24/1/2013, M K 
Bhadrakumar*, Asia Times Online 
 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Diz-se 
que “gato escaldado tem medo de água fria”. Rússia e China alegam que já foram 
escaldadas: quando o ocidente virou de cabeça para baixo a Resolução n. 1.973 do 
Conselho de Segurança da ONU e invadiu a Líbia. Moscou e Pequim, escaldadas, 
cuidaram de impedir que o ocidente repetisse na Síria o mesmo “golpe da Líbia”. 
O ocidente apresentou sucessivos esboços de resoluções sobre a Síria. China e 
Rússia combateram incansavelmente contra todas eles. 
Por 
isso, precisamente, surpreende que, agora, os dois países não tenham previsto o 
que estava por vir e veio. E acabaram caindo outra vez na mesma arapuca, dessa 
vez, no Mali. 
Curiosamente, 
nem Moscou nem Pequim comentaram até agora a intervenção francesa no Mali, que 
chegou como fato consumado light e em seguida, rapidamente, se 
metamorfoseou, durante a semana passada, em empreitada ocidental concertada na 
África. A mãe de todas as ironias é que a empreitada no Mali é, em vários 
sentidos, efeito direto da intervenção ocidental na Líbia, que Moscou e Pequim 
condenaram como ato ilegal. 
Estamos 
ainda nos primeiros dias, e Moscou e Pequim bem podem estar à espera do 
resultado do trabalho das marés. Especialistas russos e chineses estimam que a 
missão francesa terá de recuar e será improdutiva. 
Mas, 
simultaneamente, Paris anunciou, para imenso espanto de muitos, que Moscou 
“oferecera meios de transporte” para as tropas francesas a serem enviadas ao 
Mali. A Rússia nem confirmou, nem negou. O anúncio francês aconteceu depois de 
uma conversa por telefone entre os dois ministros de Relações Exteriores, no 
sábado. 
Fato 
é que a intervenção ocidental no Mali tem implicações na política das grandes 
potências e na coordenação entre Rússia e China em questões regionais. Há 
implicações também para a “Primavera Árabe” – e, no curto prazo, também envolve 
e atinge a Síria. 
![]()  | 
| Amadou Haya Sanogo | 
A 
França alega que respondeu a um aflito chamado do atual governo do Mali. Mas em 
março do ano passado, houve um golpe de Estado no Mali: um capitão do exército 
do Mali treinado nos EUA, Amadou Haya Sanogo, derrubou o presidente eleito. 
Apesar 
de não ser militar de alta patente, Sanogo foi visitante assíduo dos EUA – lá 
esteve nada menos que sete vezes, nos últimos oito anos. Não há dúvidas de que 
Sanogo contava com o apoio de potências estrangeiras poderosas. A partir de 
março, houve tantos golpes e contragolpes no Mali que se perde a conta; os 
golpes sempre comandados pelo mesmo capitão Sanogo, treinado e armado nos EUA. 
Assim 
sendo, a França fala de governo imposto por golpe, como se falasse de governo 
legal e legítimo. A França sequer se incomodou com esperar algum mandato da ONU. 
A Resolução do Conselho de Segurança, de dezembro passado, é bem clara: ordena 
que uma força africana liderada por africanos entre em ação; e o CS esperava ter 
a expedição pronta em setembro de 2013, porque a tal força africana foi treinada 
e equipada pela ONU. 
Mas a retórica já ofusca as 
realidades mais duras. O Primeiro-Ministro britânico disse em 20/1/2012, BBC – 
“Cameron: North Africa terrorist 
threat “could last decades’”
![]()  | 
| David Cameron | 
O 
que temos pela frente é um grupo terrorista extremista, islamista, ligado à 
al-Qaeda. Quer destruir nosso modo de vida, acredita em matar o maior número 
possível de seres humanos. Assim como temos de enfrentá-los no Paquistão e no 
Afeganistão, assim o mundo tem de apresentar-se unido para enfrentar a ameaça 
que cresce no Norte da África. 
É 
ameaça global e exige resposta global. Exigirá resposta ao longo de anos, talvez 
décadas, não meses. Exige resposta paciente e dolorosa, dura mas inteligente, 
mas, sobretudo, exige determinação de ferro, o que mostraremos ao longo dos 
próximos anos.
Reconquista 
total 
De 
fato, as potências ocidentais estão fazendo o cerco às carroças locais. O 
Pentágono revelou que seus aviões militares C-17 estão fazendo o transporte das 
tropas e dos equipamentos franceses, e que já considera deslocar os 
aviões-tanque, de reabastecimento aéreo. 
O 
Secretário de Defesa dos EUA, Leon Panetta disse que os EUA estão oferecendo 
inteligência. Da Itália partiram dois aviões C-130 de transporte e um Boeing 
KC-767A; e que já foram enviados de 15 a 24 “especialistas” para o Mali. O 
Canadá enviou pesado avião de transporte militar e o Reino Unido garantirá a 
“logística de assistência aérea”. 
![]()  | 
| Jean Yves Le Drian | 
Já 
partiram 2.000 soldados franceses, e Paris está enviando mais 500. O Ministro da Defesa, Le Drian disse que “o objetivo é total reconquista do Mali”. Repete a 
declaração do presidente François Hollande, que disse que os franceses 
permanecerão no Mali pelo tempo necessário para derrotar o terrorismo. 
Além 
de tudo mais, a conversa sobre a ameaça da al-Qaeda é puro jogo de cena. O 
conflito no Mali tem todas as características de guerra civil, brotada de 
confrontos que se veem acontecer há muito tempo; só poderá ser resolvido por 
governo legítimo e estável, mediante soluções locais de governo e 
descentralização, e apoiado em sistema durável de desenvolvimento econômico. 
Importante 
especialista russo, Evgueni Korenddyasov, que foi embaixador da Rússia no Mali e 
atualmente dirige o Centro para Relações Rússia-África da Academia Russa de 
Ciências em Moscou, disse que:
A 
única solução possível terá de surgir de negociações locais sobre maior 
autonomia e mais plena representação política para os 
tuaregues.
Os 
corpos regionais – a União Africana e a Comunidade Econômica nas Nações da 
África Ocidental – chegaram a tentar conseguir da ONU um pacote amplo de medidas 
para resolver a crise no Mali, e o Conselho de Segurança reconheceu formalmente 
a necessidade de reconciliação política. Mas então, do dia para a noite, a coisa 
toda mudou, a favor da ação militar do ocidente. 
Todos 
os especialistas têm muitas dúvidas sobre os verdadeiros motivos da invasão 
francesa. Sim, é verdade, há grupos da al-Qaeda, que foram armados pelas 
potências ocidentais e serviram a interesses ocidentais como soldados em campo 
durante a ‘'mudança de regime'’ na Líbia. Esses, todos sabem, espalharam-se pelos 
países vizinhos. Além da Argélia e do Mali, pelo menos cinco outros países da 
África Ocidental foram afetados – Mauritânia, Gana, Niger, Burkina Faso e 
Nigéria. 
Mas... 
há longo capítulo da história moderna que ensina que o ocidente sempre usou 
forças do islamismo radical para ajudar em seus propósitos geoestratégicos 
(aconteceu no Afeganistão, na Líbia e na Síria). As forças do islamismo radical, 
outras vezes, serviram como álibi para invasões militares ocidentais (por 
exemplo, outra vez, no Afeganistão). 
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| Localização do Mali no Noroeste da África | 
O 
Mali é país de vasto território na África, rico em petróleo, gás, ouro, cobre, 
diamantes e urânio. As usinas nucleares francesas usam, como combustível, urânio 
extraído das minas no Niger, vizinho do Mali. Não há qualquer dúvida de que a 
França tem importantes interesses estratégicos e econômicos na reunião. Já se 
ouvem as primeiras vozes dos que veem, nessa intervenção francesa no Mali, uma 
empreitada neocolonialista. O arcebisto de Accra chamou-a de “tentativa de 
colonização”. 
Por 
tudo isso, no mínimo, a intervenção ocidental no Mali já deveria ter gerado 
alguma reação de russos e chineses. No momento, provavelmente, os russos 
elaboram sobre três grandes questões. Primeiro, as relações entre Rússia e 
potências europeias já estão tensionadas. Moscou provavelmente hesita, sem 
querer exacerbar aquelas dificuldades. 
Em 
segundo lugar, por ironia, o Mali é uma Síria ao contrário. Os russos têm 
importantes investimentos geopolíticos na Síria; mas o Mali e o norte e o oeste 
da África são quintal dos europeus. Não por acaso, Paris (que assumiu discurso 
muito estridente sobre a Síria) cuidou de, antes, fazer contato com Moscou, 
sobre o Mali. 
No 
campo ideológico também, a Rússia e o ocidente veem-se, de repente, dizendo as 
mesmas coisas sobre o avanço do islamismo no Oriente Médio e no Norte da África, 
na sequência da “Primavera Árabe”. 
Minérios 
quentes 
A 
China, por sua vez, tem outros pensamentos profundos em mente – principalmente, 
seu conflito de interesses com o ocidente na África. A ansiedade em Pequim 
aparece, bem clara, em dura crítica contra a intervenção ocidental no Mali, 
publicada no Global Times na 3ª-feira. É assinada por He Wenping, 
diretora de Estudos Africanos, no Instituto de Estudos Oeste-Asiáticos e 
Africanos da Academia Chinesa de Ciências Sociais. Escreveu 
que:
![]()  | 
| He Wenping | 
A 
China tem determinados interesses no Mali, onde investe em inúmeros projetos. 
Não é necessariamente má ideia, do ponto de vista chinês, que a 
França decida enviar tropas, se isso estabilizar a região (...) Mas, apesar de 
alguns benefícios potenciais, há pelo menos uma causa que pode vir a gerar 
alarme – o envolvimentos de tropas francesas no Mali dará pretexto perfeito para 
legalizar um novo intervencionismo militar na África. 
Não 
se podem subestimar os interesses econômicos diretos da França no Mali (...). Um 
dos ônus dessa ação é que traz de volta memórias da “gendarmerie francesa” – o status 
colonial da França.
A 
grande pergunta é se os movimentos de política exterior coordenados entre Moscou 
e Pequim abraçarão também o teatro africano. 
![]()  | 
| Nikolai Patrushev | 
Logo 
depois de recentes consultas sino-russas sobre segurança estratégica em Pequim, 
dia 9/1, o secretário do Conselho Russo de Segurança, Nikolai Patrushev, revelou 
que os dois países planejam intensificar a cooperação no campo dos mísseis de 
defesa, como resposta ao crescente deslocamento de mísseis dos EUA para a 
região. Patrushev disse:
Todos 
estamos preocupados com os planos dos EUA de construir sistema global de mísseis 
de defesa, incluindo a região do Pacífico asiático. Nossos parceiros chineses 
partilham nossas preocupações. Já concordamos com coordenar nossas ações a esse 
respeito.
Mas 
a China tem apostas muito mais altas na África, que a Rússia. A China já 
ultrapassou EUA e Europa como maior parceiro comercial da África (US$160 
bilhões) e seus investidores puseram $15 bilhões na África, só no ano passado. A 
China quer muito os minérios de países do oeste, norte, e centro da África; e 
que o petróleo da África ocidental. Produtos agrícolas do Chad, Mali, Benin e 
Burkina Faso alimentam a massiva indústria têxtil chinesa. A África Ocidental é 
também importador chave de produtos chineses; a Nigéria aparece em primeiro 
lugar nessa lista de mercados importadores da China (42%). 
Como 
o artigo de Global Times anota, Pequim entende perfeitamente bem que o 
ocidente está embarcando numa estratégia de “contenção” na África mediante um 
simples movimento de retomar o controle das ex-colônias nas quais a China 
avançava. A questão é que o ocidente não pode competir com a China, porque não 
tem como oferecer mais do que a China já oferece às nações africanas. 
Os 
projetos transcontinentais chineses avançam na vanguarda do processo para criar 
blocos econômicos regionais, o que amplia a capacidade das nações africanas para 
ganhar espaços, na disputa contra as potências ocidentais e, assim, poder 
negociar sob condições mais favoráveis aos africanos. 
Em 
resumo: o espectro que ronda o ocidente é menos a al-Qaeda que a impossibilidade 
de o ocidente oferecer mais do que a China pode oferecer e já oferece: bons 
negócios para os interesses africanos locais e relacionamento de melhor 
qualidade e mais amplo, com os Estados africanos. 
![]()  | 
| Irina Filatova | 
Mas 
a política russa na África, comparada à chinesa, não tem rumo claro nem foco. 
Nas palavras de Irina Filatova, importante especialista russa em questões 
africanas, “a Rússia está interessada em desenvolver relações econômicas, mas 
tem pouco a oferecer. E o que tem a oferecer, ainda não sabe como oferecer.” 
O 
ex-presidente Dmitry Medvedev bem que tentou reverter essa tendência e até 
nomeou um enviado especial à África, para injetar nova energia e conteúdo no 
corpo da diplomacia russa. Depois de uma visita à Nigéria, Medvedev lamentou que 
a Rússia estivesse chegando “quase tarde demais”, na tarefa de engajar-se com a 
África. 
O 
movimento violento de exércitos ocidentais para dentro do Mali talvez sirva como 
novo sinal de alerta para Moscou: na vida e na política nada do que aconteça 
jamais acontece tarde demais.
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*MK Bhadrakumar foi
 diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na
 União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, 
Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do 
Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança 
para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.









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