproveita o encontro dos mafiosos e, após simular um desentendimento com o Padrinho, deixa a luxuosa sala de reuniões encimada por uma cúpula de cristal para que um helicóptero comece a metralhar a velha geração.
A Mão Invisível salva Michael Corleone do atentado. Todos à sua volta querem acabeça de Joey Zaza. Todos vociferam contra “o jovem canalha que não respeita a tradição!” Súbito, o Padrinho silencia o clamor que o rodeia com a quintessência do liberalismo, o 11º mandamento que (re)produz a riqueza das nações:
− Nunca odeiem o seu inimigo. Nunca. O ódio entorpece a razão. O ódio embaralhao cálculo. Amigos próximos; inimigos à distância de um abraço. It’s all about business, falemos de negócios. Eu respeito o que Joey Zaza fez. O novo aniquila o velho. É a lei da natureza. É a lei do empreendedorismo. Qual a lição mais primordial da História? (Michael Corleone pigarreia para aprumar a voz antes de gravar a lápide da livre iniciativa.) Em verdade, em verdade vos digo: se a História tem algo a nos ensinar, caríssimos, é que qualquer um pode ser morto. Ninguém é intocável. Eis o afago da Mão Invisível.
*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios).
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