A Comissão Eleitoral do Egito anunciou na tarde deste domingo 24 o nome do novo presidente do Egito. Com 13,2 milhões de votos (pouco mais de 51% do total), Mohammed Morsi, membro da Irmandade Muçulmana, se tornou o primeiro presidente civil do Egito, e também o primeiro escolhido democraticamente pelo povo. Dentro e fora do Egito há uma série de desconfianças sobre Morsi e a Irmandade, um grupo religioso fundamentalista cujas origens datam da década de 1920. Ambos têm uma enorme responsabilidade pela frente, e inúmeros obstáculos a enfrentar, mas a chegada do grupo ao poder pode ser boa para o Egito. A boa notícia mais clara é o fato de a junta militar que controla o Egito desde a queda de Mubarak (SCAF, na sigla em inglês) ter aceitado os resultados. O SCAF tem influência sobre tudo o que é estatal no Egito e não é diferente com a Comissão Eleitoral. Se os militares não quisessem Morsi como presidente, ele não estaria no cargo. Isso é um sinal muito óbvio de que, para o SCAF, o respeito à vontade popular era uma linha vermelha que não podia cruzar. Além de evitar a indignação da população com mais uma eleição fraudada (como ocorria no governo Mubarak), o reconhecimento serve para agradar ao governo dos Estados Unidos. De Washington, o Egito recebe, além de uma ajuda anual superior a 1 bilhão de dólares, pressão para que uma democratização genuína ao menos tenha início.
Em segundo lugar, a chegada de Morsi ao poder evita o retorno de aliados do antigo regime ao governo. O outro candidato no segundo turno era Ahmed Shafik, o último primeiro-ministro de Mubarak. Ex-chefe da Força Aérea, Shafik levaria junto com ele ao primeiro escalão diversos felool, como são conhecidos os remanescentes do antigo regime. Na prática, um governo de Shafik seria a manutenção do governo Mubarak e enterraria o movimento democrático iniciado em janeiro de 2011.
Soma-se a isso o fato de que as atitudes da Irmandade Muçulmana nas últimas décadas e, especialmente, no último ano, não indicam que o grupo e seu braço político, o Partido Liberdade e Justiça (PLJ), tenham qualquer intenção de transformar o Egito em uma teocracia. Em maio, o Instituto do Oriente Médio do Carnegie, um conceituado centro de estudos norte-americano, publicou um longo estudo sobre sobre o PLJ e concluiu que, por seus atos realizados até agora, o partido pode ser considerado moderado. A preocupação com este tema é tão grande que surgiu nas primeiras palavras de Gehad el-Haddad, porta-voz da campanha de Morsi, após o anúncio do resultado. “Morsi será o presidente de todos os egípcios. Os direitos das mulheres, dos cristãos, as liberdade civis e direitos humanos serão todos garantidos”, afirmou ele em entrevista à rede de tevê Al-Jazeera.
Cumprir essas promessas será um desafio enorme para Morsi. Durante sua campanha, ele prometeu nomear pelo menos um cristão e uma mulher para suas vice-presidências, além de tentar atrair figuras proeminentes e não religiosas para seu governo. Nos últimos dias, o nome do Nobel da Paz Mohammed el-Baradei surgiu como possível primeiro-ministro. Morsi cogitou até mesmo deixar o PLJ, o partido da Irmandade Muçulmana, para mostrar que não pretende fazer avançar apenas os interesses de seu grupo.
O segundo grande desafio de Morsi será o relacionamento de seu governo com a junta militar. Hoje, o Egito pode ser considerado um país em estado de “golpe branco”. Nos últimos dias, os militares reativaram o direito de prender pessoas sem acusação, mostraram sua influência sobre o Judiciário e tomaram para si o poder Legislativo. Assim, vão comandar o processo de desenvolvimento da nova Constituição. Será este documento a diretriz para a forma como Morsi poderá atuar. Se os parlamentares constituintes (que ainda não foram nomeados) produzirem algo que destoe dos interesses dos militares, a junta estará pronta para intervir. A tendência é que os militares queiram manter total controle sobre os ministérios da Defesa e das Relações Exteriores, bem como seus interesses econômicos (que são muitos) intactos. Para Morsi sobrará a duríssima missão de tentar reconciliar um dividido Egito (Shafik teve apenas 900 mil votos a menos que o irmão muçulmano) e cuidar de uma economia totalmente em frangalhos, na qual metade da população vive na pobreza extrema.
Nos últimos 16 meses, o Egito avançou muito. Derrubou um ditador, viu o surgimento de diversos partidos políticos, viu o jornalismo independente florescer e realizou eleições livres. Tudo isso, no entanto, ocorreu em meio a retrocessos e serviu apenas para que o processo de democratização tivesse início. Para que a revolução de janeiro de 2011 tenha sucesso, o Egito precisará construir e fortalecer as instituições capazes de garantir a existência da democracia. As urnas mostraram que a Irmandade Muçulmana é o grupo político mais popular e organizado do país e, ao chegar ao poder, ela dá sinais de que deseja fazer um governo inclusivo e moderado, sem alienar minorias. É uma responsabilidade enorme nas mãos do grupo e, se os militares deixarem, é Mohammed Morsi quem deverá mostrar capacidade para cumpri-la.
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