Do Viomundo
Militarizando a América Latina
por CONN HALLINAN, no Counterpunch
Dezembro passado marcou o centésimo nono aniversário da Doutrina
Monroe, a declaração política do presidente James Monroe, em 1823, que
essencialmente tornou a América Latina um quintal exclusivo dos Estados
Unidos. E se alguém tem alguma dúvida sobre o que estava no coração da
doutrina, desde 1843 os Estados Unidos intervieram no México, Argentina,
Chile, Haiti, Nicarágua, Panamá, Cuba, Porto Rico, Honduras, República
Dominicana, Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Uruguai, Granada,
Bolívia e Venezuela. No caso da Nicarágua, nove vezes; Honduras, oito.
Algumas vezes a intrusão dispensou as gentilezas diplomáticas: a
infantaria dos Estados Unidos assaltou o castelo de Chapultepec na
cidade do México em 1847, os fuzileiros navais caçaram insurgentes na
América Central e o general “Black Jack” Pershing perseguiu Pancho Villa
em Chihuahua em 1916.
Em outros casos a intervenção foi tramada nas sombras — um pagamento
secreto, um piscar de olhos para alguns generais ou o estrangulamento
econômico de algum governo que teve a temeridade de propor reforma
agrária ou redistribuição da riqueza.
Por 150 anos a história desta região, que se espalha por dois
hemisférios e inclui de tundras congeladas a desertos escorchantes e
florestas tropicais, foi em grande parte determinada pelo que acontecia
em Washington. Como o velho ditador mexicano Porfirio Diaz colocou certa
vez, a grande tragédia da América Latina era ficar tão longe de Deus,
tão perto dos Estados Unidos.
Mas a América Latina de hoje não é a mesma de 20 anos atrás. Governos
de esquerda ou progressistas dominam a maior parte da América do Sul.
A China substituiu os Estados Unidos como o maior parceiro comercial
da região e o Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Venezuela se
juntaram em um mercado comum, o Mercosul, que é o terceiro maior do
planeta.
Outras cinco nações são membros-associados. A União das Nações
Sul-Americanas e a Comunidade de Estados Latino Americanos e do Caribe
deixaram de lado aquela relíquia da Guerra Fria, a Organização dos
Estados Americanos. A penúltima inclui Cuba, mas exclui os Estados
Unidos e o Canadá.
Na superfície, a Doutrina Monroe parece estar morta.
Motivo pelo qual as políticas do governo Obama em relação à América
Latina parecem tão perturbadoras. Depois de décadas de paz e
desenvolvimento econômico, por que os Estados Unidos estão engajados em
um grande investimento militar na região? Por que Washington virou os
olhos para dois golpes bem sucedidos — e uma tentativa — nos últimos
três anos? E por que Washington se distancia das práticas predatórias
dos chamados fundos-abutre, cuja cobiça ameaça desestabilizar a economia
argentina?
Como aconteceu na África e na Ásia, o governo Obama militarizou sua
política externa em relação à América Latina. Washington espalhou uma
rede de bases da América Central à Argentina. A Colômbia agora tem sete
grandes bases e há outras instalações militares dos Estados Unidos em
Honduras, Costa Rica, Equador, Guatemala, Panamá e Belize.
A recém-reativada Quinta Frota patrulha o Atlântico Sul. Os
fuzileiros navais estão na Guatemala perseguindo traficantes de drogas e
as Forças Especiais estão em Honduras e na Colômbia. Quais são suas
missões? Quantos homens são? Não sabemos porque muito disso fica obscuro
sob o manto da “segurança nacional”.
O investimento militar é acompanhado da tolerância por golpes. Quando
os militares e a elite hondurenha derrubaram o presidente Manuel Zelaya
em 2009, em vez de condenar a derrubada o governo Obama fez lobby — sem
sucesso, na maior parte das vezes — para que as nações latinoamericanas
reconhecessem o governo instalado ilegalmente.
A Casa Branca também ficou silente, no ano seguinte, sobre a
tentativa de golpe contra o esquerdista Rafael Correa no Equador e se
negou a condenar o golpe “parlamentar” contra o presidente progressista
Fernando Lugo, o chamado Bispo Vermelho, no Paraguai.
Memórias obscuras de golpes maquinados e apoiados pelos Estados
Unidos no Brasil, Argentina, Chile e Guatemala são difíceis de esquecer
no continente, como um recente comentário do ministro da economia da
Argentina deixou claro. Chamando de “colonialismo legal” a decisão de
uma corte de apelação dos Estados Unidos pela qual Buenos Aires deveria
pagar U$ 1,3 bilhão em danos a credores de dois fundos-abutre, o
ministro disse que “tudo o que precisamos agora é que o [juiz Thomas]
Griesa nos mande a Quinta Frota”.
Muito do investimento militar dos Estados Unidos acontece por trás da
retórica da guerra contra as drogas, mas uma olhada na posição das
bases na Colômbia sugere que a proteção de oleodutos, não os
traficantes, tem mais a ver com as ordens recebidas pelas Forças
Especiais. O Plano Colômbia, que já custou perto de U$ 4 bilhões, foi
concebido e defendido pela companhia de petróleo e gás Occidental
Petroleum, de Los Angeles.
A Colômbia tem atualmente cinco milhões de refugiados, o maior número
do mundo. Também é um lugar muito perigoso se você é sindicalista,
apesar de Bogotá supostamente ter instituído o Plano de Ação do
Trabalho, como parte do tratado de livre comércio que fechou com
Washington. Mas desde que o governo Obama declarou oficialmente que o
governo colombiano cumpre as regras do Plano, os ataques contra
sindicalistas aumentaram.
“O que aconteceu desde isso [os Estados Unidos deram sua declaração]
foi um surto de represálias contra sindicalistas e ativistas, que
realmente acreditavam no Plano”, diz Gimena Sanchez-Garzoli, de uma
organização que monitora a América Latina, WOLA. A Human Rights Watch
chegou à mesma conclusão.
A guerra contra as drogas tem sido um desastre completo, como um
crescente número de líderes latinoamericanos está concluindo. Pelo menos
100 mil pessoas morreram ou desapareceram apenas no México e o comércio
de drogas corrompe governos, militares e forças policiais da Bolívia
aos Estados Unidos. Antes que a gente pense que se trata de um problema
latinoamericano, vários policiais do Texas foram recentemente indiciados
por ajudar a transportar drogas do México para os Estados Unidos.
O governo Obama deveria se integrar aos líderes regionais que
decidiram examinar a questão da legalização e desmilitarização da guerra
contra as drogas. Estudos recentes demonstram que há um grande aumento
da violência assim que os militares se tornam parte do conflito e que,
como Portugal e a Austrália deixaram claro, a legalização não leva a um
aumento no número de viciados.
Uma das grandes iniciativas dos Estados Unidos na região é o Acordo
de Livre Comércio da América do Norte, NAFTA, ainda que tenha causado
aumento da pobreza, do deslocamento social e mesmo do tráfico de drogas.
Em seu livro “Drug War Mexico”, Peter Walt e Roberto
Zapeda apontam para a desregulamentação que abriu as portas também para
traficantes, um perigo sobre o qual a Alfândega dos Estados Unidos e a
Drug Enforcement Administration (DEA) haviam sido alertadas desde 1993.
Ao reduzir ou eliminar tarifas, o NAFTA inundou a América Latina com
milho barato, subsidiado pelo governo dos Estados Unidos, o que colocou
milhões de pequenos fazendeiros na falência, forçando-os a imigrar,
enchendo cidades já estressadas ou a aderir à produção de plantas mais
lucrativas — maconha e cocaína. Desde 1994, quando o NAFTA entrou em
vigor, até 2000, cerca de 2 milhões de fazendeiros mexicanos deixaram
suas terras e centenas de milhares de pessoas não documentadas imigraram
para os Estados Unidos por ano.
De acordo com a ONG de ajuda humanitária Oxfam, o tratado de livre
comércio com a Colômbia vai resultar em redução de renda para 1,8 milhão
de fazendeiros locais e perda para entre 48 e 70% dos 400 mil
colombianos que hoje trabalham ganhando o salário mínimo local,
equivalente a 328,08 dólares.
“Comércio livre” evita que países emergentes protejam suas próprias
indústrias e recursos e os jogam contra o poder industrial dos Estados
Unidos. Este campo desigual resulta em pobreza para os latinoamericanos,
mas enormes lucros para as corporações norte-americanas e algumas das
elites locais.
A Casa Branca continuou a demonização de Hugo Chávez da Venezuela que
herdou do governo Buch, apesar do fato de Chávez ter sido eleito por
grandes margens e seu governo ter promovido uma grande redução da
pobreza. De acordo com as Nações Unidas, a desigualdade na Venezuela é a
mais baixa da América Latina, a pobreza foi cortada pela metade e a
extrema pobreza em 70%. Estes tipos de números são coisas que o governo
Obama supostamente comemora.
Quanto aos ataques de Chávez aos Estados Unidos, dado o apoio
norte-americano ao golpe contra ele em 2002, à colocação de Forças
Especiais e da CIA na vizinha Colômbia e à atitude blasé de Washington
em relação a golpes, não se pode culpar os chavistas por um certo grau
de paranoia.
Washington deveria reconhecer que a América Latina está
experimentando novos modelos políticos e econômicos numa tentativa de
reduzir a pobreza, o subdesenvolvimento e as crônicas divisões entre
ricos e pobres na região. Em vez de marginalizar líderes como Chávez,
Correa, Evo Morales da Bolívia e Cristina Kirchner da Argentina, o
governo Obama deveria aceitar que o fato de que os Estados Unidos não
são mais o Colosso do Norte que consegue sempre o que quer. De qualquer
forma, são os Estados Unidos que estão sendo marginalizados na região,
não seus oponentes.
Em vez de assinar leis estranhas como o “Ato para Enfrentar o Irã no
Hemisfério Ocidental” (bens a Deus), a Casa Branca deveria fazer lobby
para tornar o Brasil um membro permanente do Conselho de Segurança das
Nações Unidas, promover o fim de seu bloqueio ilegal e imoral contra
Cuba e exigir que o Reino Unido acabe com seu apoio à colônia das ilhas
Falkland, ou Malvinas. O fato é que o Reino Unido pode “possuir” terra
há mais de 15 mil quilômetros de Londres só porque tem Marinha superior.
O colonialismo acabou.
E embora o governo norte-americano não possa intervir diretamente nos
tribunais, na atual disputa entre os fundos Elliot Management, Aurelius
Capital Managemente e a Argentina, a Casa Branca poderia deixar claro
que acha desprezíveis as tentativas dos fundos-abutre de faturar com a
crise econômica da Argentina de 2002. Também há a questão prática: se os
fundos-abutre forçarem Buenos Aires a pagar o valor total das dívidas,
que eles compraram por apenas 15 centavos de dólar, vai ameaçar as
tentativas de países como a Grécia, Espanha, Irlanda e Portugal de lidar
com seus credores. Dado que os bancos dos Estados Unidos — inclusive os
abutres — tiveram papel na criação da crise, é um dever do governo
norte-americano ficar ao lado do governo Kirchner nesta questão. Se a
Quinta Frota se envolver, talvez devesse bombardear a sede do Elliot
Management nas ilhas Caimã.
Depois de séculos de exploração colonial e dominação econômica dos
Estados Unidos e Europa, a América Latina finalmente está se tornando
independente. Em grande parte evitou os danos da recessão mundial de
2008 e os padrões de vida na região estão melhorando — de forma
dramática em países que Washington classifica como “de esquerda”. Nos
dias de hoje os laços da América Latina são mais com os países BRICS —
Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — que com os Estados Unidos
e a região está forjando sua própria agenda internacional. Existe
oposição unânime contra o bloqueio a Cuba e, em 2010, o Brasil e a
Turquia apresentaram o que é provavelmente a solução mais sensível para
acabar com a crise nuclear com o Irã.
Nos próximos quatro anos o governo Obama tem a oportunidade de
reescrever s a longa e vergonhosa história dos Estados Unidos na América
Latina e substituí-la por outra, baseada em respeito mútuo e
cooperação. Ou pode voltar a jogar com as obscuras Forças Especiais, a
subversão silenciosa e a intolerância com as diferenças. A escolha é
nossa.
*Conn Hallinan can be read at dispatchesfromtheedgeblog.wordpress.com and middleempireseries.wordpress.com
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